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Pedro Monterroso

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O diabo revisitado

Elle n’est pas Charlie

Pedro Monterroso - Publicado: Quarta, 14 Janeiro 2015 20:06

Amiga, tal como sempre a tua provocação é tão bem argumentada que, estando eu no outro lado da barricada (na discordância contigo) terei de refletir para te responder com a qualidade com que (também a mim) provocas. Apesar da metáfora "do outro lado da barricada" soar a uma questão bélica, não é porque eu queira responder com tiros, mas apenas para expressar uma forte discordância em relação aos teus argumentos, os quais são expressos com inteligência e não com tiros, tal como foi a resposta dos assassinos de 7 de janeiro aos jornalistas. Não concordo com a tua opinião (no geral, diga-se) mas, pelo facto de me fazer repensar as ideias que havia concebido, respeito-a, e muito. E como adoro eu a discussão e aqueles que sabem discutir... Para tal, dedico este meu tempo livre para te dar uma resposta que tentará estar à altura dos teus argumentos, procurando não dar uma resposta simplista porque a inteligência não merece essas coisas coisa.


O humor nem sempre tem uma função progressista e quando, repetido-repetidamente, ele acaba por ferir os mais suscetíveis, ridicularizando e chegando ao ponto de “bullying” e nós sabemos como pode explodir um adolescente que é vítima dessa “valentia” cobarde, sendo comum notícias sobre adolescentes que, em último caso, se suicidam ou acabam por matar colegas os “bullers” ou outros inocentes que são vítimas colaterais, que o oprimido na sua cegueira não é capaz de distinguir e, muito menos, de encontrar um canal que lhe permita orientar e resolver o seu desconforto. É que muitas vezes não estamos atentos em relação àquilo que pode gerar e não há meios que permitam ao indivíduo responder de outra forma que não a brutalidade física. É que, não raro, em vez de estarmos a atacar os opressores, estamos a repisar os oprimidos. Esse é o argumento, pelo que me parece, mais interessante na tua análise de que os oprimidos pela sua vida diária, de falta de oportunidades de emprego, de acesso à educação, à saúde, vítimas de exclusão social, ainda tenham de levar com o preconceito nas capas do jornal em relação às suas crenças. Pediste em resposta a uma amiga para se lembrar também quando o humor é feito com a mulher, a negra, a latina ou a imigrante, como forma de reflexão aos limites do humor.

Mas e então? Não é função de um humorista, resolver os problemas de integração de uma sociedade, aliás, o humorista tem a função social, de corrigir a moral que também o aprisiona, a ele mesmo "ridendo castigatis moris", o que é pelo que me parece a essência da sátira, a qual o valor me ensinou na escola Gil Vicente, numa adolescência que, quis a sorte, não fora contemporânea à censura e à proibição da crítica religiosa, com o Auto da Barca do Inferno, com a crítica severa também ao clero, mas a toda a sociedade quinhentista.

Num mundo em que, de repente, todos somos Charlie, há que dizer basta(!), há que discutir e levantar o pó que assenta e que cobre a banalidade das mensagens radicais e massificadas, que nos querem reunir a todos, imaginem(!), quais ovelhas encarreiradas. Quando todos pensamos da mesma maneira, com mensagens estandartizadas, ninguém pensa. E por isso adoro os que, inteligentemente, provocam e estão contra, não pelo facto de quererem chamar a atenção fortuitamente, mas porque têm uma opinião sustentada e porque querem discutir e não apenas dizer “mééé” #JeSuisCharlie.

Faz alguns dias, um amigo que embora sendo uma pessoa distante da política e não tendo interesse na sua discussão, confrontando-me com a perversidade dos fenómenos de massas me contava uma história da sua adolescência, num Portugal recém-saído do salazarismo, que tendo muitas opções de escolha política, seguia a passos marcados para o bi-partidarismo acéfalo que hoje é marca da nossa cultura política. Contava que fora a um comício de um partido da maioria, daqueles que todos sabem que é tendencialmente vencedor, não chegando a dizer qual era esse, o que de resto pouco me interressa. Ora, aquando das palavras vibrantes do discurso do líder, os queixos se moviam em consentimento, as vozes acusavam o acordo imparcial e as salvas de palmas invadiam o pavilhão, enquanto algumas carteiras eram roubadas, de buchos enchidos com os aperitivos do partido do orador. Essa reflexão, lembra-me o fenómeno de de repente sermos todos Charlie e do aproveitamento de muitos outros, que estarão ali para ganhar alguma coisa com isso ou simplesmente, despidos de ideias vão para comer uns pastéis de bacalhau. Se eu o sou, sou-o por convicção, sou-o pelo facto de não poder admitir que esses moços radicais a mando, muito provável, de seitas organizadas, que prometem matar quem os provoca, matem mesmo.

A sociedade tem de viver com os preconceitos e combatê-los da melhor maneira e a melhor, na sociedade francesa com uma constituição e um sistema jurídico solidificado, não é o assassinato, tal como tu, querida provocadora, o sabes e o afirmas, tal como eu. Sei que sabes disso, que és uma democrata e uma pessoa que dá valor à vida humana e à liberdade, não fosses tu mesma também uma artista. Na verdade, o que me faz questionar o problema destes “més” todos #JeSuisCharlie é que, entre eles, há ovelhas que em uníssono se juntam às outras e, pelo meio, fazem o rebanho bezerrar assíduos e dopados de endorfina em palavras de ordem contra o Islão, querendo despoletar o mero ódio contra os imigrante, não diferenciando as seitas islâmicas radicais de coisa nenhuma. Para tal basta ver o aproveitamento político da Le Pen e da extrema-direita em França e a adesão social com que beneficiam do aproveitamento deste fenómeno social de massas.

Não sendo eu um defensor do Islão, como não sou defensor de religião alguma, e acreditando até que as religiões são, por princípio, instituições de manipulação social, procurarei sempre atingir os dogmas, os que os orientam e os usam e não os seus crédulos seguidores, não deixando por isso de apresentar a minha opinião e de exigir o direito a ela. E por ter direito à opinião, assumo que o Islão, as Igrejas, as istituições em geral (sejam elas Estado, Escola, Família...) têm de ser expostas à crítica, englobando na crítica, a exposição ao ridículo, tal como tudo na vida, e sobreviverem a ela. Se isso acontecer, tornam-se mais fortes, mais tolerantes, inclusivas e universais (“what doesn't kill you make you stronger”). Quanto ao bom gosto da crítica não o podemos julgar, ao ponto de o regular, e temos de partir daí. Podemos qualificá-lo, sim, tal como na arte, o humor também pode ter muito “mau” gosto, como de resto tinha, em tua opinião, essa revista satírica francesa, sendo que nesse ponto até poderei concordar contigo. Para questões de foro jurídico restam-nos sempre os tribunais e proibir uma só vez quer dizer, passar um lápis azul e, como era hábito no Portugal de outra hora, censurar: prática socio-política que, pelas lutas sociais, veio sendo erradicada numa Europa até meados do séc. XX, qual cancro, voltou a borratar este continente depressa pintando ditaduras fascistas e moralizadoras que tiveram não surpreendentemente uma outra Igreja, a Católica, como parceiro político de Franco, Mussolini, Salazar, sendo uma ameaça aos valores sociais que com a Revolução Francesa se vinham desenvolvendo e pondo um ponto final na Idade das Trevas.

Por fim, ressalvo que não foi o Islão que matou as 12 pessoas senão assassinos extremistas em nome do dele, o que é diferente. Até poderiam ter sido adeptos de futebol, como até já aconteceu, mas eram adeptos de outra força. Enfim, assassinos. Quanto a esses devem ser, e são, condenados por todos aqueles que respeitam a vida humana, sejam eles o que quer que sejam: é um princípio ético universal, conquanto muitos dos que exibem cartazes #JeSuisCharlie não concordam. E se Marine Le Pen volta a despertar a necessidade da pena de morte, o moviemento PEGIDA, aqui na Alemanha, não tardará a querer fazer o mesmo, ou tão-só fazer pressão para que vão para “casa” aqueles que não têm casa e só cá estão refugiados da morte.


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