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Jorge Beinstein

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Em coluna

O regresso do fascismo: A propósito de Charlie Hebdo

Jorge Beinstein - Publicado: Terça, 13 Janeiro 2015 00:00

Como era de prever, o ataque contra Charlie Hebdo desatou uma onda mediática global de condenação ao "terrorismo islâmico", um verdadeiro fedor a "11 de setembro à francesa" (1) fica patente.


Como também era de prever, a direita ocidental capitaliza essa onda, na tentativa de orientar para uma combinação de islamofobia e autoritarismo, de justificativa da cruzada colonial contra a periferia muçulmana e, ao mesmo tempo, de impulso em Ocidente à discriminação interna contra as minorias de imigrantes árabes, turcos e outros. E como também era de prever, não faltaram os cortesãos progressistas do sistema que, depois de abrirem o guarda-chuva assinalando em muito primeríssimo lugar que o "ataque terrorista"... "deve ser condenado sem atenuantes" atribuindo-o ao "fanatismo religioso" (obviamente islâmico) passam sissudamente a enumerar algumas culpas ocidentais sem um mínimo de prudência e decoro diante de um assunto que cheira a podre.

O menos que pode ser dito é que o affaire Charlie Hebdo entrou rapidamente para o pântano da confusão: os dois supostos atacantes foram liquidados dois dias após o ataque, ainda não se sabe bem como é que foram tão facilmente identificados em umas poucas horas, salvo que aceitemos a incrível versão policial de que um deles esqueceu seu bilhete de identidade no automóvel utilizado no atentado. Paul Craig Roberts, ex Subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos assinala que "a Polícia encontrou o bilhete de identidade de Said Kouachi na cena do tiroteio (perto da sede de 'Charlie Hebdo'). Não acham isso familiar? Lembrem que as autoridades (norte-americanas) afirmaram terem encontrado o passaporte intato de um dos supostos sequestradores do 11 de Setembro entre as ruínas das torres gêmeas. Uma vez que as autoridades descobrem que os povos ocidentais estúpidos vão acreditar qualquer mentira evidente, vão recorrer à mentira uma e outra vez" (2).

Não haverá julgamento, os irmãos Kouachi nem desmentirão nem confessarão nada. Por outra parte, em diferentes meios jornalísticos aparece a informação de que estes irmãos franceses filhos de imigrantes argelinos teriam sido recrutados há algum tempo pelo aparelho de inteligência francês, que os encaminhou para o yihadismo em sua luta contra o governo sírio. Inclusive aparece o nome do agente recrutador, um tal David Drugeon assinalado desde faz tempo como um personagem de alto nível do aparelho de inteligência francês que, é claro, desmentiu em seu momento essa informação reiterada antes e depois do desmentido por meios de imprensa norte-americanos e europeus (3).

E como se isto fosse pouco, um dia após o "atentado", de maneira muito marginal, deu-se a conhecer o estranho suicídio de Helric Fredou, comissário subdiretor da Polícia judicial de Limoges que trabalhava no caso Charlie Hebdo (4).

Guerras e bobos

Philippe Grasset assinala com razão que o ataque contra Charlie Hebdo não é um "atentado terrorista", mas um "ato de guerra" perfeitamente orientado para um objetivo concreto realizado por meio de uma operação de tipo comando (5).

Mas de que guerra se trata?

Uma primeira constatação é que a França desprega atualmente de maneira formal por volta de 8 mil solados em diferentes intervenções militares na periferia, mais de 5 mil em África e importantes contingentes na Ásia Central e Médio Oriente, a mais recente delas foi no Iraque com o argumento de combater o "Estado Islâmico" (6). A intervenção no Afeganistão subordinada ao comando militar dos Estados Unidos despregou uns 4 mil soldados em 2009 (7).

Embora a operação mais ruidosa fosse a realizada contra a Líbia, os bombardeios franceses, fator decisivo na intervenção da OTAN, fizeram milhares de mortes entre a população civil, importantes centros urbanos foram destruídos, o Estado líbio foi liquidado. Segundo diferentes avaliações, depois da derrocada de Kadafi, cerca de dois milhões de libios, um terço da população total, deixaram o país no meio do caos, disputado por gangues rivais. Também França intervém ativamente na operação da OTAN contra Síria introduzindo mercenários e armas.

Dito de outra maneira, o Estado francês é hoje uma componente decisiva do dispositivo operacional da OTAN embarcado em uma estratégia de intervenção global destinada à recolonização ocidental do planeta. O comando supremo corresponde, certamente, aos Estados Unidos, e a parte operacional da agressão não se limita a um conjunto de ações militares de tipo clássico, abrangendo um complexo leque de dispositivos destinado à desestructuração, à caotização de diferentes áreas do "resto do mundo", à sua transformação em uma massa informe fácil presa da predação. Assim o demonstra a longa série de intervenções ocidentais recentes na Ásia, Africa e América Latina, em alguns casos através de invasões militares como no Afeganistão e Iraque, em outros combinando bombardeios e/ou introdução de mercenários como em Líbia e Síria ou bem instalando bases militares e inflando exércitos locais e bandos paramilitares, como na Colômbia, mas em todos os casos incentivando formas caóticas e ultra violentas que desarticulam o tecido social, dos quais as realidades atuais do México, Líbia ou Iraque são um bom exemplo.

Estas ações são combinadas com uma larga exibição midiática, destinada a controlar, regimentar as sociedades ocidentais e a degradar, desarticular, submeter o resto do mundo. É reafirmado o velho mito de Ocidente como civilização verdadeira, única com legitimidade universal relegando os demais à categoria de "bárbaros" ou "semicivilizados", segundo as circunstâncias. Mito imperial que atravessou toda a história da modernidade até chegar a sua mutação em delírio criminoso no século XX como fascismo ou nazismo. Desse modo, o liberalismo imperialista civilizador, o cristianismo colonial redentor e o nazismo que floresceram em três momentos diferentes terminam agora em plena decadência sistémica convergindo em uma mistura e grotesca expressão de sociedades privilegiadas em retirada cultural. Assim é como a Frente Nacional abertamente neonazista convertida no primeiro partido político da França, se vincula na prática com comunicadores ou intelectuais na moda como Éric Zemmour, que reivindica a colaboração com a ocupação alemã durante a segunda Guerra Mundial e a segregação das minorias muçulmanas e outras, todo isso em nome dos "valores cristãos" da França (8) ou outros como Bernard-Henri Levy, instigador do genocídio da OTAN na Líbia. Do alto, o presidente socialista François Hollande explica a intervenção na Síria e Iraque e o apoio ao regimen neonazista da Ucrânia como parte de sua luta pela defesa dos interesses da França.

Santiago Alba Rico elogia os assassinados de Charlie Hebdo localizando na categoria de bobos e explica-nos que "está também o horror de que suas vítimas se dedicassem a escrever e a desenhar... tarefas que uma longa tradição histórica partilhada situa no extremo oposto da violência... Em termos humanos, sempre é mais grave matar um bobo que um rei, porque o bobo diz o que todos queremos ouvir embora seja improcedente ou inclusive hiperbólico... O que mata um bobo, a quem encomendamos o dizer livre e geral, mata a humanidade mesma. Também por isso os assassinos de Paris são fascistas. Só os fascistas matam bobos. Só os fascistas acham que há objetos não hilariantes ou não ridiculizáveis. Só os fascistas matam para impor seriedade" (9).

Não creio que Hitler exercendo a arte de escrever, por exemplo "Mein Kampf", estivesse realizando uma atividade oposta à violência, e sim todo o contrário, a legitimando. Por outra parte, é necessário destacar que grandes massacres foram acompanhados pela ridicularização das vítimas. Nesse sentido, a arte de ridicularizar aparece como um complemento necessário da chacina, cobrindo com um manto de humor, oculta a tragédia, desculpabiliza os assassinos.

Tenho diante três fotografias referidas ao "Batalhão policial 101", unidade operativa alemã famosa por sua extrema crueldade durante a Segunda Guerra Mundial nos territórios ocupados da Europa do Leste. Em uma delas se vê um grupo de soldados-policiais alemães morrendo de rir arredor de um velho judeu barbudo, os nazistas muito divertidos estão a ponto de lhe cortar as barbas. Nas outras duas, aparecem custodiando um grupo de judeus na localidade de Lukov, a ponto de serem enviados ao campo de exterminio de Treblinka, em uma delas um soldado nazista se diverte à grande, obrigando um velho judeu farrapento com gestos de bobo (10).

Os reis costumavam incluir bobos na sua corte que espalhavam humor se debochando às vezes astutamente do Rei e de alguns cortesãos, mas sobretudo dos inimigos do reino e dos vassalos mais pobres, camponeses ou humildes artesãos, ridicularizando seus gestos, sua maneira de falar e vestir, isto é, suas culturas. Um bobo da corte não é um bobo de modo geral, não está ali porque sim, não é a expressão de algo bom, sendo antes o encarregado de banalizar a tragédia, de a tornar entretida.

Fazer bobagens na corte, ou seja, em Ocidente, ridicularizando as crenças e costumes de muçulmanos bombardeados, invadidos, colonizados faz parte da banalização do mal, integra a maquinaria ideológica legitimadora da tentativa ocidental de colonização da periferia. O suposto "humor libertário" de Charlie Hebdo ensina-nos que todo pode fazer parte da festa, os fascistas realmente existentes não matam bobos de modo geral, mas certos bobos chatos e em numerosos casos incorporam bobos à sua corte, a ridicularização da vítima é um aspecto significativo do humor fascista, faz parte da humilhação do martirizado.

Finalmente, não tudo é ridicularizável, não acho que seja um fascista quem considerar inadmissível fazer piada do assassinato em massa de crianças na Palestina, executado pela aviação israealita, ou os massacres de população civil na Líbia realizadas pela aviação da OTAN, ou os assassinatos de camponeses na Colômbia praticados pelos paramilitares. Quem considerar que se é possível converter esses fatos em alvos de chicota pode ou não ser ideologicamente fascista, mas seguramente se trata de um sacana.

Bárbaros e civilizados

Para além de se o ataque contra Charlie Hebdo foi uma operação montada pelo aparelho de inteligência francês, só ou em cooperação com a CIA ou outra estrutura, ou então uma ação de um grupo islâmico manipulada pelo aparelho francês ou inclusive independente e hostil a Ocidente, o que é um fato é que uns ou outros o consideraram um objetivo concreto da guerra globalizada em curso.

Seguindo a "hipótese 11 de Setembro" (autoatentado) se trataria de mobilizar na cruzada imperial a uma Europa abafada pela recessão. Poderíamos fazer coincidir o acontecimento com o anúncio de que a União Europeia vai entrando em uma etapa de deflação que ameaça ser prolongada e completamente submetida à estratégia global dos Estados Unidos. Isso significa que as elites dominantes precisam criar rapidamente fatores de coesão social funcionais às suas aventuras militares e financeiras. O demônio islâmico bem pode justificar, fazer aceitar ou obrigar a aceitar guerras externas combinadas com repressões e empobrecimentos internos.

A quota de barbárie introduzida com o golpe de estado na Ucrânia e a posterior tentativa de depuração étnica no sueste desse país juntaria com a ascensão generalizada do fascismo na Europa, desde a Ucrânia e o países bálticos, até chegar à Frente Nacional na França e ao movimento Pegida na Alemanha, passando por Aurora Dourada da Grécia. Prefigurando a conformação de um fascismo muito estendido no espaço europeu, coincidente com a previsível ascensão do Partido Republicano nos Estados Unidos. Neste palco, a intensificação de atos de barbárie imperial na periferia estaria convergindo com a internalização de formas significativas de barbárie no centro imperial.

Seguindo a hipótese oposta, estaríamos em presença do início da caotização do centro imperial do mundo, o desenvolvimento da sua "Guerra de Quarta Geração" contra a periferia começaria a ter um efeito boomerang sobre o protagonista ocidental. O caotizador ocidental começa a ser por sua vez caotizado por uma exibição que começa a escapar a seu controle e que gera dislocações em sua retaguarda. A crise econômica, suas derivações financeiras, ecológicas, sociais e militares iriam submergindo o espaço euro-norte-americano em uma espiral descendente irreversível.

Em ambos casos, a imponente civilização ocidental, seus pretensos "valores universais" estariam se evaporando e deixando a nu a sua barbárie profunda.

Notas

(1) Thierry Meyssan, “¿Un 11 de septiembre en París?. ¿Quién está detrás del atentado contra Charlie Hebdo?”, Voltairenet.org, 8 de enero de 2015; http://www.voltairenet.org/article186413.html.

(2) Paul Craig Roberts: "Ataque contra 'Charlie Hebdo' fue una operación de falsa bandera", RT, 11/01/2015; http://actualidad.rt.com/actualidad/162898-roberts-ataque-paris-falsa-bandera-francia-vasallo-eeuu.

ver también: Kevin Barret,Planted ID card exposes Paris false flag”, PRESSTV, Sat Jan 10, 2015, http://presstv.com/Detail/2015/01/10/392426/Planted-ID-card-exposes-Paris-false-flag.

(3) Mitchel Prothero, “Videos show Paris gunmen were calm as they executed police officer, fled scene”, McClatchy DC, January 7, 2015; http://www.mcclatchydc.com/2015/01/07/252225_gunmen-in-paris-terror-attack.html?rh=1.  

(4) Quenel+, “Le numéro 2 de l’enquête sur Charlie hebdo s’est suicidé”, 8 janvier 2015, http://quenelplus.com/revue-de-presse/le-numero-2-de-lenquete-sur-charlie-hebdo-sest-suicide.html.

(5) Philippe Grasset, “Un “11-septembre à la française” ?”, Dedefensa.org, 08/01/2015.

http://www.dedefensa.org/article-un_11-septembre_la_fran_aise__08_01_2015.html.

(6) “De l'Irak au Mali, le casse-tête budgétaire de l'armée française”, Les Echos, le 23/09/2014, http://www.lesechos.fr/23/09/2014/LesEchos/21777-034-ECH_de-l-irak-au-mali--le-casse-tete-budgetaire-de-l-armee-francaise.htm.

(7) “French forces in Afghanistan”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/French_forces_in_Afghanistan.

(8) Éric Zemour, “Le suicide français”, Albin Michel, Paris 2014.   

(9) Santiago Alba Rico, “Lo más peligroso es la islamofobia”, Rebelión, 08-01-2015, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=194053.

(10) D. J. Goldhagen, “Los verdugos voluntarios de Hitler”, páginas 314 y 331, Taurus, Madrid, 1997.  

Tradução: Diário Liberdade.


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