1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (2 Votos)
Paulo Marçaioli

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Batalha das Ideias

“Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos” – Lima Barreto

Paulo Marçaioli - Publicado: Quinta, 25 Dezembro 2014 21:00

Resenha do livro - "Triste Fim de Policarpo Quaresma / Clara dos Anjos" – Lima Barreto – Ed. Scipione – Introdução e Comentários de José De Nicola.


O escritor carioca Lima Barreto (1881-1922) exerceu um papel de vanguarda na história da literatura brasileira: junto com Aluízio de Azevedo e seu “O Cortiço” e “O Mulato”, foi pioneiro ao descrever o subúrbio da cidade (o que hoje poderíamos dizer a sua “periferia”), bem como as classes sociais mais baixas, até então virtualmente invisíveis desde os romances românticos realistas e naturalistas  que vinham retratando a corte desde o séc. XIX.

Surgem nos romances de Lima Barreto não apenas os bacharéis, os altos funcionários de estado, as damas da alta sociedade, todos de cor branca e pertencente da classe burguesa:  dá-se atenção e centralidade aos personagens que como Lima Barreto (ele próprio um mulato, vítima do racismo em uma sociedade recém saída da escravidão) trabalham como carteiros, dentistas, funcionários de baixa importância do estado, soldados de baixa patente, ou mesmo vagabundos e boêmios, dependentes do álcool (“parati”).

Temos portanto uma visão privilegiada, tanto em “Policarpo Quaresma” e especialmente em “Clara dos Anjos”, da sociedade suburbana do Rio de Janeiro de fins do séc. XIX: o estilo de Lima  Barreto, criticado à sua época, é objetivo e direto. Em certas passagens suas descrições remetem a uma verdadeira reportagem de um jornalista que vai descrevendo não só os tipos sociais, mas o abandono do subúrbio, a falta de esgoto, as casas feitas com material improvisado, as brigas entre vizinhos em geral por banalidades como sumiço de animais de criação (galinhas e porcos), ambientes, pessoas e animais amontoados num espaço abandonado já então.

Um outro elemento importante: em que pese haver de muito da própria experiência pessoal de Lima Barreto nos seus romances – particularmente nas passagens em que se explicita o racismo, como em “Clara dos Anjos” e o abandono da jovem grávida por um nhonhõ branco que a deflora e acaba sempre sendo protegido pelas autoridades policiais e judiciais – não há daquela superficialidade paternalista que poderia da ensejo às histórias que remetem a situações de profundas injustiças.

Para ficar no mesmo exemplo de “Clara dos Anjos”, Lima Barreto busca identificar as raízes de seu triste fim não apenas pela sociedade racista, pelos privilégios desfrutados pelo homem branco diante das instituições, mas igualmente por erros na formação moral do lado dos “oprimidos”:

“A educação que recebera , de mimos e vigilância, era erronia. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinho cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres...Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil D. Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam”.

E aqui temos em plena evidência ideias-chave para compreender dificuldades e a superação de vida do próprio autor de Clara dos Anjos.

Neto de escravos, filho de tipógrafo e de mãe professora primária, sempre teve de enfrentar o preconceito em função da sua cor. Como muito esforço conseguiria entrar na Escola Politécnica de Engenharia do Rio de Janeiro mas não conseguiria concluir o curso diante de doença que levara seu pai à loucura.

Em 1903 consegue passar em concurso para Secretaria de Guerra e é nomeado amanuense, um cargo burocrático inexpressivo.

Levaria uma vida depressiva em que o álcool seria um paliativo para as suas severas crises. Sua depressão – que como dizíamos está a todo momento presente na sua obra – tinha como origem sua rejeição social em função de sua cor.

Diz Lima Barreto em depoimento:

“Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. 

É triste não ser branco.

(....) 

O que é verdade na raça branca, não é extensivo ao resto; eu mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser tomado por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse desgosto e ele far-me-á grande”

E como o escritor desejava superar a discriminação? Ele mesmo responde:

“Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me enchia de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande Humanidade de que quero fazer parte”. 

Enquanto “Clara dos Anjos” centraliza sua crítica social na questão do racismo, no problema da educação familiar e no abandono das famílias suburbanas pelas instituições, “Policarpo Quaresma” é antes uma crítica bem humorada da República Velha, dos militares no poder e da política nacional.
O Major Policarpo Quaresma foi acometido desde jovem por um amor quixotesco pelo Brasil e dedicaria toda a sua vida a estudar tudo o que se refere à pátria: sua história, suas riquezas minerais, sua botânica, a língua tupi. Tamanho amor o levaria a ação extravagante de propor a alteração do idioma do país para a língua aborígene o que lhe renderia a ridicularização e o escracho público – posteriormente, ao protocolizar no seu departamento (era funcionário público) papeis em língua tupi, chega a ser internado como louco.

O fato é que o amor de Policarpo pode parecer extravagante, mas é nobre e altruísta: tanto o é, que após a internação toma ruma a um sítio onde se dedica à agricultura, com a enxada no braço, no intuito de, pelo exemplo, fazer progredir as terras do país.

O que é interessante é que pela ingenuidade pueril do major em contraponto à política real – e o período histórico é o do segundo governo da República com a Revolta da Armada em curso – o leitor pode observar, pelo contraste, a larga, a vasta distância entre o ideal de uma política desinteressada e o que ela representa de fato: literalmente o triste fim de policarpo quaresma, o triste fim de um idealista, abandonado por todos (cada um exclusivamente interessado em sua promoção, em seu cargo, em seus interesses pecuniários) demonstra uma crítica corrosiva e radical à política de seu tempo.

Balanço Lima Barreto

Hoje Lima Barreto deve ser reconhecido como um escritor pioneiro e renovador da literatura nacional. Ele estava à frente de seu tempo e situa-se dentro do contexto histórico do pré-modernismo, já prenunciando questões como a denúncia social, a experimentação com o uso da linguagem (utilização da linguagem popular, algo muito caro ao movimento modernista posterior) e um nacionalismo literário geral, tanto na forma quanto no conteúdo – o que também prenuncia o movimento de 1922.

De forma que chega a ser irônico o fato de Lima Barreto não ter aceitado muito bem aquele Movimento Modernista– na prática podemos dizer que ele foi um de seus precursores mais originais e a ele somos todos devedores para além das inovações literárias, também como um excelente narrador das classes populares do Brasil da República Velha.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.