Acontecimentos tão distantes geograficamente como os que se passam no Curdistão, na Venezuela e em Portugal cruzam-se com outros cuja distância não se mede em quilómetros mas em anos. Há pouco tempo, com um amigo colombiano que visitava a capital portuguesa pela primeira vez, debatíamos sobre a miserável assepsia que brotava da ideia dominante de que a Europa era um continente exemplar. Meses antes, havíamos estado num remodelado mercado de uma cidade europeia que já fora palco de violentos combates entre o operariado e as forças da repressão. Depois de um processo de reconfiguração, o que havia sido um importante centro industrial era agora um cartão de visita para o turismo. Do fumo das granadas de gás e dos fortes cheiros que cuspiam as fábricas envolventes aos estaleiros, agora o ar que se respira é quase impoluto.
Quando entrámos no mercado deparámo-nos com a existência de escadas rolantes e o espaço era tão limpo que ao meu companheiro de viagem não lhe coube mais do que dizer: «No joda, esto en Colombia no seria un mercado. Seria un hospital». Pensei no mesmo. E também cheguei à conclusão que é aquilo no que querem transformar Lisboa. Depois da privatização da indústria e do seu desmantelamento, a Lisboa já não cabe mais do que o simpático epíteto de «a cidade que está na moda». Dizia-nos há poucos dias Paulo Portas, irrevogável vice-primeiro-ministro, que fomos beneficiados pelas 'primaveras árabes' mas que também nos tínhamos esforçado por conquistar o turismo. E as duas coisas são verdade. O facto é que durante décadas o processo contra-revolucionário exigiu um esforço tremendo dos grandes grupos económicos e financeiros para entregar o país à União Europeia e aprisioná-lo à lógica imperialista do mercado europeu: a Portugal não lhe cabe mais do que o turismo e a construção.
Enquanto debatíamos o tema no Miradouro de Santa Luzia, aproximou-se um vendedor de óculos e relógios. Perguntámos-lhe donde era e respondeu-nos que vinha do Burkina Faso. Levei a mão à cabeça, fiz a continência e em francês disse-lhe «Viva o capitão Thomas Sankara!». Surpreendido e emocionado agarrou no telemóvel e mostrou-nos a música que tinha como toque de chamada. Numa das partes mais velhas de Lisboa, soava a canção dos Alpha Blondy dedicada a um dos mais desconhecidos lideres revolucionários africanos que acabou assassinado pelo seu camarada Blaise Compaore, comprado pelo imperialismo francês.
Os discursos de Thomas Sankara eram verdadeiras lições de dignidade. À antiga colónia Alto Volta, o jovem capitão decidiu propor que se chamasse Burkina Faso, terra de homens íntegros. As transformações operadas naquele país foram tão profundas que o imperialismo não teve outra opção. Numa sessão da Organização da Unidade Africana, posteriormente União Africana, deixou em cima da mesa a proposta de suspender o pagamento da dívida e apelou a que todos o seguissem. Se ele fosse o único presidente a fazê-lo, a probabilidade de não estar vivo na seguinte sessão seria elevada.
Thomas Sankara surgiu-me há dias na minha nuvem mental quando recordei um discurso que fez nos anos 80 em Ouagadougou. «Há gente que me pergunta o que é o imperialismo», contava à assistência, «olha simplesmente para o prato que comes. O milho e o arroz importado, isso é o imperialismo. Não há que ir mais longe. Aquele que te alimenta impõe a sua vontade sobre ti». É dessa mesma realidade que se alimenta a revolta dos pescadores portugueses impedidos pela União Europeia de pescar sardinhas no mar português enquanto as nossas mesas se enchem de produtos estrangeiros.
É tremendamente doloroso explicar o que é o imperialismo às consciências colonizadas pela assepsia europeísta. Se o conceito de luta de classes lhes cheira a mofo e lhes faz lembrar a roupa coçada dos avós que suavam na Sorefame e na Cometna como não hão-de preferir Jacques Delors a Jerónimo de Sousa? As consignas do Maio de 68 soam sempre melhores que as do operariado da Amadora ou do Barreiro e Lénine teve azar de ter nascido russo porque se tem nascido em Roma ou em Berlim, e, claro se não tem encabeçado a revolução, faria parte da bibliografia da esquerda tolerável. Falar da necessidade de recuperar a soberania nacional é para eles um sacrilégio que equivale a todo o tipo de impropérios contra a esquerda que convive com o nacionalismo quando se sabe que a direita, a que representa os grandes grupos económicos e financeiros, aquela que tem de ser derrotada, convive muito melhor com o europeísmo e tolera muito melhor aqueles que à esquerda se digam a favor do projecto europeu.
Num continente em que o grito pátria ou morte é património da esquerda, esta discussão é praticamente inexistente. Os grandes heróis latino-americanos não foram académicos. Foram, na sua maioria, combatentes que lutaram pela independência e pelo socialismo. Não se chamam Toni Negri ou Daniel Bensaid. Sobre isto, tive a oportunidade de conversar muitas vezes com Juan Contreras, destacado dirigente do 23 de Enero, bairro simultaneamente bastião e símbolo do sector mais combativo da revolução bolivariana. De noite e de dia, os militantes da Coordinadora Simón Bolívar montavam guarda ao busto de Manuel Marulanda Vélez, líder histórico das FARC. A qualquer momento, o paramilitarismo colombiano infiltrado na Venezuela podia atentar contra o monumento. Isso nunca aconteceu mas Robert Serra, o jovem deputado venezuelano caiu assassinado mais a sua companheira pela navalha do imperialismo.
Eu vivi de perto a eleição de Robert Serra para a Assembleia Nacional venezuelana precisamente porque Juan Contreras se candidatava como suplente de Serra. Ambos encabeçavam a candidatura à parte ocidental de Caracas, zona profundamente chavista. Não consigo imaginar o que deve ser para Juan assumir nestas circunstâncias o lugar de Serra mas como qualquer revolucionário as declarações que fez à imprensa só podiam ser as que fez: «Nunca desejei que fosse numa situação como esta de dor e tristeza para o país. Darei todo o meu empenho». Será provavelmente o primeiro militante dos colectivos do 23 de Enero, tão temidos pela burguesia venezuelana, a sentar-se nas bancadas parlamentares.
Há dias, num outro artigo, comentava que talvez houvesse muita gente que só venha a acreditar na interferência imperialista em processos soberanos quando se desclassifiquem documentos da CIA dentro de várias décadas. Mas há declarações que denotam o óbvio. O vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, admitia, anteontem, que a União Europeia não queria sancionar a Rússia e que Washington impôs essa solução. Um dia antes, na escola Harvard Kennedy, Biden afirmava que o presidente turco tinha admitido o erro de financiar com milhões de dólares e dezenas de milhares de toneladas de armas para qualquer grupo que combatesse Bashar al-Assad e que o grupo mais beneficiado havia sido o Estado Islâmico (ISIS). Ante a confissão, Erdogan respondeu de forma intempestiva o que obrigou o vice-presidente norte-americano a pedir desculpa.
Portanto, o Estado Islâmico não tem nada, mesmo nada a ver com os Estados Unidos. Deve ser por isso que não se atreve a atacar nenhum dos aliados do imperialismo que partilham fronteira com o Iraque ou com a Síria: Turquia, Arábia Saudita e Israel. Só não vê quem não quer. É tão descarado que a própria Euronews noticiava esta manhã que a Turquia está a travar curdos que querem atravessar a fronteira que divide o Curdistão turco e o Curdistão sírio para combater o ISIS em Kobani. O líder da guerrilha curda PKK, Abdullah Ocalan, ameaçou romper o processo de paz se a Turquia for conivente com a invasão de Kobani e com o massacre da população. Há vários dias que a cidade curda está a ser assediada pelas forças do ISIS com a resistência heróica de um povo habituado a ser maltratado.
É mais do que hora de rebentar com o muro ideológico que nos impõe todos os preconceitos que nos fazem duvidar quase sempre das quase certezas em relação àquilo que o imperialismo é capaz de fazer. Por que é mais fácil acreditar que Bashar al-Assad é responsável por bombardeamentos químicos do que o contrário? Por que teriam mais credibilidade os representantes da oligarquia europeia do que Muammar Kadhaffi? Porque vivia numa tenda rodeado de uma guarda feminina de elite? É tão difícil perceber que há uma estratégia concertada do imperialismo que golpeia neste momento simultaneamente povos que resistem com toda a legitimidade? De entre todas as contradições, por que não conseguimos compreender como já havia formulado Lénine, há um século, que «os homens sempre foram na política vítimas ingénuas do engano dos outros e do próprio, e continuarão a sê-lo, enquanto não aprenderem a descobrir que por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais estão os interesses de uma ou de outra classe»?