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Gustavo Henrique Lopes Machado

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Alétheia

Tarifa Zero: entre a estatização e a mera mudança de forma

Gustavo Henrique Lopes Machado - Publicado: Segunda, 07 Julho 2014 20:36

Neste último período, em particular a partir das mobilizações de junho do ano passado cujo estopim girou em torno do aumento na tarifa de ônibus, uma nova bandeira ganhou corpo para inúmeros ativistas de esquerda: Tarifa zero.


  Tal palavra de ordem se assenta em inúmeros projetos que procuram justificar a viabilidade e a necessidade de um transporte público universal e gratuito. Indiscutível que tal revindicação se ancora de maneira legítima em um dos mais graves problemas das sociedades capitalistas contemporâneas, e com particular intensidade no Brasil: ao caos do transporte coletivo marcado pelas passagens elevadas, congestionamentos intermináveis, ônibus abarrotados. Tudo isto conjugado com políticas desesperadas para manter um elevado índice na vendas de automóveis, um dos principais motores da economia nacional.

Que a revindicação seja legítima é indiscutível. Saudamos todos aqueles dispostos a se somar na luta por um transporte coletivo público e de qualidade. É necessário expurgar este fantasma que assombra a vida cotidiana de todos habitantes das médias e grandes cidades do país. Apesar disto, a questão está, no mais das vezes, mal colocada. Alguns movimentos, e em particular o Movimento Passe Livre (MPL), procurando adequar sua proposta de tarifa zero a uma “realidade possível”, ou seja, compatível com a economia de mercado, defendem sua implementação sem a respectiva estatização das empresas privadas de transporte coletivo. Como esta realidade seria possível? Muito simples. Trata-se de arcar com os custos do respectivo serviço com um fundo público municipal e medir o pagamento a ser efetuado às empresas privadas de transporte coletivo, não em função do número de passageiros que circulam nos veículos, mas através da distância percorrida pelos mesmos. Em seguida, esta proposta é enfeitada com um conselho municipal para estabelecer o salário dos motoristas e o preço a ser pago pelo município às empresas contratadas. Ao mesmo tempo, seriam estabelecidos conselhos locais para definir a estruturação dos serviços de mobilidade urbana em conformidade com as necessidades de seus usuários. Apesar da aparente novidade, tal projeto está assentado em concepções arcaicas e há muito sepultadas. Porém, como os mortos sempre insistem em assombrar o mundo dos vivos, cabem alguns comentários sobre esta proposta específica.

Uma das grandes ilusões que incorreram vários socialistas desde o século XIX consistiu em assumir que uma economia de mercado é passível de um controle racional e planejado, sobretudo o preço das mercadorias e o salário pago aos trabalhadores que vendem sua força de trabalho. Pelo contrário, esta forma de organização social submete todos os serviços e atividades produtivas aos estreitos e mesquinhos interesses da acumulação privada de riqueza, controlando os preços através da concorrência entre as múltiplas empresas individuais, ou seja, pela lei do valor. Vários projetos de sociedade, ou propostas de reformas sociais, foram elaboradas sob este enganoso pressuposto - de que o capital pode ser pelo menos parcialmente controlado - e resultaram sempre em acachapantes fracassos, ou então, antes de servir aos interesses da população no geral, se voltaram contra ela impondo uma nova forma de exploração e desumanização. Como exemplo, citamos o projeto das cooperativas de trabalho propugnadas por Proudhon no século XIX, que foi duramente combatido por Marx. Proudhon acreditava ser possível expropriar as empresas, mas manter o mercado e estipular artificialmente os preços com fórmulas pré-determinadas. Teríamos, deste modo, um mercado assentado na concorrência entre cooperativas de trabalho, cujos preços das mercadorias seriam previamente calculados. Acreditava, ingenuamente, ser possível acabar com os capitalistas e manter o capital. O projeto Tarifa Zero, nos moldes anteriormente indicados, exclui o único aspecto sustentável da proposta de Proudhon: a expropriação das empresas privadas, e mantêm seu fantasioso pressuposto: acreditar que os preços no interior de uma economia de mercado podem ser conscientemente determinados por pessoas ou comitês. Antes disto, o mercado exige que os preços do conjunto das mercadorias sejam regulados pelos mecanismos impessoais e não conscientemente planejados da concorrência. Neste sentido, o pagamento de passagens por usuários ou de quilômetros rodados são apenas duas formas distintas de efetivação das mesmas tendências inexoravelmente postas pelo mercado. É uma grande ilusão acreditar que o valor pago às empresas de ônibus ou os salários pagos aos respectivos motoristas possam ser determinados por conselhos ou por deliberação popular com a mera alteração da forma de pagamento, mantendo intacto seu conteúdo. Acreditar na efetividade de tais organismos é algo similar à querer por termo na inflação proibindo o aumento dos preços ou controlando-os por meio de deliberações de conselhos.

Outra analogia interessante é a questão do salário por peça que Marx utiliza em O Capital. Na época em que este livro foi escrito, alguns acreditavam ser possível transformar a relação entre patrão e trabalhador em algo justo efetuando o pagamento aos trabalhadores não mais segundo o tempo trabalhado, mas em função do número de peças produzidas. Todavia, Marx destaca que a forma de pagamento "por peça" consiste na forma "metamorfoseada" do salário por tempo. Afinal, o trabalhador, se quer ganhar mais, tem que trabalhar mais. Marx explica, ainda, que o salário por peça, quando possível de ser implementado, é o mecanismo ideal para o capitalista pelos seguintes motivos: estabelece uma medida inteiramente determinada para a intensidade do trabalho; permite a comparação da produtividade individual dos trabalhores, possibilitando sua avaliação e substituição; permite redução substancial do trabalho de supervisão já que agora o trabalhador controla a si mesmo; passa a ser do interesse do empregado trabalhar o mais intensamente possível; além de acirrar a concorrência entre os próprios trabalhadores. O pagamento do transporte público, pelo Estado, usando a medida do quilômetro rodado, representa um engodo análogo ao do salário por peça. As empresas poderão controlar seus custos e lucros independentemente de qualquer variação no número de passageiros, independente das oscilações diárias ou anuais de demanda do seu respectivo serviço, tendo seus retornos assegurados previamente. O Estado, por sua vez, terá que arcar não apenas com o custo do serviço de transporte coletivo, mas também com o lucro das empresas. O que significa um ônus financeiro e um inchaço ainda maior das finanças estatais do que no caso da estatização. Por isto, caso o Estado decida arcar com os custos do transporte coletivo, ou seja, o conjunto dos trabalhadores que são quem efetivamente sustentam o Estado, os grandes beneficiários serão as empresas privadas de transporte coletivo. E o pior de tudo, os tais conselhos servirão como bode espiatório para a precariedade do serviço e os baixos salários dos trabalhadores envolvidos. Sua função será amortecer os conflitos frente às empresas privadas e o Estado, dividindo e mistificando, ainda mais, as relações entre as classes ao comprometer os trabalhadores com as decisões das grandes empresas.

Por fim, destacamos que esta proposta, colocada nestes termos, está nos marcos do reformismo clássico, cujas reivindicações não tem em mira a mobilização, união e luta dos trabalhadores tendo em vista ganhar sua consciência para a construção de uma outra forma de sociedade. Mas, tão somente, a busca desesperada por medidas e reformas possíveis e compatíveis de serem realizadas no interior da forma capital. Tem como pressuposto uma revolução situada em um futuro distante e a ilusão de que tais reformas, consideradas em si mesmas, já significam um ganho de consciência para os trabalhadores e, assim, parte integrante da revolução social. Esta via pode parecer atraente, mas, infelizmente, o século XX mostrou que as reformas são possíveis, mas quando não se derrota política e socialmente a burguesia - isto é, sem tomar o poder e expropriá-la - antes de caminharmos gradual e paulatinamente rumo ao socialismo, retrocedemos e perdemos as conquistas anteriormente adquiridas. Basta voltar os olhos ao que se passa na Europa hoje, o antigo paraíso do bem estar social, para contemplarmos vivamente este cenário. A revindicação da tarifa zero pode ser, evidentemente, de grande importância nas lutas futuras no Brasil. Todavia, colocada nos termos acima indicados, não representa uma vitória nem política nem social sobre a classe dominante. Ainda que realizável, não representaria nem sequer um passo a frente rumo a outra forma sociedade.

Esta proposta, em verdade, não se assenta na procura de novas vias para transformação da sociedade, mas na absoluta falta de confiança na possibilidade dos trabalhadores darem cabo na sociedade capitalista e tomarem o destino em suas mãos. Trata-se de um programa fundado unicamente em reformas no quadro da sociedade burguesa, deixando para um futuro indeterminado sua substituíção pelo socialismo. Em sentido contrário, acreditamos que é possível transformar radicalmente a sociedade, acreditamos que é possível destruir o capitalismo e construir uma nova forma social, não mais fundada na exploração do trabalho, na distribuíção irracional do trabalho através do mercado e em finalidades mesquinhas. Por isto, sustentamos entusiasticamente a luta pela implementação do Tarifa Zero, mas com estatização das empresas de transporte coletivo e controle dos trabalhadores. Colocar o transporte público fora das disputas do mercado, isto é, estatizá-lo, é a única forma possível de tornar viável conselhos populares que deverão servir como mecanismos de decisão sobre estruturação e prioridades com relação aos serviços usufluídos pela própria população. Não se trata de substituir a opção do livre mercado pela da intevenção estatal, duas estratégias associadas à manutenção da mesma forma de dominação, mas de transformar a mobilização por uma demanda mínima e necessária no impulsor das lutas que vizam destruir não apenas o mercado, como seu próprio aparato de dominação: o Estado. Esta é a única realidade possível!


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