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Raquel Varela

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Ciência e Ideologia

A grande fraude da dívida

Raquel Varela - Publicado: Quarta, 26 Março 2014 11:53

Disse há poucos dias, num programa de TV, sobre a dívida pública, que quem produz 100 não pode pagar 130. Houve quem contestasse, dizendo que se pode. Mas é evidente que se pode. Aliás, até podemos pagar 140 ou 150. A questão é: como?


O património privado foi efectivamente desvalorizado na crise de 2008 – chama-se a isso correr riscos. Se os portugueses tivessem poupado em vez de consumido, tinham visto as suas poupanças desvalorizadas, porque foi isso que aconteceu: a desvalorização real da propriedade privada. Mas os novos “empresários” não correm riscos: chamaram o Estado e pediram ao Estado para assumir essas perdas. E o Estado disse que sim, emitiu dívida, que passou de 70% para 130% do PIB. E para pagar essa emissão de divida destruiu os salários e as pensões e colocou à venda o património público realmente rico e valorizado (privatizações). A dívida pública é isto: um negócio privado que faliu, cujos lucros nunca foram públicos, mas os prejuízos, esses, foram imediatamente socializados – uma espécie de “comunismo só para os ricos”, como alguém jocosamente lhe chamou.

Antes do «como?», vamos esclarecer alguns passos indiscutíveis: há três obras publicadas em Portugal – cujos estudos jamais foram contestados por alguém – que explicam, com detalhe (incluindo despesas de pessoal e até compra de papel ou agrafos!), que os portugueses pagam todo o Estado social e que a dívida dever ser alocada às mais-valias imobiliárias, aos negócios da banca e às PPPs. O nosso livro Quem Paga o Estado Social em Portugal?, o livro de Carlos Moreno sobre as PPP (Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro), o livro de Paulo Morais sobre a crise (Da Corrupção à Crise. Que Fazer?) e o estudo, também notável, de Pedro Bingre do Amaral sobre as mais-valias imobiliárias, provam que a dívida é um negócio privado cuja essência não diz respeito aos gastos da grande maioria dos portugueses. Se a comunicação social dá 10 minutos de tempo de antena a estes trabalhos, mas faz ouvir 12 horas comentadores que não avançam um único facto, um único argumento sólido, e têm um CV que se resume a escreverem em blogues e colunas de opinião, não invalida o mais simples facto: uma mentira mil vezes repetida não passa a ser verdade.

A maioria dos portugueses não deve nada ao Estado, suporta todas as funções sociais, é responsável pelo pagamento de 75% de todos os impostos e é, por isso, legítima credora do Estado: o Estado deve-lhes os salários, as reformas, a educação de qualidade, saúde digna, cultura e lazer.

Vamos agora ao «como?».

Se assumíssemos uma taxa de crescimento de 2% e um juro real da dívida de 3,7% (o que é um cenário optimista) e pressupondo que a dívida se manteria nos 128% (ou seja, nem sequer a abatíamos), então o saldo primário teria de ser de cerca de 2% do PIB. Isso implica que o Estado teria que gastar menos do que o que arrecada, no equivalente a 2% do PIB, ainda que depois de pagar os juros se registe défice (o Estado prevê gastar o equivalente a 4,4% do PIB em juros da dívida em 2014). Claro que criámos um cenário fantasioso para demonstrar que, mesmo em condições optimistas de crescimento, este estaria longe de ser para todos. Essa é, portanto, a fórmula para, na melhor das hipóteses, perpetuar o inferno dos trabalhadores e pensionistas portugueses. Enquanto se puder esvaziar os bolsos dos portugueses e o património público, a dívida é pagável.

O problema não acaba aqui, porém. Estes senhores, para quem a história não existe, olvidam que, por volta de 2009, a crise económica mundial acabou nos países mais ricos, e esquecem que, desde os anos 20 do século XIX,  os choques cíclicos ocorrem com períodos de cerca de 6/7 anos. Isto é, daqui a pouco tempo estaremos a assistir a outra crise. Até lá, ou o BCE consegue aumentar a taxa de juros de referência de forma sustentada para níveis do período anterior à última crise, o que fará que os juros da dívida portuguesa subam ainda mais, ou entraremos na próxima crise sem mecanismos de política contra-cíclica, ou seja, sem a possibilidade de baixar a taxa de juros para criar liquidez e “dinamizar a economia”. Numa economia voltada para exportações, isto significa a paralisia generalizada. É fácil de perceber que, para os trabalhadores portugueses, qualquer que seja a política do BCE é sempre um inferno a somar a outro inferno.

Podemos, em alternativa, suspender a dívida pública e colocar sob controle público o sistema bancário e financeiro, deixando os riscos e os prejuízos a quem fez os negócios. É arriscado? Claro que sim, mas é mais arriscado manter esta política que vai rebentar em menos de uma década com o país, incluindo com os jovens empreendedores que a defendem, porque a política de exportações não sobreviverá à próxima crise cíclica.

Podemos reconverter Portugal à indústria de guerra, transformar a Auto-Europa em fábrica de tanques e 1 milhão e 400 mil desempregados em soldados, e então pagamos 160, 170, o que for necessário. É ver a dívida dos EUA, que a nenhum empresário incomoda porque está assente na maior indústria de guerra da história: os EUA saíram da crise em 2009 com metade da produção da IBM, General Electric e Boeing a ser dedicada, directa ou indirectamente (bombas, electrónica ou capas de sofás de aviões) à guerra. Não podemos esquecer que o sonho do crescimento em Portugal – que chegou a taxas de 7% e mais – foi entre 1960 e 1973. Tirando alguns pormenores – expulsaram-se milhares de camponeses do campo para a cidade, produziu-se material bélico e fez-se uma guerra contra os povos de África durante 13 anos, expulsou-se 1 milhão e meio de pessoas, forçando-as à emigração, mas aguardando as remessas de divisas que sobravam, mesmo que dormissem rodeados de ratos em bairros de lata. Assim, claro que podemos pagar!

Até podemos pagar mais, sobretudo enquanto jovens sem qualquer conhecimento sobre a economia ou a sociedade continuarem a ser a tropa de choque, acarinhada, de um sistema que, desde 2008, tem espalhado a miséria como panfletos que caem do céu, explicando, no meio de uma guerra, que «está tudo bem, estamos a vencer».


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