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Carlos Taibo

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Queda do império

Todos com 'La Roja'? Sobre um momento histérico

Carlos Taibo - Publicado: Segunda, 12 Julho 2010 02:00

Carlos Taibo

Nas linhas que se seguem não há nenhum desejo de contestar o direito que, feitas as excepções devidas, cada qual tem de gozar da maneira que bem entender.


Se alguém se sentir atraído pela seleção espanhola e considerar que passar a tarde vendo um dos seus jogos é uma tarefa prazenteira, pois tudo bem. Prevalece, não obstante, refletir hipercriticamente a trama geral —os interesses, os enganos, as manipulações— que tem rodeado esta gigantesca e ambiciosíssima montagem da “roja”.

A fim de assumir essa tarefa, e ainda começando com argumentos muito utilizados, o primeiro que devemos resgatar é o significado do panem et circenses, e em particular, nos tempos que correm, o que implica o do circo. Nada melhor para dominar a cidadania que aparvalhá-la com umas ou outras atrações. Nestes dias não é necessário ir muito longe para sustentar o argumento: aí estão esses milhares —milhões?— de jovens que encheram as ruas nos seus festejos pelos sucessos da “roja” enquanto preferem ignorar o cenário laboral em que se movem —aqueles que são miseravelmente explorados— ou naquele em que não se movem —aqueles que arrastam um desemprego de sempre—. Nos festejos não tem faltado, aliás, certo cheirete fascistoide e autoritário, e isto a pesar de as gentes da minha geração estarmos forçadas a reconhecer que vemos rápido de mais, atrás da bandeira “rojigualda”, adesões que não estão, sem dúvida, na cabeça de muitos jovens. O da “roja” —falo agora da engenhosa terminologia entrançada, de que fai parte o uso da primeira pessoa ao informar das façanhas futebolísticas— fede, em qualquer caso, como mensagem icónica: como não somos nada vermelhos, compensá-lo-emos, pelo menos, no terreno dos símbolos.

As coisas, porém, não ficam aí: Temos de emprestar meticulosa atenção à manipulação mediática que foi registada nos últimos dias. Tem, se se quiser, duas manifestações. A primeira não é outra que uma fraudulenta reivindicação do coletivo frente ao individual. Mais uma vez topamos com o mesmo: em uma sociedade em que o coletivo foi manifestamente estigmatizado e banido podemos dar-nos ao luxo da reivindicação dos valores correspondentes, ora bem, em um terreno coutado e com protagonistas principais em uma vintena de cidadãos que lutavam por ganhar nada menos que 600.000 euros —por cabeça— se ganhassem o mundial. Que curioso é, na outra mão, que os mesmos meios de comunicação que elogiaram a presumida condição coletiva da “roja” prossigam na sua tarefa de canonizarem heróis desportivos tão equívocos e individualistas, e tão vinculados com o negócio e a publicidade mais abjecta —por que não proibir, falando nisto, a publicidade realizada por famosos—, como Fernando Alonso ou Rafael Nadal. Lembre-se que o modelo que é proposto não é outro que o do triunfador adubado de dinheiro em um cenário em que este último, e o negócio, aniquilam todo o que houver de saudável no desporto.

A outra manifestação que anunciávamos remete para uma utilização distinta do mito do coletivo: o que ganha corpo, dentro de uma complexa e conflitiuosa trama nacional, da mão da postulação da existência de uma identidade espanhola comum que, cabal, se levantaria simples, orgulhosa e convincentemente frente aos particularismos locais (e também, em uma dimensão mais sibilina, frente às identidades de milhões de imigrantes). Quando antes falava do cheirete fascista e autoritário de algumas das algaras de rua nos últimos dias estava a pensar em boa medida nas sequelas disto que acabo de assinalar. É chamativo, em qualquer caso, que enquanto durante anos, e desde o nacionalismo espanhol, se tem reprochado aos outros que empregassem o desporto —o futebol em singular— como escudo identitário, agora os que então se sentiam agravados recorram, sem rebuço, do mesmo procedimento.

Que o que rodeia tanta miséria é mais importante, nas suas consequências, do que possa parecer bem pode ilustrá-lo o facto de que o vírus tem alcançado a quem —cabia supor— se achava mais bem protegido. Baste um botão de mostra: o de uma convocatória realizada em Madrid para a noite da final do Mundial. Na sua versão de sms dizia assim: "A “roja” é a minha seleção, mas a “rojigualda” não é a minh bandeira. Festeja o mundial com a tricolor. Trá-la à praça de Lavapiés domingo após o jogo. Passa-o". Acho que não se pode ser senão duro: longe de contestar toda esta merda, há quem pense que devemos somar-nos sem cautela a ela na certeza de que a bandeira tricolor resolverá magicamente os nossos problemas. Livre-nos a providência destes republicanos.

Deixo para o final o lembrete de uma última discussão interessante: a que nasce das reiteradas declarações de dirigentes políticos e empresários que têm chamado a atenção sobre as presumidas consequências benefactoras que, em termos de crescimento do consumo e de alegria produtiva, está chamado a ter o Mundial de futebol. Suponho que o que nos factos nos dizem é que seremos mais felizes gastando —coletivamente, isso sim— uns euros mais em cervejas e em bandeirinhas, e trabalhando com singular dedicação em proveito dos resultados empresariais, que atendendo à resolução desses pequenos problemas que tem, ao parecer, uma minoria dos nossos concidadãos... "Canta e sê feliz", como rezava uma velha e profunda canção de Peret. Fica para outro dia —não toca hoje— a consideração de que pouco tem que ver com o nosso bem-estar o consumo, hilariante e insustentável, ao que amiúde nos entregamos e de que tanto gostam os nossos governantes.


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