É possível delimitar dois temas de interesse aos leitores desta coletânea de ensaios sobre Machado de Assis. O primeiro diz respeito ao autor do trabalho. Astrojildo Pereira decerto não é um nome desconhecido mas é provavelmente muito pouco lido, mesmo pelos comunistas brasileiros. Afinal, a sua produção intelectual não encontra reedição no país há décadas. O segundo interesse diz respeito ao objeto de estudo, Machado de Assis, o maior escritor brasileiro.
Outrossim, Astrojildo é um nome importante na história do movimento comunista brasileiro. Foi nada menos que fundador e primeiro secretário-geral do PCB, a partir de 1922. Militou na direção do partido comunista até início dos anos 1930 quando foi afastado em meio a ascensão de um novo grupo dirigente – tratar-se-ia de uma fração particularmente sectária e que conduziria o partido para a fracassada tentativa de levante comunista de 1935. Astrogildo não estava mais na direção do PCB na dita “Intentona Comunista”, que serviu de pretexto, junto com o suposto “Plano Cohen”, para Getúlio Vargas caçar os comunistas bem como colocar o partido na ilegalidade. Um fato interessante é o de que Astrojildo foi homem de origem popular e autodidata. Sequer terminou o ginásio. Após o seu afastamento do PCB, exilou-se no interior de São Paulo onde passou a viver da venda de...frutas. E foi neste momento de “exílio” que pôde aprofundar os seus estudos, bem como redigir já alguns dos ensaios que compõe este seu estudo singular sobre Machado de Assis.
Politicamente, pode-se dizer que Machado de Assis foi um liberal. Alguns viram “conservadorismo” diante de menções críticas do autor fluminense à república. Astrojildo nos oferece um ponto de vista diferente. Servindo-se sempre de diversas fontes, somos levados a saber que Machado temia antes o federalismo do que a república. O velho do Cosme Velho preocupava-se com a manutenção da unidade nacional, o que aliás vinha ao encontro mesmo de seu papel na história da literatura brasileira. Isto porque Machado de Assis é um dos precursores de uma literatura verdadeiramente nacional, tendo como ponto de vista privilegiado às análises psicológicas profundas ( que podem ser tidas como “universais”) com descrições de ambiente e mesmo formas de expressão típicos do Brasil do séc. XIX.
Existe uma ambivalência na vida e na obra de Machado de Assis que parece ser o aspecto mais interessante enunciado por Astrojildo Pereira. O escritor era ele próprio parte das antinomias que tanto o interessavam – e que se reportam até no título da já citada obra Essaú e Jacó. Machado foi filho de pintor e de lavadeira. Junto com Luís Gama (advogado abolicionista) e Lima Barreto (escritor e jornalista), era mulato que desafiava abertamente as teses racistas de um contemporâneo, Oliveira Vianna. Mesmo mulato e vivendo numa sociedade escravocrata, angariou reconhecimento público ainda em vida, sendo um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. A sua crítica dirigia-se à incipiente sociedade burguesa, que continha dentro de si contradições estruturantes como a escravidão e o domínio político dos grandes proprietários rurais.
Ao mesmo tempo, Machado de Assis vivenciara um momento de transição na literatura brasileira. Particularmente os anos de 1870 marcariam um processo de renovação literária e cultural no Brasil. Tanto o é que já se tornou um senso comum dividir a obra Machadiana tendo como ponto divisor a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Até então, suas obras estariam melhor caracterizadas como da 3ª fase do Romantismo Brasileiro. Nosso Romantismo tem como 1ª fase o indianismo de um José de Alencar, uma segunda fase byronista da qual Álvares de Azevedo é o mais lembrado, e a 3ª fase que inicia um giro no sentido da análise social, culminando com o denominado Realismo. Astrojildo Pereira dedica um ensaio inteiro à essa suposta divisão, não a negando, mas advertindo não se tratar exatamente de uma ruptura. Mesmo com um pé no romantismo, já se evidenciava em obras anteriores como “A Mão e a Luva”, a preocupação com análise psicológica dos personagens. Mas este esforço de análise e crítica de costumes vai ganhando maior amadurecimento ao longo do tempo, encontrando sua maior plenitude em suas obras de maturidade: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borbas e Memorial dos Aires.“Ele (Machado de Assis) era um dialético inato, sua maneira de pensar era dialética, e seu pensamento aparece impregnado de elementos dialéticos. Isto me parece incontestável. Creio também que a essência materialista do seu pensamento não oferece margem a dúvidas sérias. Todavia, seria em todo incorreto e insensato supor ou concluir que Machado de Assis foi um “materialista dialético”. Nem podia ser, num país como o nosso, na época e nas condições em que viveu. Mas dentro de tais limitações objetivas, é evidente que seu pensamento avançou tanto quanto era possível. E nisto reside, a meu ver, um dos mais luminosos sinais da sua grandeza”.
É verdadeiramente uma pena que este importante ensaio de Astrojildo Pereira não encontra nova publicação, pelo menos nos últimos 30 anos. Trata-se de uma análise marxista do mais importante escritor de ficção do Brasil, escrita pelas penas de alguém que foi capaz de interpretar e tirar conclusões do texto machadiano à frente do seu tempo. Já é tempo de uma redescoberta desta obra, hoje apenas vista em sebos.