Bem podem Passos Coelho e os propagandistas a soldo rejubilarem com a compra de dívida pública a privados com juros abaixo dos 5%, anunciarem um bacoco "regresso aos mercados", o começo do fim da crise e a tentar convencer-nos que afinal o governo e a troika tinham razão, que os sacrifícios valeram a pena – o governo continua sem qualquer crédito, a cair nas intenções de voto para patamares nunca vistos, e a ser tratado pelo povo de ladrão e canalha. Por isso, apesar de algum esforço de contenção, a mão dura policial, as perseguições, os métodos pidescos e as acusações forjadas contra os "profissionais da desordem" mostram que o governo está consciente de que a resistência e a indignação popular vão subir de tom este ano com o anunciado agravamento das medidas de austeridade e que é preciso atalhar.
Já lá vai o tempo em que resignados, todos baixavam as orelhas quando os governantes reclamavam sacrifícios para controlar o défice das contas públicas, cortando nos salários e direitos dos trabalhadores, sempre em nome de tempos melhores – desde o 25 de Novembro, já lá vão quase 40 anos, não houve nenhum governo que não fizesse do esbulho dos trabalhadores a condição essencial para o desenvolvimento da economia e do país. Agora são tantos os casos de corrupção e ladroagem que vêm a público, é tão claro que são os que menos têm que estão a pagar a crise enquanto os muito ricos passam por ela sem a sentirem, está tão a nu o obsceno o estilo de vida das classes ociosas que a paciência dos debaixo começa a esgotar-se. Nas manifestações do último ano não foram só os militantes partidários, e os quadros sindicais que vieram para a rua, mas também os precários, os que sobrevivem com menos de 500 euros/mês, os desempregados com e sem subsídio, os reformados com 200 e tal euros, os que recebem esmolas do estado de 150 euros... e, principalmente, as classes médias da burguesia, que não costumam meter-se nestas coisas de manifestações.
A CGTP, o BE e o PCP não se cansam de explicar, uma e outra vez nas televisões, de modo persuasivo, que sem salários decentes e emprego não há volta a dar à crise, a economia não se desenvolve, não há mercado, não há procura, e assim a roda do capital não anda. Que com a receita e a tutela da troika o país não sai da crise, o que será mau para todos. E têm toda a razão. Então porque apesar da sua pedagogia não se entendem patrões e governantes face ao óbvio, apesar de tão críticos da obstinação de Coelho e Gaspar relativamente ao défice, ao fantasioso corte de 4% na despesa pública e à recusa em renegociar o memorando, prazos de pagamentos e empréstimos?
Explicam os comentadores encartados que os trabalhadores, os sindicatos, o BE e o PCP, podem ter muita razão, mas as coisas são como são. As imposições das troika podem ser duras, mas são necessárias (o Gaspar e o Coelho é que não precisavam de exagerar). Os capitalistas não investem se não virem boas perspectivas de lucro – o que significa baixos salários, maior ritmo e flexibilidade laboral, liberdade para despedir, e barato, altos níveis de desemprego... para nos tornarmos competitivos.
Há momentos em que à lógica da razão tem que se juntar a lógica da força. Se isto é verdade nos tempos normais, ainda o é mais nos períodos de crise. Que importa ao governo, à União Europeia, ao Banco Central Europeus, ao FMI, à burguesia portuguesa e europeia que os trabalhadores se sintam cheios de razão se essa razão não se manifesta em actos mais contundentes e conscientemente anticapitalistas e antidemocracia burguesa que um dia de greve e manifestações por "mais democracia já". As classes dominantes vão continuar assim enquanto deixarmos. Se a revolta popular chegou para travar a TSU, ela foi insuficiente para obrigar o governo e os abutres da troika a mudarem de política, a recuarem – contra os que muitos admitiam, o governo não caiu nem há sinais de que tal venha acontecer, o OE com toda a sua dramática carga de mais austeridade foi aprovado, a oposição à esquerda do PS, a que rejeita a troika, não conquistou a adesão popular. O bloco central continua a recolher a preferência do eleitorado, ainda que nada convencido das virtudes do PS e menos ainda do PSD, ao mesmo tempo que cresce a abstenção.
Paulatinamente, o governo vai levando a água ao seu moinho.