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Flávio Aguiar

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Carta Maior

Os pecados originais dos Serviços de Inteligência da Alemanha

Flávio Aguiar - Publicado: Terça, 10 Julho 2012 01:28

O esperado depoimento do ex-chefe da Agência Federal para a Segurança da Constituição (Bundesamt für Verfassungsschutz), Heinz Fromm, na Comissão Parlamentar de Inquérito do Bundestag que investiga crimes da extrema-direita, foi recebido num clima de decepção generalizada.


Segundo vários comentários na mídia local nesta sexta-feira (6), tratando do depoimento tomado na quinta (5), ele só mostrou a existência de um caos interno na agência, um desencontro com as agências complementares nos estados (as chamadas Landesämter für Verfassungsschutz), e exibiu um constrangedor desconhecimento do que ali se passa pelo seu chefe, que, presuntivamente, deveria conhecer tudo em profundidade.

Ou então o ex-chefe não teria contado tudo o que sabe. A CPI do Bundestag investiga as atividades de uma célula do Grupo Clandestino Nacional-Socialista (ou de Resistência; a palavra em alemão, no contexto, se presta para as duas interpretações: Untergrund, embora a palavra mais comum para resistência seja Wiederstand), formada por dois homens e uma mulher, responsável por uma série de assassinatos, atentados a bomba e assaltos a banco durante 13 anos. A renúncia do chefe da agência foi provocada pela informação de que documentos relativos ao caso – de uma chamada "Operação Rennsteig", destinada a recrutar informantes – tinham sido destruídos em seguida à descoberta da célula. No depoimento Fromm esclareceu apenas que esses documentos poderiam se referir a uma tentativa de recrutar a mulher do grupo – Beate Zschäpe.

É muito pouco, como esclarecimento.

O caso trouxe à tona, de qualquer modo, alguns pecados originais do Serviço de Inteligência alemão, que podem ajudar a entender como se chegou a esse ponto crítico.

Não é uma história muito bonita.

Há duas grandes agências no setor. A primeira, na verdade historicamente mais antiga, embora tivesse outros nomes, é o Bundesnachrichtendienst, Serviço Federal de Informações.

Seu DNA histórico é extremamente complicado e revelador. A origem dele está no Serviço de Espionagem Nazista sobre a União Soviética e o Exército Vermelho, liderado pelo Major General Reinhard Gehlen (1902–1979). Gehlen reuniu uma massa considerável de cópias dos relatórios sobre seus alvos, colocou-as em tonéis e enterrou-as em solo austríaco. Sempre agiu em causa própria. Soube da conspiração para matar Hitler, que redundou no fracassado atentado de 20 de julho de 1944. Nem se envolveu, nem a denunciou. Quando a guerra terminou, Gehlen entregou-se – com as informações – aos norte-americanos, negociando sua liberdade e o perdão. No novo cenário da nascente Guerra Fria, ele tornou-se peça chave. Durante alguns anos trabalhou para os serviços secretos norte-americanos, sendo aprovisionado pela CIA. Recrutou ex-companheiros do seu Serviço Secreto (35) e foi recrutando gente das finadas Gestapo e SS, chegando a 350. O serviço que montou ficou conhecido como "Organização Gehlen", ou simplesmente, a "Org.".

Em meados da década de 50 o exército norte-americano passou essa "Org." para o governo da Alemanha Ocidental, então sob a chancelaria de Konrad Adenauer, que formou, com ela, o Bundesnachrichtendienst, voltado para o mundo exterior – ou seja, na época, sobretudo o mundo comunista e a vizinha, co-irmã e inimiga, Alemanha Oriental.

Nesta, já crescia a Stasi, a polícia política, criada nos moldes da KGB soviética, fundada no começo dos anos 50. A Stasi – uma das polícias mais temidas e brutais do lado Oriental – cresceu desmesuradamente. Em 1989, quando o muro de Berlim caiu, a Stasi tinha 91 mil agentes fulltime, 1.500 na Alemanha Ocidental. E mais de 170 mil informantes regulares, sem contar os ocasionais, estimados em mais de 200 mil.

Esse é o detalhe mais significativo: a multiplicação dos informantes. Num clima de espionagem e Guerra Fria, foi inevitável que esse setor e essa prática crescessem de parte a parte. O Bundesnachrichtendienst, que nessa altura já tinha 4 mil funcionários regulares, também passou a se valer daqueles. No vaivém subseqüente, dá para imaginar a confusão: estima-se que, dos informantes em ação, 90% eram agentes duplos, isto é, trabalhavam para – e ganhavam dos – dois lados.

Gehlen entrou em decadência a partir de 1963, acusado de nepotismo e proteção de amigos, além de atitudes relapsas, como excesso de licenças. Assim mesmo, quando deixou seu cargo, em 1968, tornara-se um dos únicos oficiais duplamente condecorado: pelos nazistas e pelo governo federal.

Do lado da Stasi também houve o emprego de antigos agentes policiais nazistas, da Gestapo, inclusive. Afinal, para montar um serviço de informação, é necessário buscar quem as tenha, e saiba interpretá-las e manejá-las.

Já o órgão agora em tela, o Bundesverfassungsschutz, teve outra origem. Criado em 1950, seu objetivo era monitorar movimentos internos na Alemanha Ocidental. De início tentou-se que se valesse sobretudo do que se convenciona chamar de "fontes abertas" – "open sources" – ou seja, o processamento analítico de informações publicamente disponíveis. Mas como seu objeto primeiro foi monitorar movimentos comunistas e reminiscências nazistas (excluída a então Organização Gehlen), foi inevitável, no clima de Guerra Fria, que também mergulhasse no mundo dos informantes e infiltrados, misturando-se, inclusive, mais tarde, com os do Bundesnachrichtendienst.

Os tempos passaram, o muro caiu, a Stasi hoje é considerada uma "organização criminosa", alguns de seus membros foram presos, a maioria não, outros alvos entraram na mira, particularmente depois do 11 de setembro.

Mas os métodos e os hábitos permaneceram. O mundo dos informantes e das infiltrações continuou a ser vital, inclusive em relação aos grupos de extrema-direita. A tal ponto chegou essa prática que já houve casos de juízes declararem não poder exercer seus poderes por não saberem se estarão julgando criminosos ou infiltrados que se tornaram mais nazi do que os neonazis. Estariam, portanto, julgando acusações que poderiam envolver políticas de Estado. (O que não seria ruim, na minha opinião).

Esse é o caldo de cultural que torna, ao mesmo tempo, turvo e transparente esse caso da chamada "célula de Zwickau", descoberta no fim do ano passado, cujas ramificações nas agências governamentais e nas polícias locais ainda estão por serem esclarecidas, porque os limites entre infiltração, leniência e cumplicidade se tornaram muito tênues.

De fato, o ex-chefe do BfV, sigla do órgão que dirigia, deve ter muito o que calar.
Ou desacreditar mais ainda o serviço todo, se falar.

De todo modo, registre-se que as investigações estão caminhando e com conseqüências palpáveis, como a demissão em tela.

PS – Todas essas informações e muitas outras estão disponíveis na internet. Uma boa pista é começar pelo nome "Reinhard Gehlen". O labirinto é grande, tem várias entradas e nenhuma saída.


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