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Carlos Taibo

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Queda do império

Cortes, crescimento, Syriza

Carlos Taibo - Publicado: Sábado, 09 Junho 2012 17:15

Como amiúde acontece, a lógica argumental do sistema obriga-nos a escolher entre duas opções que não podem ser as nossas. Se a primeira -falo do principal debate que se revela hoje nos países que têm o euro como moeda- assinala que não fica mais remédio que assumir cortes dramáticos do gasto público, a segunda percebe que o anterior é um erro e que esses cortes devem limar-se para permitir que as economias recuperem a senda do crescimento.


Enquanto a senhora Merkel abraçaria a primeira posição, o recentemente eleito presidente francês, Hollande, postularia a segunda. Entalados como estamos entre essas duas opções, parece como se não houvesse nenhum horizonte diferente.

Está claro por que há que rejeitar a primeira das perspectivas anotadas. Os cortes mencionados obedecem ao evidente propósito de fazer com que paguem justos por pecadores. Na essência do jogo de hoje, o que se debruça é uma formidável vigarice: quem, através de práticas lamentáveis, provocou um engorde espectacular da dívida privada recebeu quantidades ingentes de recursos públicos para sanear as suas instituições financeiras. O efeito foi duplo: enquanto, por uma parte, com o dinheiro de todos -e da mão de um engorde notável, resultado da dívida pública- sanear imorais empresas privadas, pela outra estas últimas, graças aos recursos recebidos, impuseram regras do jogo de obrigado cumprimento, traduzidas em retrocessos significativos no gasto público em saúde, educação e pensões.

Seica não é tão evidente, em troca, por que há que pôr má cara perante a segunda opção que nos ocupa. Ninguém negará que parte de uma premisa fundamentada: a política de cortes, sobre o papel encaminhada a permitir que a crise fique atrás, entrava poderosamente qualquer recuperação económica e, como tal, prima com descaramento os interesses privados e situa-nos diante de uma recessão prolongada. Não faltam, contudo, os problemas nesta segunda opção. Se assim se quiser, são fundamentalmente três.

O primeiro é que a perspectiva que nos ocupa, aberrantemente curtopracista, só parece interessar pela crise financeira e deixa no esquecimento as outras crises que estão na parte de trás. Nesse sentido prefere contornar a conclusão de que o crescimento económico não é essa panaceia resolutória de todos os males que retrata o discurso oficial: pouco ou nada tem que ver com a coesão social, mantém uma nebulosa relação com a criação de emprego, propicia o despregamento de formidáveis agressões ambientais, facilita o esgotamento de recursos escassos, assenta amiúde no espólio da riqueza humana e material dos países do Sul, e, em definitivo, sustenta um genuíno modo de vida escravo que nos convida a confundirmos sem mais consumo e bem-estar.

Hora é esta de mencionar um segundo problema na percepção que faz da recuperação do crescimento o objetivo fundamental. Dá por feito que se o PIB voltar a crescer, irá resolver-se magicamente a maioria dos ingentes problemas sociais em que estamos mergulhados. Deparamos aqui com uma superstição mais. Se a economia espanhola era 100 em 2007, antes do estourido da crise financeira, hoje fica em 97. Com estas duas quantidades na mão, não parece que a deterioração seja tão notável como se nos sugere. O que deve preocupar-nos não é o retrocesso de três pontos na riqueza geral, mas, assim a tudo, a distribuição, cada vez mais desigual, dessa riqueza. E, contudo, esta dimensão fica num segundo plano, absorvida pela intuição de que os problemas dos de abaixo ficarão diluídos no nada se o crescimento económico reaparecer. Nada mais afastado da realidade. Há que afirmar com rotundidade, assim a tudo, que num palco em que no Norte opulento deixamos muito atrás as possibilidades ambientais e de recursos que a Terra nos oferece, poderemos viver melhor com 80 -não com 120, com 100 ou com 97- se formos capazes de reorganizar as nossas sociedades e de redistribuir a riqueza. Sair do capitalismo impõem-se a respeito disso, claro, como urgência.

Deixemos constância, enfim, do terceiro problema que assedia a proposta que parece abraçar o novo presidente francês e, com ele, o conjunto da social-democracia, declarada ou encoberta. Refiro-me à ilusão de óptica de que podemos, sem mais, regressar à aparente bonança anterior a 2007. Esta pretensão ignora palmariamente que o que hoje arrastamos não é senão uma consequência linear do que tínhamos daquela. Nutre-se, de resto, da conclusão de que o papel da esquerda progressista deve estribar em obrigar o capital a reconstruir a regulação que foi tirando pelo bordo nos últimos decénios. Em tal sentido, continua sem conceber outro horizonte que o do capitalismo e defende sem cautelas uma instituição, os Estados do bem-estar, que, junto à suas inegáveis virtudes, mostras e inseparável da lógica de fundo daquele, assenta de sempre em fraudulentos pactos sociais, reclama por necessidade a lógica pseudodemocrática da representação, ratifica uma economia de achados que castiga indelevelmente as mulheres, nenhuma solidariedade preconiza no que se refere aos países do Sul e, enfim, parece dificilmente sustentável no terreno ecológico.

Que berrante é que no discurso da esquerda progressista, obsesionada nestas horas com o crescimento e desentendida da distribuição -veja-se, senão, a patética proposta quotidiana de Alfredo Pérez Rubalcaba-, faltem sempre as palavras autogestão e socialização, não se aprecie nenhuma piscadela encaminhada à criação de espaços de autonomia com respeito à lógica do Capital e a contestação da ordem da propriedade existente brilhe, em soma, pela sua ausência. Em semelhantes condições, a aposta consequente aponta para resolver alguns problemas de curto prazo à conta de agudizar de forma preocupante todos os restantes.

A afirmação de que vivemos acima das nossas possibilidades, tão comum nos últimos tempos, tem um significado diferente se antes se enunciou uma crítica cabal da miséria em que estamos imersos ou se, ao invés, semelhante crítica não se abriu caminho. Enquanto no primeiro caso remete para uma realidade reconhecível -é verdade que no Norte opulento vivemos acima do que o planeta e a equidade nos permitem-, no segundo traduz-se numa genuína vigarice moral: quem viveu acima das suas possibilidades é o senhor Botim. A disputa correspondente tem algum eco noutra que se refere à idoneidade do termo austeridade para descrever as nossas opções. Uma coisa é que rejeitemos -não pode ser de outro modo- as políticas de austeridade que se nos impõem ao serviço dos interesses do Capital, e outra que não nos demos conta da necessidade de assumir, os que pudermos, na nossa vida quotidiana e nas nossas respostas coletivas, fórmulas de sobriedade e de singeleza voluntárias.

Bom seria que de todo o anterior tomassem nota os amigos da Syriza na Grécia. Não desejo ignorar de jeito nenhum que a coligação de esquerda radical grega fez as suas propostas programáticas muito sugerentes. Muito me temo, contudo, que se, além de seguir a brandir o fetiche do euro, a Syriza assume de bom grau a perspectiva hollandiana de encaramento da crise, a do crescimento, a conclusão estará servida: bem podemos achar-nos ante o enésimo rebento de uma miséria, a social-democrata, que se nega a abandonar-nos.


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