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Carlos Taibo

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Queda do império

Palavras no Obradoiro

Carlos Taibo - Publicado: Quinta, 30 Junho 2011 02:00

Carlos Taibo

Palavras no Obradoiro de Compostela, após a manifestação convocada por Democracia Direta Já, a 19 de junho de 2011.


Esta primeira batalha ganhamo-la nós: hoje no Obradoiro há mais gente do que quando veu o Papa. O que ides escutar não são outra cousa que ideias minhas que a ninguém comprometem. Gostaria de desenvolver, mesmo assim, quatro observações sobre perceções que se estão fazendo valer em relação com este movimento nosso.

Eis a primeira. Nos últimos dias se está a dizer com frequência que este movimento tem um caráter violento. Não é verdade: a única violência que conhecemos no decurso das últimas semanas foi a desenvolvida pelos corpos policiais, umas vezes de forma manifesta, outras vezes através desses rapazes atléticos que levam a cabeça coberta com carapuças. Não é nada que não soubéssemos antes. Quero lembrar-vos que, ao abeiro de muitas das manifestações antiglobalização, os meios de incomunicação do sistema emprestaram toda a sua atenção ao facto de um grupo de manifestantes lançar pedras contra as montras do Corte Inglês. Sempre esquecem, porém, a violência quotidiana dos nossos sistemas: a de muitos empresários sobre os seus trabalhadores, a de tantos homens sobre as suas mulheres, a da polícia contra os sem papéis, a que todos e todas exercemos contra a natureza e, enfim, e nomeadamente, a que assume a forma de genuínas guerras de rapina na procura das matérias primas energéticas dos países pobres.

Se alguém se perguntar pelas razões de tanta violência, responderei decontado que têm medo de nós. E nestas horas têm medo porque sabem que este é um movimento que coincide com opiniões muito espalhadas entre os nossos concidadãos. Aqui como em tantos outros âmbitos as cousas mudaram: se até bem pouco a violência dirigida contra os movimentos contestatários provocava medo e retirada, agora o que gera é, pelo contrário, um visível afortalamento em convições e iniciativas.

Afirmou-se amiúde nos últimos tempos, desde perspetivas bem diferentes das que venho de analisar nos últimos minutos, que este é um movimiento em excesso moderado, que pouco mais reivindicaria que medidas contra a corrução e reformas na lei eleitoral. Não é verdade, e a primeira demonstração forte de que é assim é precisamente esta manifestação, em aberta contestação do Pacto do Euro.

Há seis anos foi organizado entre nós um referendo sobre a mal chamada Constituição Europeia, que depois foi imposta sob a forma do Tratado de Lisboa. Alguém fez então um curioso estudo estatístico: nesses dous textos a palavra mercado aparecia 78 vezes, falava-se em 27 ocasiões da livre competência, mas só numa oportunidade se mencionava, e na parte retórica inicial, o pleno emprego. Não é difícil identificar o que está por detrás na forma de uma triste realidade política: são formidáveis corporações económico-financeiras as que ditam a maioria das regras de jogo. Esta estimulante figura inteletual que é o ex-presidente do Governo espanhol, José María Aznar, adoitava perguntar-se pelos problemas de legitimidade próprios dos movimentos de resistência frente à globalização capitalista. Perguntava-se, de maneira mais precisa, quem nomeara aos vozeiros desses movimentos e a quem representavam essas gentes. Claro é que Aznar estava no seu direito de formular tais perguntas. Talvez teria sido mais lógico, porém, que tivesse começado por perguntar-se pelo mais importante. E que é aqui o mais importante? Tem o seu relevo saber, por exemplo, como foram escolhidos os máximos responsáveis do Fundo Monetário Internacional ou da Organização Mundial do Comércio, ou, mais ainda, quem eligiu aos proprietários dessas empresas que entre nós ditam a maioria das regras de jogo.

Parecem evidentes, aliás, as consequências desse Pacto do Euro que vai ser assinado o dia 27: reduções salariais no setor público, ampliações na idade de reforma e congelação das pensões, garantias de que o despedimento será mais barato, rebaixas nos orçamentos em sanidade e educação, medidas de proteção, enfim, das grandes corporações financeiras. Uma repetição, noutras palavras, do que já sabiamos: os poderes públicos seguem a ajudar aos poderosos, enquanto os débiles não perderão a sua condição de vítimas dos desafiuzamentos. E isto num cenário onde os benefícios das empresas que seguem a reduzir o número dos seus empregados crescem espetacularmente. Esta semana soubemos, sem ir mais longe, que Inditex, esta filantrópica empresa radicada em Arteijo, obteve benefícios de 322 milhões de euros nos primeiros três meses deste ano. Uma cifra suficiente para resolver os problemas sociais da Galiza destas horas.

Não falta, em terceiro lugar, quem afirma que este movimento tem pouco futuro. Eu penso, pelo contrário, que tem uma franca vontade de ficar, e de ficar, de resto, sobre a base de quatro grandes objetivos.

O primeiro é a necessidade de contestar o capitalismo que padecemos. O capitalismo é um sistema que historicamente demonstrou uma formidável capacidade de adatação aos cenários mais diferentes. Essa capacidade está a desaparecer, porém, hoje: sobram os argumentos para afirmar que o capitalismo está a perder os mecanismos de freio que no passado permitiram a sua salvação. Levado de um impulso fortíssimo encaminhado a multiplicar os benefícios num período de tempo muito breve, bem pode estar cavando a sua tumba. Seria saudável, então, que nós não estivemos dentro dessa tumba. A nossa proposta foi bem retratada nesse cartaz que pendura da catedral: "O capitalismo não se reforma: destrui-se".

O segundo é a luta anti-patriarcal. Não podemos esquecer a marginalização, a exploração e a exclusão que padecem tantas mulheres, no âmbito material, no simbólico e no dos valores. Nunca sublinharemos de maneira suficiente que o 70% dos pobres existentes no planeta são mulheres. Devo salientá-lo: não estou a falar de um 52% de mulheres pobres frente a um 48% de homens. A diferença é de 70 a 30.

O nosso terceiro alicerce chega da mão dos direitos das gerações vindouras e, como eles, os das outras espécies que nos acompanham no planeta Terra. Amiúde confundimos entre nós o crescimento e o consumo, por um lado, e o bem-estar e a felicidade, pelo outro. Se vivemos, de resto, num planeta com recursos limitados, não parece que tenha muito sentido a aspiração a seguir crescendo ilimitadamente, tanto mais quanto que não há garantia nenhuma de semelhante crescimento se traduzir numa maior felicidade.

Menciono o quarto elemento motor importante: o que nos fala dos direitos dos povos do Sul. De novo estou na obrigação de identificar um dado evidente: o momento mais delicado da nossa crise remete a uma situação claramente preferível à própria do momento mais airoso das economias da maioria dos países do Sul. Há pouco mais de um mês, na Porta do Sol de Madrid, perguntei se alguém conhecia alguma declaração de voceiros do Partido Socialista ou do Partido Popular que incluísse alguma crítica das miseráveis políticas que desenvolvem as transnacionais espanholas em Colómbia ou em Equador, em Perú ou em Bolívia, na Argentina ou no Brasil.

Quero transmitir-vos uma última reflexão. Com frequência se tem afirmado que este movimento é uma iniciativa criada em Madrid que, em consequência, obedeceria a um projeto vertical é hierárquico. Não é verdade: este é um projeto que tem como única base a assembleia, e que considera que esta é plenamente soberana e constituinte. Um projeto, além do mais, de autoorganização e de autogestão, no seu interior e na sociedade na que quer desenvolver-se. Nessas condições, que problema haverá para que esse projeto seja genuinamente galego? Que outra cosa, aliás, poderia ser, e em que outra língua haveria de se manifestar senão nesta que estou a falar agora?

Quando o 15 de maio me convidaram a falar no ato que fechou a manifestação na Porta do Sol de Madrid, decidi terminar com umas palavras de Martin Luther King, o promotor principal do movimento pelos direitos civis

que agromou nos Estados Unidos cinquenta anos atrás. Essas palavras, que creio são bem acaídas para retratar o nosso espírito destas horas, rezam assim: "Quando reflexionemos sobre o nosso século, o que nos parecerá mais grave não serão os crimes dos malvados, senão o arrepiante silêncio das boas pessoas". Hoje, e aqui no Obradoiro, prefiro rematar com um trecho, na nossa língua, de uma canção bem conhecida. O seu autor chama-se Zeca Afonso e tem, se não estou errado, uma rua em Compostela, e isso que não era nem bispo nem militar nem virrei. A canção intitula-se Grândola, vila morena, e o trecho mencionado diz assim: "Grândola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade. Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade, Grândola, vila morena, terra da fraternidade".

Pois isso: que os tempos são chegados.


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