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Fundamentos do nojo

A falácia do alternativo. Perante as jornadas 'saúde sem capitalismo'

ngelo Pineda - Publicado: Sexta, 13 Mai 2011 02:00

Ângelo Pineda

Há uns dias, chegou-me o anúncio dumas “Jornadas de Saúde Sem Capitalismo” que se celebrarão a próxima semana em Ourense organizadas por dois centros sociais da cidade.


O problema da relação entre a saúde e o capitalismo é se calhar mais interessante pelo grau de atualidade que apresenta a temática. Com efeito, na Galiza vivemos uma política orçamentária de curtes e de desmantelamento do Estado Providência que afeta a áreas essenciais para o bem-estar social. Entre estas áreas destaca a sanidade pública, vítima dum processo de degradação, programado com a intenção de apresentar o capital privado como salvação do sistema. Os efeitos desta degradação já são facilmente constatáveis nos diferentes centros de saúde do país e se estão a dirigir cara a uma visível míngua da qualidade no serviço.

O cenário que desenha a progressiva privatização da sanidade não pode ser mais desalentador: incremento da desigualdade social mercê à diferenciação da oferta assistencial, perda da universalidade do direito à saúde, sujeição deste a cálculos, estratégias e lógica de mercado, etc. Definitivamente, a aparição de diversos riscos sérios para a saúde das classes subalternas da nossa sociedade.

Entre estes riscos, eu tenho a hipótese de que a míngua na capacidade de resposta do sistema aos problemas de saúde pública favorecerá o florescimento dum mercado para esse conjunto de atividades fraudulentas que se conhece por rótulos tais como “terapias alternativas” ou “medicina não intrusiva”. O tempo dirá.

No entanto, o pensamento mágico vai conquistando uma imerecida boa imprensa entre determinados sectores de esquerda de nula cultura científica seduzidos pelas acusações de conspiração contra a chamada “medicina convencional”, quando não de condenas à aberta submissão desta aos escuros interesses capitalistas da poderosa indústria farmacêutica. Enquanto a “medicina tradicional” aparece associada, num tosco reducionismo, à lobotomia ou ao doutor Menguele; toda forma de espiritismo, naturalismo transcendente, orientalismo e demais bobagens-placebo são exaltadas por determinados avançados pós-modernos. Assim é freqüente a defesa do chamado “parto natural”, a oposição à vacinação e o negacionismo da SIDA ou o cancro, ignorando de jeito irresponsável os importantes riscos que supõem estas esquisitices quando são tomadas em consideração por alguém.

É assim que, apesar de que o título das jornadas de Ourense prometia, e de que sou partidário da cordialidade entre o pessoal de esquerdas; não posso menos do que manifestar a minha profunda decepção uma vez lido o programa; consistente na apologia da anti-psiquiatria, o veganismo, a homeopatia, a cromoterapia e a cinesiologia aplicada. A ignorância não é escusa. A esquerda da Galiza não deveria nunca ver-se misturada com este tipo de fraudes e deveria combater de maneira ativa essa falácia ou preconceito tão tipicamente nosso que consiste em adotar de jeito acrítico qualquer posição “alternativa” pelo simples fato de ser alternativa. Sob a minha opinião, não somos – não deveríamos ser!- de esquerda por levar a contrária a tudo: somos de esquerda porque buscamos a verdade das coisas e, a partir dela, queremos melhorar a vida da gente. Essas jornadas nada têm a ver com a saúde, é gravíssimo.

Por exemplo, a exposição sobre o movimento anti-psiquiátrico que abre as jornadas. A anti-psiquiatria como postura teórica e movimento social fundamenta-se em que a definição de “doença mental” é social e, portanto, os pacientes seriam considerados como dissidentes e seriam reprimidos pela psiquiatria. Goffman, um dos seus expoentes, considerava a doença como um estigma eminentemente social que determinava a vida da pessoa que era rotulada como “doente”. Lamento-o por Goffman, por Foucault ou por Szasz: a observação da atividade cerebral ou os avanços da genética relegaram esta tendência à reserva das lindas teorias cientificamente defasadas. Ultrapassando o plano estritamente científico (ou de saúde) e passando a um ético, devemos reconhecer que a psiquiatria ganhou uma merecida má fama devido a múltiples abusos que se cometeram no seu nome. O movimento anti-psiquiátrico pôde ter apostado pela humanização das pessoas doentes e pela constituição de regimes de internamento dignos. No seu lugar, lutou pelo feche das instituições psiquiátricas –consideradas penitenciárias- e pela reintegração do paciente “à comunidade”. Como tem amostrado a sociologia, e o caso dos EUA é paradigmático, “a comunidade” não está qualificada para tratar de maneira adequada determinados transtornos mentais. Uma boa parte dos pacientes emancipados passaram a engrossar a população “sem-teto” ou a viverem da beneficência. Criaram-se verdadeiros guetos povoados por doentes, como o Uptown de Chicago, mercê à especial atenção que as reivindicações anti-psiquiátricas receberam da administração; até de governos tão pouco suspeitos de progressismo como o de Ronald Reagan em Califórnia (1967-1975). Sempre são menos onerosas para a administração as casas beneficência que brindar uma assistência médica qualificada como resposta a doenças que podem ser crônicas. Intuo que são aspetos que não sairão na linda palestra inaugural.

Suponho que a presença duma “nutricionista” no apartado das bondades veganas também não esclarecerá ao publico das jornadas a necessidade dos aminoácidos na alimentação procedentes das carnes, peixes ou derivados animais. Lástima, manter uma dieta equilibrada prescindindo disto é extremadamente difícil. E conste que, desde uma perspectiva ética, entendo perfeitamente o veganismo; sobretudo à luz da brutalidade com a que a miúde a indústria alimentar trata os animais. Mas falávamos em saúde, não é?

Sobre a homeopatia, a cromoterapia ou a cinesiologia aplicada... O que dizer que não seja sabido? Não superam uma prova de duplo-cego. Aceita-las implica acreditarmos por pura fé que a água tem memória, que a luz e as cores curam ou que se pode fazer uma diagnose por como se mexe o pessoal. Implica também acreditarmos que a ciência se equivoca ao refutá-las por serem placebos. A mesma ciência que incrementou de maneira substantiva a duração e a qualidade de vida dos seres humanos. A mesma que relegou quase à extinção doenças pelas que morria um número significativo de pessoas há apenas um século. Escolham o seu bando.

Do resto da jornada não me atrevo a falar porque ignoro a orientação ou o enfoque. Não o espero, mas desejo que seja algo melhor que todo o precedente. Apenas tenho uma ligeira suspeita na palestra sobre gestão da saúde: uma palestrante falará sobre um projeto de “autogestão” da sanidade numa vila da Colômbia. Ignoro a realidade daquele país e suponho que se devem tomar iniciativas duvidosas no caso de quebra do estado. Mas que ninguém se engane: a única opção de esquerdas possível na nossa área geopolítica é a gestão pública da sanidade face qualquer outra modalidade de gestão ou “autogestão”, por muito cooperativa que for.

Estas são coisas que as entidades organizadoras deveriam ter tido em conta antes de cometerem o erro demagógico de identificar sub-repticiamente o capitalismo com a chamada “medicina convencional”. Para outra ocasião, os companheiros e as companheiras deveriam entender, sobretudo num tema tão sensível como este, que a dicotomia entre “medicina convencional” e “ medicina alternativa” não existe. A única medicina existente é a que funciona, e a única medicina que funciona é a que pode demonstrá-lo; a que se fundamenta numa acumulação de conhecimentos procedente duma observação sistemática e estruturada, a que bebe dos avanços de outras ciências auxiliares, a que busca em definitiva a adequação à realidade e não as intervenções divinas, espirituais, anímicas ou de energias não mesuráveis. Os companheiros e companheiras deveriam considerar também que quando tenham um problema de saúde, sempre é melhor pôr-se em mãos de alguém que sabe realmente o que faz.


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