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Manoel Santos

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Às vezes ouço passar o vento

FSM: o Sul no Norte, o Norte no Sul

Manoel Santos - Publicado: Sexta, 01 Abril 2011 01:45

Manoel Santos (Altermundo)

"O nosso Norte é o Sul". Com este lema iniciava a 24 de Julho de 2005 as suas transmissões o canal Telesur -hogano participada pela Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua, Uruguai e Venezuela-, que tencionava, e tenciona, servir de contrapeso na América Latina aos grandes canais internacionais de notícias do Norte, como CNN, Fox e Univisión, e a poderosíssimos grupos, como Cisceros, Prisa, Televisa e Clarín. Em muitos dos países do subcontinente estas corporações engoliram historicamente até 98 por cento das audiências, de modo que, como Eduardo Galeano disse na apresentação do referido canal, "os latino-americanos foram obrigados durante 513 anos a se olharem a eles próprios com os olhos de outros".


O mote de Telesur é bem significativo, porquanto delata a tomada de consciência de muitos povos latino-americanos quanto ao domínio e exploração do Norte geopolítico, do centro do sistema-mundo. Uma tomada de consciência que, não sendo nova, tem adquirido maior relevo nas duas últimas décadas, que coincidem com a aplicação unilateral e selvagem do capitalismo no planeta, o que chamamos neoliberalismo.

Deste modo, desde finais da década de 1990, e com especial incidencia na América do Norte latina, produzem-se dois fatos que não podem ser uma simples coincidência. De uma parte, o surgir de uma consciência global contra o neoliberalismo, a gerada pelos movimentos antiglobalização desde o levantamento zapatista em Chiapas em 1994; ao que se seguiram as grandes mobilizações contra as instituições financeiras internacionais (IFI) -OMC, FMI, Banco Mundial-, contra os lobbies de países ricos -G7, G8, G20- e contra as transnacionais; e paralelamente o nascimento do Foro Social Mundial (FSM) em Porto Alegre em 2001.

Por outra parte, o acesso ao poder em muitos países de forças políticas -a maioria das vezes apoiadas por fortes movimentos sociais, como aconteceu com o Pacto de Unidade que apoiou o MAS na Bolívia ou o MST no Brasil- que decidem romper com a secular submissão dos governos do Sul a a respeito dos do Norte e que mesmo liquidam os pesados ónus impostos pelas IFI e os seus planos -ou extorsões- de ajustame estrutural, como o Equador, Venezuela, Brasil e Argentina fizeram.

Os dois processos simultâneos produziram entre outras coisas o desprestígio mais absoluto das IFI e também a entrada destas em crise. Os escândalos de corrupção surgiram então no Banco Mundial e o FMI entrou numa carência "de liquidez" sem precedentes. Os seus rendimetnos desceram de 3.190 milhões de dólares em 2005 a só 635 milhões em 2009, de modo que na Cúpula do G20 de Abril de 2009 em Londres, os "líderes" mundiais decidiam resgatá-lo cuadriplicando a sua capacidade financeira a um bilião de dólares.

O FSM e a inversão polar

Apesar de que a hegemonía ultraliberal não foi nem muito menos derrotada pelos movimentos antiglobalização, ou altermundistas, estes alcançaram em só uma década discutir o seu domínio, o que não é pouco. O Sul geopolítico reivindica-se coma nunca antes na história. Ainda que o altermundismo, essa gigantesca rede de redes que está a mudar pouco a pouco o ambiente ideológico do planeta, seja bem mais que o FSM, a assembleia dos cidadãos da terra que se celebra centralizada a cada dois anos mas que tem inumeráveis apêndices em foruns regionais e temáticos quase que todos os dias; este serve de algum modo como catalisador, como aglutinador das experiências alternativas que vão surgindo no seio do ativismo, como gerador de um discurso global anti-hegemónico e, portanto, é um fabuloso termómetro do estado dos movimentos e também da sua antítese, o ultracapitalismo.

No que acabou de decorrer em Dakar (Senegal) entre 6 e 11 de Fevereiro, com a presença de quase 80.000 ativistas de 132 países e muitas nações sem Estado, que têm o seu próprio espaço no FSM, revelou-se coma em nenhum outro como a procura desse outro mundo possível, ou desses outros mundos possíveis, segue a avançar e nos permite ser quando menos semi-otimistas, como escrevia estes dias o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein no jornal mexicano La Jornada, todo um referente para o movimento de movimentos.

É verdade que o ultraliberalismo está se manifestando na sua forma mais agressiva nestes tempos de multicrise, mas existem bastantes indicadores, e o FSM é um deles, que manifestam que o (des)equilíbrio Norte-Sul em termos de hegemonía, quer política, quer social e mesmo económica, está a mudar pouco a pouco. Como afirmou o galego Xosé Manuel Beiras em Dakar, membro também do Conselho Internacional do FSM, está se produzindo, como aconteceu já umas vinte vezes nos últimos cinco milhões de anos no planeta com a inversão do campo magnético terrestre, uma virada na hegemonia mundial: "a cada vez mais, o Norte é o Sul e o Sul é o Norte", disse. Vários som os sinais que confirmam esta tendência.

Assim, enquanto os mandatários do Norte governam abafados pelos seus déficits públicos, as suas dívidas, o seu desprestigio e um descontentamento social crescente, tão só compensado pelo silêncio informativo -as greves seguem na Grécia, a indignação cresce na Islândia, a emigração volta a sacudir a Irlanda, etc.-, no Sul os governantes de esquerda vão cada vez mais da mão dos movimentos sociais. Boa mostra disto foi a presença em Dakar do presidente da Bolívia, Evo Morales, que foi convidado a falar no ato inaugural, do ex presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e de outros mandatários africanos. O de Lula é bem significativo porque, apesar de que deixou a presidência com um grau de popularidade e legitimidade a nível nacional e internacional sem precedentes, escolheu a órbita do FSM para sua reaparição a nível mundial depois de ser sucedido por Dilma Rousseff. Não reapareceu na ONU, nem em Davos nem nas próximas reuniões do G20. Foi na África e no FSM. Ali abaixo estão conscientes da importância deste tipo de movimentos para a emancipação dos seus países e as suas gentes. E as pessoas estão com eles.

Se esta inversão do campo hegemónico mundial é patente a nível político, também é a nível social. Enquanto no Norte se produz uma agressiva recessão ou total perda de muitíssimas conquistas sociais adquiridas no último século; em muitos países do Sul, com o indiscutível liderança dos latino-americanos, avança-se coma nunca antes na história na libertação social. Alguns dotaram-se de leis e mesmo de constituições extremamente progressistas. Tal é o caso das Constituições da Bolívia e Equador. E em todos os casos as estatísticas de progresso social são deslumbrantes. O próprio Lula gabava-se disto em Dakar: "A partir de 2003 Brasil afastou-se do neoliberalismo e empreendeu um novo modelo de desenvolvimento que permitiu redistribuír muita renda. Tiramos do limiar da pobreza 28 milhões de pessoas e inserimos 35 milhões na classe média, na maior mobilização social da nossa história".

A isto há que acrescentar a saúde da mobilização social. Atenuada e mesmo desativada absolutamente no Norte, onde os movimentos sociais são quase residuais e os sindicatos foram absorvidos pelas estruturas de poder, no Sul as organizações sociais -e também sindicais- crescem continuamente.

África, aonde pela terceira vez chegava o FSM para precisamente apoiar os seus movimentos, é uma extraordinária amostra disto. O dia 6 de Fevereiro, numa deslumbrante marcha inaugural de 70.000 pessoas, misturaram-se as cores de dezenas de movimentos feministas com o verde da Via Campesina, os berros dos sem voz -sem habitação, sem terra, sem trabalho...- com as reclamações dos pescadores artesanais, os coletivos defensores dos migrantes, as lutas contra o acaparamento de terras e os transgénicos, as campanhas anti-dívida, os defensores do comércio informal, as propostas ecologistas... A África em movimento. Um movimento extraordinariamente vivo que celebrou os processos revolucionários que se estavam a produzir no Norte da África, mas no Sul do planeta. Desde a América do Norte latina até a África e também em muitas partes da Ásia, os movimentos sociais desfrutam cada dia de melhor saúde e caminham para conquista de uns direitos que no Norte pareciam endêmicos.

O Sul ao resgate

Que os processos políticos, sociais e mesmo de libertação económica vão a mais no Sul e estejam em crise no Norte não é uma simples sensação. De fato, o campo preferido pelo FMI para os seus ajustes estruturais também mudou em vertical, de modo que muitos países europeus estão agora a mercê das exigências destas máfias mundiais de penhoristas que são as IFI. Se a partir da crise do petróleo de 1973 e a posterior crise da dívida o FMI e o Banco Mundial obrigaram muitos países do Sul, para serem resgatados, a aplicarem agressivas medidas liberalizadoras que sumiram as suas populações na dívida e na miséria, agora é o coração do sistema o danificado, o que tem que ceder, endividar-se e vender soberania à custa dos direitos sociais.

O Conselho Internacional (CI) do FSM reuniu-se em Dakar nos dias 12 e 13 de Fevereiro para fazer balanço e também para pôr sobre a mesa a possibilidade de organizar o evento de 2013 no Norte. Voltá-lo-á fazer em Maio em Paris, onde possivelmente se tome uma decisão definitiva. "Em solidariedade com as medidas de ajuste que está sofrendo seu povo", disse-me Cândido Gryzbowski, diretor do Ibase brasileiro e uma das mais influentes vozes do CI, em Dakar. Talvez um movimento como o que rodeia o FSM, surgido no Sul há 10 anos, poderia servir para no mínimo reativar os narcotizados e sobretudo atomizados movimentos sociais do Norte. A terra gira, mas sobre um outro eixo.


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