Entre os muitos aspetos pedagógicos e didáticos inovadores que levou para a frente, eu quero destacar especialmente que a sua teoria educativa, cheia de propostas muito interessantes, é o resultado de uma prática didática muito rica, com métodos e técnicas didáticas brilhantes e de grande sucesso. Em Freinet primeiro é a prática e depois a teoria, elaborada de forma muito intuitiva, após experimentar as suas estratégias didáticas nas suas aulas com os seus alunos. No seu ensaio “Psicologia sensível”, Freinet diz: “Outros hão ir mais longe e com maior segurança que nós nesta ascensão a que humildemente nos temos aplicado e em que abrimos brecha, alargando na medida das nossas possibilidades, o caminho que se dirige para o potencial humano”. A sua obra teórica e prática teve grande impacto em primeiro lugar na escola elemental francesa e na sua prática escolar, e mais tarde nas de outros países vizinhos.
Freinet deu início à sua carreira como mestre e, embora tenha conseguido o título de professor nas escolas normais, continuou de mestre. Desde a sua sala de aula durante uns cinquenta anos, animou a corrente pedagógica que criou e que alcançou desenvolvimento nacional e internacional. Devo assinalar que foi mobilizado em 1915, como soldado na primeira grande guerra, e gravemente ferido. Durante toda a sua vida ressentira-se das consequências das suas feridas, que lhe impossibilitavam poder atuar como um mestre transmissor ao uso naquela altura. É curioso que esta circunstância tenha sido, em grande medida, a causa de criar umas técnicas didáticas inovadoras, que, pela sua grande vocação docente, minoravam a sua incapacidade para falar durante um tempo alargado, causada pelas feridas antes mencionadas. Que também orientaram as suas ideias políticas e pacifistas.
Teve também problemas com a administração académica francesa, que, segundo a sua esposa Elise, também influíram na elaboração de seu projeto educativo-didático e no abandono da sua escola pública, para criar em outubro de 1935 uma escola privada em Saint Paul de Vence. Na qual pôde desenvolver sem travas a sua peculiar pedagogia sob a epígrafe de “Escola Moderna”. Esta escola conhece um grande florescimento, mas a segunda guerra mundial volta a golpear o seu projeto e o seu movimento educativo. Em 1941, sob a ocupação nazi, com o governo de Pétain, Freinet é reduzido a residência vigiada, a sua escola destroçada e a cooperativa devastada. Ele mesmo chegou a dizer: “Tudo foi ensombrecido pela pilhagem; o material da cooperativa, amontoado pela polícia e selado, pôde parcialmente salvar-se apesar da humidade e as ratazanas. Só se perderam definitivamente as listas de endereços e a contabilidade, que levou a polícia”.
Em 1947 volta a abrir-se a escola de Vence, escola a que atribui a dupla finalidade de ser “escola experimental e laboratório humano”. Pela personalidade excecional de Freinet e a ajuda da sua esposa, não menos extraordinária, pôde desenvolver-se o movimento pedagógico freinetiano, produto da interação de duas componentes: a militância política e a que nasce da prática pedagógica. Segundo G. Piaton, autor de uma tese sobre o pedagogo galo, o pensamento pedagógico de Freinet estrutura-se arredor de três temas fundamentais: o amor ao trabalho como substrato pedagógico e a indagação experimental; o dinamismo natural como substrato psicológico e o substrato ideológico-filosófico. Freinet levou a cabo, tal como comentei antes, a sua teorização educativa de forma progressiva a partir da sua prática da cooperação escolar e na perspetiva da educação nova ou ativa. No seu momento animara uma cooperativa rural.
Posteriormente aplicou o experimentado aos seus princípios educativos. Com a sua descoberta do texto livre um dia em que uma corrida de escaravelhos apaixona até tal ponto os seus alunos que compõem, leem e copiam um texto, o primeiro “texto livre”, com um fervor próximo ao entusiasmo. Mais tarde, a sua difusão em forma impressa provoca o nascimento da “imprensa escolar”, e com ela a correspondência interescolar. Ao longo de toda a sua vida vai criar estratégias de trabalho didático, as famosas “Técnicas Freinet”, que vão transformar o rosto da escola ao modificarem-se profundamente os papéis respetivos do mestre e do aluno (do docente e do discente), conseguindo dela que fosse uma autêntica escola do trabalho e local da aprendizagem da autonomia, especialmente com o ficheiro de consulta ou ficheiro escolar cooperativo.
Coordenado por Rosa Mª W. Sampaio, a Atta Mídia e Educação realizou em 2006 um documentário sobre Freinet, que serve de base aos comentários do presente artigo. Sobre Freinet e as suas técnicas existe uma ampla filmografia recolhida num trabalho elaborado pelo francês Henri Portier, que pode ser consultada aqui. Merece a pena ser consultado também o documento da mesma autoria “Cinématographe et movement Freinet 1927-1940”, que se encontra aqui.
Ficha técnica do filme-documentário:
Título original: Célestin Freinet.
Produtora: Atta Mídia e Educação (Brasil, 2006, 45 min., a cores e a preto e branco, documentário).
Editora: Paulus Editora. Coleção: Grandes Educadores. Direção: Paulo Aspis.
Roteiro e Apresentação: Rosa Maria Whitaker Sampaio (Participa da FIMEM, Federação Internacional dos Movimentos da Escola Moderna – Pedagogia Freinet, ministrando aulas na França, Bélgica, Portugal e Itália. É fundadora do Pólo Freinet S.Paulo da ABDEPP (Associação Brasileira para Divulgação, Estudos e Pesquisas da Pedagogia). Presta assessoria pedagógica para escolas, governos e prefeituras).
Argumento: Célestin Freinet foi um dos maiores educadores do século XX. Pedagogo humanista, autodidata, político e sindical, sintetizou na sua obra as aquisições da psicologia e da pedagogia, tornando-as aplicáveis às práticas cotidianas em classe. A Pedagogia Freinet é um conjunto original de propostas teóricas, instrumentos e técnicas assentadas em alguns princípios e eixos pedagógicos: cooperação, livre expressão, responsabilidade, solidariedade, comunicação e documentação. Freinet, através do seu método natural de aprendizagem, deixa um importante legado para a formação de seres íntegros, sociais e políticos, capazes de trilhar os seus destinos individual e socialmente na construção de uma sociedade democrática e pacífica.
Conteúdos do Documentário: Freinet, infância, juventude. 1ª Guerra Mundial. Aula-Passeio. Imprensa Escolar. Correspondência Escolar. Texto Livre. Livro da Vida. Elise Freinet e a Escola de Vence. Reunião de Cooperativa ou “Jornal de Parede”. 2ª Guerra Mundial e prisão de Freinet. Educação pelo trabalho. Depoimento Freinet. Campanhas Nacionais: tempo livre e 25 alunos por sala. Invariantes Pedagógicas.
Notas:
1.- Com o título original de Le Mouvement Freinet (O Movimento Freinet) existe outro interessante documentário, realizado por Henri Portier (França, 1996, 52 min., a cores e a preto e branco), dividido em duas partes (1.- Das origens a 1935, e 2.- De 1935 a 1996). Foi editado e produzido em videocassete pelo ICEM-PEMF, dentro da coleção BT-Vídeo.
2.- Podem ver-se imagens reais do próprio Freinet, dirigindo uma aula com os seus alunos, entrando aqui.
As invariantes pedagógicas dum grande pedagogo:
Num muito interessante blogue da autoria da professora brasileira Aliane Mª Moreira Gonçalves Matias, intitulado “Escola do Aprender”, recolhe-se importante informação sobre vários educadores, e entre eles Freinet, cujas opiniões compartilho e aproveito para o meu depoimento.
Celéstin Freinet (1896-1966) foi um grande educador popular e um inovador que conseguiu a façanha de ser expulso do sistema público de ensino francês, apesar dos excelentes resultados educativos de seus métodos. Com certeza, sua paixão pelo diálogo com as crianças e a aversão a qualquer forma de autoritarismo e de "didatismo" não angariaram muita simpatia junto aos burocratas. Por volta de 1925, Freinet encontrava-se incapacitado de passar o dia dando aulas expositivas para os filhos de camponeses, seus alunos, nas aldeias do sul da França, por causa de um ferimento no pulmão durante a Primeira Guerra Mundial. Conhecedor das ideias da Escola Nova (na época, chamada de "Escola Ativa"), ele buscava caminhos para adaptá-las ao trabalho com crianças humildes.
A solução veio quando Freinet comprou uma velha imprensa, dessas de fazer jornais, e colocou-a no coração de sua sala. As crianças começaram a montar textos em que descreviam seus passeios pela aldeia, seus sonhos, seu mundo. Eles eram compostos e impressos até pelas crianças ainda não alfabetizadas. Logo, os alunos trocavam, pelo correio tradicional, textos, desenhos e poesias com escolas da França, de outros países da Europa e até da África. Essa técnica, que ficou conhecida como correspondência interescolar, juntamente com os contatos com a comunidade e o texto livre (desenha-se e/ou escreve-se livremente sempre que houver vontade de expressar algo), constitui um dos fundamentos do método natural, criado por Freinet e relatado em uma série de livros belíssimos, quase que todos editados na nossa língua, tanto em Portugal como no Brasil.
O trabalho de Freinet despertou grande admiração, inclusive de Piaget, que considerava o educador francês um pedagogo genial. Também teve muitos críticos, que o censuravam por promover a anarquia e a falta de rigor. As acusações parecem injustas, especialmente quando constatamos o alto grau de desenvolvimento da autonomia e do espírito crítico em alunos que frequentam boas escolas Freinet. O trabalho iniciado pelo pedagogo francês multiplicou-se e, até hoje, encontramos um grande número de escolas que adota a sua pedagogia. O trabalho de Freinet também pode inspirar escolas de linha mais tradicional que buscam renovar e enriquecer suas práticas.
A pedagogia Freinet é centralizada na criança e baseada sobre alguns princípios como: Senso de responsabilidade, senso cooperativo, sociabilidade, julgamento pessoal, autonomia, expressão, criatividade, comunicação, reflexão individual e coletiva e afetividade. Princípios postos em prática nas suas aulas utilizando as seguintes técnicas didáticas: Aula passeio, Texto livre, Imprensa escolar, Correção, Livro da vida, Ficheiro de consulta, Plano de Trabalho, Correspondência interescolar e Autoavaliação.
Depois da sua rica experiência de didática prática, elaborou uma muito interessante teoria educativa, apresentada sob a epígrafe de “Invariantes Pedagógicas”, ou seja, princípios educativos que não admitem discussão, por terem sido comprovados uma e outra vez durante o labor docente prolongado de Freinet. Estas Invariantes deram lugar a um formoso livro do mesmo título. A professora brasileira Rosa Mª W. Sampaio, de forma muito acertada, passou à nossa formosa língua as trinta Invariantes Pedagógicas freinetianas, que a seguir se resenham:
1. A criança é da mesma natureza que o adulto.
2. Ser maior não significa necessariamente estar acima dos outros.
3. O comportamento escolar de uma criança depende do seu estado fisiológico, orgânico e constitucional.
4. A criança e o adulto não gostam de imposições autoritárias.
5. A criança e o adulto não gostam de uma disciplina rígida, quando isto significa obedecer passivamente uma ordem externa.
6. Ninguém gosta de fazer determinado trabalho por coerção, mesmo que, em particular, ele não o desagrade. Toda atitude imposta é paralisante.
7. Todos gostam de escolher o seu trabalho mesmo que essa escolha não seja a mais vantajosa.
8. Ninguém gosta de trabalhar sem objetivo, atuar como máquina, sujeitando-se a rotinas nas quais não participa.
9. É fundamental a motivação para o trabalho.
10. É preciso abolir a escolástica: 10- a. Todos querem ser bem-sucedidos. O fracasso inibe, destrói o ânimo e o entusiasmo. 10- b. Não é o jogo que é natural na criança, mas sim o trabalho.
11. Não são a observação, a explicação e a demonstração - processos essenciais da escola – as únicas vias normais de aquisição de conhecimento, mas a experiência tanteante, que é uma conduta natural e universal.12. A memória, tão preconizada pela escola, não é válida, nem preciosa, a não ser quando está integrada no tanteamento experimental, onde se encontra verdadeiramente a serviço da vida.
13. As aquisições não são obtidas pelo estudo de regras e leis, como às vezes se crê, mas sim pela experiência. Estudar primeiro regras e leis é colocar o carro na frente dos bois.
14. A inteligência não é uma faculdade específica, que funciona como um circuito fechado, independente dos demais elementos vitais do indivíduo, como ensina a escolástica.
15. A escola cultiva apenas uma forma abstrata de inteligência, que atua fora da realidade e fica fixada na memória por meio de palavras e ideias.
16. A criança não gosta de receber lições autoritárias.
17. A criança não se cansa de um trabalho funcional, ou seja, que atende aos rumos de sua vida.
18. A criança e o adulto não gostam de ser controlados e receber sanções. Isso carateriza uma ofensa à dignidade humana, sobretudo se é exercida publicamente.
19. As notas e classificações constituem sempre um erro.
20. Fale o docente o menos possível.
21. A criança não gosta de sujeitar-se a um trabalho em rebanho. Ela prefere o trabalho individual ou de equipa numa comunidade cooperativa.
22. A ordem e a disciplina são necessárias na aula.
23. Os castigos são sempre um erro. São humilhantes, não conduzem ao fim desejado e não passam de paliativo.
24. A nova vida da escola supõe a cooperação escolar, isto é, a gestão da vida pelo trabalho escolar, pelos que a praticam, incluindo o educador.
25. A sobrecarga das classes constitui sempre um erro pedagógico.
26. A conceição atual das grandes escolas conduz professores e alunos ao anonimato, o que é sempre um erro e cria barreiras.
27. A democracia de amanhã prepara-se pela democracia na escola. Um regime autoritário na escola não seria capaz de formar cidadãos democratas.
28. Uma das primeiras condições da renovação da escola é o respeito à criança e, por sua vez, a criança ter respeito aos seus professores; só assim é possível educar dentro da dignidade.
29. A reação social e política, que manifesta uma reação pedagógica, é uma oposição com o qual temos que contar, sem que se possa evitá-la ou modificá-la.
30. É preciso ter esperança otimista na vida.
Temas para refletir e realizar:
Depois de ver o documentário, organizar um debate-papo ou tertúlia, sobre os diferentes aspetos que sobre a figura de Freinet aparecem no mesmo. Refletir sobre o seu pensamento educativo, as suas técnicas didáticas e invariantes pedagógicas e comentar, dando alternativas concretas, sobre como se poderia pôr em prática hoje nas nossas escolas a sua didática prática. Poderia pesquisar-se também na Internet sobre as experiências realizadas em diferentes escolas seguindo as suas ideias, e sobre o labor desenvolvido pelo MCEP (Movimento Cooperativo da Escola Popular) ainda hoje vivo no país.
Elaborar uma monografia, procurando informações em livros e na Internet, sobre as suas ideias e técnicas didáticas mais importantes. Com fotos, textos, cartazes, retalhos de imprensa e materiais elaborados, poderia organizar-se nas escolas uma magna exposição sobre o modelo pedagógico proposto por ele. Poderia enriquecer-se o trabalho acrescentando a pequena história do MCEPG (Movimento Cooperativo da Escola Popular Galego), os seus dinamizadores (muitos felizmente vivos), as suas atividades e publicações, e também aqueles da NEGa que, infelizmente, ajudaram à sua desaparição, entre eles A. Costa.
Escolher uma, entre as obras de Freinet publicadas na nossa língua, para lê-la entre todos, a fim de comentá-la e debater sobre as palavras, ideias educativas e propostas práticas que o pedagogo galo faz na mesma. Poderia ser muito interessante completar a leitura com o livro de Rosa Mª W. Sampaio, Freinet: evolução histórica e atualidade, editado em 1989 pela editora Scipione de São Paulo.
José Paz Rosrigues é académico da AGLP, Didata e Pedagogo Tagoreano.