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100515 floresRússia - Esquerda Diário - [Thyago Villela] Em um artigo de 17 de junho de 1938, o fundador da Oposição de Esquerda Internacional Leon Trotsky (1879-1940), então exilado no México, taxava a arte soviética do decênio de 1930 como “a expressão mais crua da profunda decadência da revolução proletária”(1) .


 Trotsky referia-se, com tal frase, à rígida política de censura promovida pelo Partido Comunista às artes e ao caráter acrítico da recente produção estética soviética, marcada pela “docilidade” e reprodução do discurso oficial. “Não se pode deixar de sentir uma repugnância física”, escrevia ele,

(...) à leitura dos poemas e novelas, à vista das fotos de quadros ou de esculturas nos quais funcionários armados com penas, pincéis ou buris sob a vigilância de outros funcionários armados com máusers, louvam chefes “de prestígio” e “geniais” que na realidade não têm a menor centelha de gênio ou grandeza. (2)

A posição de Trotsky era precisa: a arte produzida sob a égide dostalinismo seria, também, um dos aspectos da inflexão do processo revolucionário russo. De que maneira, no entanto, produzira-se historicamente tal inflexão? Quais os debates que permearam a promulgação do “realismo socialista” como estética oficial do regime soviético em 1934? Qual o esquema de produção e circulação destas obras? O que enunciavam? E, com efeito, existiu historicamente a subversão das normas estéticas do “realismo socialista” e a elaboração de uma nova linguagem visual crítica?

Esta série de artigos publicados no Esquerda Diário visam retomar e redefinir algumas questões referentes à arte soviética de 1930; estudar as vicissitudes desta produção estética e determinar a posição política de alguns de seus principais críticos, como Gyorgy Lukács, Sergei Tretiakov e Walter Benjamin, no quadro histórico da construção do “realismo socialista”. Revisitar o “realismo socialista”, neste sentido, pode lançar uma nova luz sobre a estrutura simbólica do regime stalinista e, principalmente, pode repor, de maneira renovada, os debates estéticos que se estabeleceram no modernismo artístico, bem como na esquerda revolucionária, e ecoam até os dias de hoje.

_o “melhor dos mundos possível” (1929-1933) 

No discurso de abertura do Congresso de Escritores Soviéticos, realizado em agosto de 1934, o dirigente bolchevique Andrei Jdanov (1896-1948) afirmou, em nome do comitê central do Partido Comunista, que “o sistema socialista havia finalmente, e irrevogavelmente, triunfado” na União Soviética (URSS) (3) . Ela seria, portanto, o primeiro país socialista já existente na história, resultado dos séculos da guerra entre as classes e do heroísmo e empenho do trabalhador russo e de suas lideranças (4) . Jdanov referia-se, no discurso, aos processos da coletivização do campo e da industrialização acelerada, promovidos pelo governo soviético desde 1929, os quais haveriam determinado, supostamente, uma estrutura socialista de sociedade. Segundo ele, não apenas a economia, mas também a cultura soviética desenvolvia-se com um “esplendor exuberante” (5) .

- Ler a segunda parte deste artigo aqui: O realismo socialista revisitado – parte II (a construção da mitologia stalinista)

_a modernização... 

A contradição entre o discurso de Jdanov e a situação social concreta do país era flagrante. No campo, os processos da expropriação doskulacs (6) e da construção das fazendas coletivas (kolkhozes) - iniciados em 1929, como parte do Primeiro Plano Quinquenal - levaram ao incremento vertiginoso da luta de classes. Um relatório de 20 de fevereiro de 1930, “estritamente confidencial”, endereçado ao presidente da Comissão Central de Controle do governo, S. Ordjonikidze, descrevia que

Em algumas aldeias, a multidão de amotinados [contrários à formação de kolkhozes] excedeu duas mil pessoas. Uma parcela dessas manifestações foi explicitamente insurrecional. (7)

Outros relatórios do período relatam a ambiguidade dos mujiques (8) que, em alguns casos apoiaram os levantes dos kulacs e, noutros, apoiaram a repressão do Exército Vermelho. Em todo caso, o estado “insurrecional” dos camponeses ricos e os consequentes boicotes às plantações promovidas por eles prejudicavam diretamente os mujiquese o proletariado urbano. O Exército Vermelho reprimiu violentamente tais levantes.

O oposicionista de esquerda Victor Serge (1890-1947) relatou que, em alguns casos, aldeias inteiras, consideradas pelo governo como “aldeias de kulacs”, eram deportadas (9) . Os procedimentos para a eliminação dos kulacs foram tão violentos que até mesmo Josef Stálin (1878-1953) publicou no periódico oficial Pravda, em 2 de março de 1930, o artigo “A vertigem do sucesso”, no qual denunciava parte dos “excessos” cometidos pelo Exército Vermelho (10).

Durante o processo, a maior parte do campesinato médio e pobre foi compelida a viver nos kolkhozes, nos quais eram submetidos a um regime de trabalho superexplorador (11). A despeito da brutalidade do processo, a expropriação fora bem sucedida e, em 1932, a produção agrícola do país era realizada majoritariamente pelas fazendas coletivas, equivalentes a aproximadamente 240000 – o que correspondia a 61,5% das terras (12) .

Na cidade, tanto quanto no campo, os ritmos da modernização acelerada impunham novos esquemas de divisão do trabalho e de controle. A superexploração da força de trabalho atingia níveis sem precedentes, bem como a hierarquização dos salários, determinados pelo desempenho individual e pela posição na produção (13) . Desta forma, 20% dos assalariados (engenheiros, supervisores e os trabalhadores das melhores indústrias) recebiam cerca de 40% do total de salários (14). A disciplina do trabalho tornava-se, também, mais rigorosa: um decreto do Conselho de Comissários do Povo, de 6 de setembro de 1930, tornava uma infração grave da disciplina laboral a rescisão do contrato de trabalho (15) . Assim, ao mesmo tempo em que o ritmo de trabalho se dinamizava, ditado pelo imperativo da aceleração econômica, a demissão dos trabalhadores era tida como ilegal. Tal dispositivo parecia consolidar a subsunção da força de trabalho soviética à máquina estatal.

As medidas aplicadas pelo governo com relação ao campo e à cidade participaram do processo de inflexão radical da revolução russa. Durante o ano de 1928, Stálin, que já era Secretário Geral do Partido desde 1922, conseguira eliminar do espectro político tanto a Oposição de Esquerda, liderada por Leon Trotsky, quanto a Oposição de Direita, dirigida por Nikolay Bukhárin (1888-1938). Tal processo, realizado mediante uma perseguição política implacável e uma política rígida de deportações, firmava o programa da ala centrista do Partido como o projeto político hegemônico para a URSS, caracterizado pela ênfase na industrialização e na planificação econômica, a despeito da manutenção das relações produtivas hierarquizadas e coercitivas.

O regime “bonapartista” chefiado por Stálin erguia-se por meio do massacre aos movimentos operários, camponeses e à ala oposicionista do governo; e impunha-se por meio do modelo economicista de gestão. O período histórico aberto pela ascensão do stalinismo era o período da derrota do projeto “permanentista” (16), elaborado pela Oposição de Esquerda e pelos movimentos grevistas durante o decênio de 1920. A URSS entrava, portanto, num período peculiar da contra-revolução, um período no qual o governo enaltecia as forças produtivas e a força de trabalho do país, sem, no entanto, alterar as relações de produção estruturalmente opressivas dele e, mais, radicalizando-as em nome do suposto socialismo triunfante. Conforme exemplificava o discurso de Jdanov, os dirigentes bolcheviques glorificavam a revolução minando todas as possibilidades para sua efetiva realização.

Diante da “estetização da política” (17) realizada pelo governo soviético, qual o papel conferido às artes visuais neste novo regime de “espetacularização”? Qual foi a economia política das imagens produzida pelo bonapartismo durante o decênio de 1930?

_ ... e o silêncio

“Eu inventei um novo gênero. O gênero do silêncio”. 
(Isaac Babel [1894-1940], 1934)

A política da circulação de imagens na URSS de 1930 não pode ser analisada sem tomar por fundamento histórico a rígida censura instituída no país. A rigor, a censura artística e científica fora implementada pelo Partido Comunista em 1921, com a criação do Colegiado Central para Educação Política, chefiado por Nadezda Krupskaia (1869-1939) (18) . Durante todo o decênio de 1920, no entanto, existiram diversas correntes artísticas, as quais puderam disputar a linguagem visual, cinematográfica e literária do país no cenário da livre-concorrência concretizada pela NEP (19). Na medida, entretanto, da falência da política econômica nepista e da radicalização do processo da burocratização e da repressão política, tais liberdades foram cerceadas pelo Estado. Não à toa, no mesmo ano da eliminação da Oposição de Esquerda, em 1928, o governo soviético reconheceu oficialmente a Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária (Assotsiatsia Khudozhnikov Revolutsionnoi Rossii – AkhRR), uma tendência artística naturalista, como a tendência visual do regime (20). Tal reconhecimento oficial institucionalizava a perseguição à “arte de esquerda” (Levoie iskusstvo), vinculada ao movimento construtivista e aglutinada em torno da revista Novy Lef.

Em 1932, o Comitê Central do Partido Comunista, sob o pretexto ambíguo de reorganizar e dinamizar a produção literária do país, decretou a dissolução de toda corrente artística soviética (21) . Tal medida, inicialmente voltada para o campo literário e para a extinção da Associação dos Escritores Proletários (RAPP) (22) , deveria estender-se, analogamente, para as outras artes (23) . O decreto previa, assim, a dissolução das tendências artísticas e a reagrupação delas em Uniões diretamente vinculadas ao Partido. A reordenação do sistema artístico soviético – que era também um dos aspectos da reestruturação social radical posta em prática pelo Primeiro Plano Quinquenal – aparenta constituir um dos elementos centrais da cultura stalinista, precisamente porque permitiu ao Estado soviético instituir um discurso positivo sobre a história da revolução. O livre debate artístico dava lugar, assim, à palavra final do aparato burocrático. O que dizia, no entanto, tal aparato?

(1) TROTSKY, Leon. “A arte e a revolução”. In: FACIOLLI, Valentin (org.). Por uma arte revolucionária independente. São Paulo: Paz e terra, 1985, p. 95.
(2) Idem, ibidem.

(3) Cf. JDANOV, Andrei. Soviet Literature - Richest in Ideas, Most Advanced Literature. Disponível emhttps://www.marxists.org/subject/art/lit_crit/sovietwritercongress/. 15/04/2015.

(4)Idem.

(5)“A URSS torna-se um país no qual a cultura soviética está crescendo e se desenvolvendo com um esplendor exuberante”. Cf. Idem.

(6) Os kulacs eram os camponeses russos proprietários de, no mínimo, 10 hectares de terra.

(7)MOULLEC, Gaël; WERTH, Nicolas (org.). Rapports secrets soviétiques: la societé russe dans les documents confidentiels. Paris: Gallimard, 1994, p. 118.

(8)Os mujiques eram os camponeses pobres assalariados ou donos de pequenas propriedades rurais.

(9) Ver BROUÉ, Pierre. El Partido Bolchevique. Trad. Ramón García Fernández. Barcelona: Ayuso, 1973, p. 207.

(10)Idem, p. 208.

(11)Ver BROUÉ, Pierre. El Partido Bolchevique, op cit, p. 207.

(12)Idem, ibidem.

(13) O oposicionista de esquerda León Trotsky (1879-1940) afirmou, em “A revolução traída” (1937): “Quando o ritmo do trabalho é determinado pela caça ao rublo, as pessoas não trabalham de acordo com as suas “capacidades”, isto é, de acordo com o estado dos seus músculos e nervos, elas violentam-se. Rigorosamente, esse método [da remuneração por produção] só pode ser justificado com rigor invocando a dura necessidade; transformá-lo em ‘princípio fundamental do socialismo’ é espezinhar o ideal de uma nova e mais elevada cultura, a fim de lançá-lo na lama habitual do capitalismo”. In: TROTSKY, Leon. A revolução traída. São Paulo: José Luís e Rosa Sundermann, 2005, p. 101.

(14)Ver BROUÉ, Pierre. El Partido Bolchevique, op cit, p. 211.

(15)Idem, p. 212.

(16) O termo “permanentismo” foi extraído do livro de Michel Löwy, “The politics of combined and uneven development” e refere-se à concepção formulada por Leon Trotsky em 1906 de que a revolução socialista é um processo permanente de reestruturação das relações sociais e de construção do poder operário. Cf. LÖWY, Michel. The politics of combined and uneven development: the theory of permanent revolution.Chicago: Haymarket books, 2010.

(17) BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Francisco Dea Ambrosis Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk, 2012.

(18) Ver LODDER, Christina. El constructivismo ruso. Trad. Maria Condor Orduña. Madrid: Alianza Editorial, 1988, p. 184.

(19) A Nova Política Econômica (Novaya Ekonomiceskaya Politika – NEP), promulgada pelo Partido Comunista em 1921, objetivou restituir elementos de livre-mercado na economia soviética, visando dinamizá-la.

(20) Ver LODDER, Christina. El constructivismo ruso, op cit, p. 185.

(21)Ver Central Committee of the Ail-Union Communist Party (Bolsheviks). “Decree on the Reconstruction of Literary and Artistic Organizations”. In: BOWLT, J. E. (org.). Russian art of the avant-garde: theory and criticism, 1902-1934. Thames and Hudson, 1988, p. 288-290.

(22) A RAPP foi criada em janeiro de 1925 e caracterizou-se pelo incentivo à censura literária da “arte de esquerda” em prol das formas tradicionais de romance. Ironicamente, ela própria foi o objeto principal da censura partidária em 1932. Ver STRADA, Vittorio. “Do ‘Realismo Socialista’ ao Zdhanovismo”. In: HOBSBAWN, Eric. História do Marxismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

(23)O decreto previa a “execução de mudanças análogas nas outras artes” In: BOWLT, J. E. (org.). Russian art of the avant-garde, op cit, p. 290.


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