No dia 16 de junho de 1976 manifestavam-se estudantes negros em Soweto, uma das cidades-gueto negra dos arredores de Johannesburgo. Iam desarmados e pediam uma melhor educação para os estudantes negros, com escolas menos massificadas, professores mais preparados e mais salas de aula. Naquela altura, o primeiro-ministro do país africano deu a ordem de que se restaurasse a normalidade “a qualquer preço”. A polícia deu morte a mais de cem pessoas e feriu muitos mais, entre eles um grande número de escolares. O “Apartheid” foi um sistema infame de racismo legalizado introduzido a finais dos anos quarenta, similar ao nazismo ou ao estalinismo. A luta contra o racismo de Estado é um dever de todas as pessoas boas e generosas que existem no planeta Terra. Que obriga a procurar as razões ocultas ou manifestas pelas que em muitos países são segregados os seres humanos ou mesmo perseguidos. Por razões étnicas, religiosas, culturais e de outro tipo.
Desde que os holandeses chegaram à África lá pelo século XVII, cuidaram muito de não se misturarem com os não brancos. E na Índia os britânicos, muitos deles infames, faziam o mesmo, considerando muito negativamente, com nomes despectivos, aqueles homens que se casavam com nativas indianas. De 1948 a 1953, com o partido conservador dos Boers britânicos no poder na África do Sul, publicam-se as mais infames leis racistas que imaginar se possa: classificação da população, proibição de casamentos mistos e as relações sexuais inter-raciais, zonas separadas de residência, sistema de educação segregador, separação nas carruagens do comboio e nos transportes públicos, obrigação de levar documentos de identidade especiais para os negros, limite e controlo de permanência dos negros em lugares urbanos, proibição de que os negros tenham possessão de bens raízes na maior parte do território, reserva dos melhores trabalhos para os brancos e, entre outras, a negação aos negros do direito a voto, agás nos “bantustões” ou reservas especiais para os negros, e da maior parte dos direitos políticos dos cidadãos. Estas leis foram acrescentadas com as legislativas do aparato judicial e repressivo que permitiu um quase permanente estado de emergência em todo o país.
A Humanidade inteira conviveu durante anos com uma vergonha, que não soube vencer, ao menos no caso concreto do Estado da África do Sul, em muitos momentos apoiado na ONU pelos Estados Unidos da América e o Reino Unido, para que continuasse com o seu magnífico “modelo segregador” de discriminação racial. Sem embargo, embora continue a existência de muitas lacras, como a fome, a droga e o comércio de armas, foi em 9 de fevereiro de 1990 quando se conseguiu um avanço considerável no caminho da dignidade humana, com o começo do fim do “Apartheid”. O que parecia impossível fez-se realidade, justo no final da famosa “guerra fria” e pudemos ver como caia essa loucura capaz de avalizar o homem que oprime o seu congénere pela simples razão da cor da sua pele. Segundo esta ideologia, se és branco és bom, se és negro não tens direito a nada.
Racismo é a convicção sobre a superioridade de determinadas raças, com base em diferentes motivações, em especial as caraterísticas físicas e outros traços do comportamento humano. É umaopinião não científica sobre uma raça humana que leva a uma tomada de posição depreciativa e, frequentemente, violenta relativamente a uma coletividade. Apesar de atitudes racistas sempre terem existido na humanidade, muitas vezes como reação de defesa de uma comunidade contra a invasão pacífica de outra diferente dela, o fenómeno do racismo agudizou-se na época moderna, especialmente com a política colonialista das potências europeias, e dos EUA na América Latina e na Ásia. O racismo continua a ser um grave problema em numerosos países, mesmo onde teoricamente não existe, como no caso dos EUA (sobretudo nas zonas do Sul). A crise económica e a pressão demográfica costumam ser motivo de problemas raciais mais ou menos graves, como sucede na Grã-Bretanha com os imigrantes, em França com os norte-africanos, na Alemanha com os turcos ou em Espanha com a população cigana e os trabalhadores negros ilegais. O preconceito racial está relacionado com conceitos como homofobia, xenofobia, bullying racista, entre outros muito debatidos na atualidade.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi criada com o objetivo de proteger os direitos fundamentais dos seres humanos condenando todo o tipo de discriminação pela raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. No momento atual em muitos países, e também no nosso, por causa dos movimentos migratórios, o excesso de população em alguns lugares do planeta, a globalização e a crise socioeconómica tão estendida, temos já muitas cidades com aulas multiétnicas, com grande diversidade de estudantes. Infelizmente, ainda é hoje o dia que não existe uma formação inicial ou em exercício dos nossos docentes, para que saibam levar didaticamente aulas com tanta diversidade. Por isto hoje escolhi para a minha série um filme muito adequado, com o título de “Duro Aprendizado” (também titulado como “Sementes de rancor”), realizado pelo diretor negro John Singleton em 1994. No mesmo aparecem alunos de diferentes origens numa universidade americana, dividindo os quartos para transformar o campus num barril de pólvora. O diretor aborda temas tão polêmicos quanto contemporâneos neste filme, como o racismo, a ideologia, a sexualidade e o poder económico. E mesmo nele aparece o cantor de rap Ice Cube.
Ficha técnica do filme:
Título original: Higher Learning (Duro Aprendizado / Sementes de rancor).
Diretor: John Singleton (EUA, 1994, 127 min., cor).
Roteiro: John Singleton. Música: Stanley Clarke. Fotografia: Peter Lyons Collister.
Produtora: Columbia Pictures.
Atores: Omar Epps (Malik), Kristy Swanson (Kristen), Jennifer Connelly (Taryn), Ice Cube (Fudge), Laurence Fishburne (Maurice Philipps), Michael Rapaport(Remy), Jason Wiles, Tyra Banks, Cole Hauser, Bradford English, Regina King, Busta Rhymes, Jay R. Ferguson, Andrew Bryniarski e Trevor St. John.
Argumento: Malik é um estudante negro tentando conseguir uma bolsa de estudos. O problema é que ele não é muito chegado nos estudos e acha que as suas qualidades atléticas serão suficientes para conseguir o benefício na universidade. Fudge, um estudante profissional que está na Universidade Columbus há quase seis anos, conhece Malik e começa a questionar as convicções raciais e políticas do novo amigo. Além de Fudge, há o professor de Ciências Políticas, Phipps, também negro, que faz questão de mostrar a Malik que ele não vai ter uma graduação diferente só por causa da sua raça. Junto aos dilemas de jovem estudante, ocorrem outras narrativas paralelas que em comum têm apenas o campus da Columbus. O campus fictício da Universidade Columbia é um microcosmo da América, onde alunos de todas as raças, cores e crenças estão reunidos. Um drama contemporâneo sobre um semestre na vida de uma porção de estudantes, Duro Aprendizado confronta diferenças de identidade, diversidade, sexismo e a escalada da tensão racial entre os grupos. O aclamado escritor, produtor e diretor John Singleton (indicado duas vezes ao Óscar por Os Donos da Rua) recriou com precisão de detalhes uma escola contemporânea, desde as salas de aula até a cafetaria, para conter três histórias distintas sobre três grupos de pessoas que acabam encontrando-se e partilhando as suas expetativas. Uma escola que é a extensão de um mundo de ansiedades e tensões; uma verdadeira caldeira prestes a explodir.
A dificuldade de ensinar entre tanta diversidade:
“Duro Aprendizado” é um filme de uma intensidade crescente. Inicia-se parecendo mais um desses dramas que raspará de leve questões importantes como diversidade, racismo, loucura, violência, opressão. Continua em tensão crescente, passando pelos principais acontecimentos que marcam um mundo desigual e partido e tomando um aprofundamento que causa bastante impacto no espetador. A nossa personagem principal, Malik, negro americano que consegue acesso à universidade (campus fictício da Columbia da cidade de Nova Iorque). Ele, um corredor promissor que tem acesso a uma bolsa parcial para os seus estudos, porém não tem como algo muito aprofundado a sua relação com o conhecimento, a busca do saber. No intuito de conseguir a bolsa integral aceita competir em nome da Universidade. No seu caminho atravessará o professor de Ciências Políticas, Phipps que o levará a questionar seus próprios posicionamentos frente à vida, a luta racial, a relação com o conhecimento e discurso. Assim como sua proximidade e amizade com um veterano estudante na Universidade, o aluno Fudge, marcará a sua trajetória nesse primeiro semestre dentro do campus. Cada personagem que compõe o tecido desse filme trará uma importante questão para pensarmos, como a questão feminina e a sua opressão, a diversidade sexual, a violência das relações familiares e as suas consequências, a juventude na sua alienação, a busca de aceitação pelo grupo social e principalmente as questões do racismo e xenofobia. Veremos ao longo desse filme muitas das questões que se colocarão para os jovens estadunidenses ali onde o campus da universidade representa todas as tensões que alimentam o social, em difíceis lições, que levam no caso do filme até ao limite da própria vida. Grupos diferentes nos são apresentados e ao longo do filme irão entrelaçar-se formando a história dessa tensão bastante contemporânea.
Desde a questão dos estupros dentro do campus sobre os quais algumas matérias já foram publicadas em grandes meios de comunicação, até a vivência da segregação, perseguição da população negra dentro do espaço do campus, passando pela questão da orientação sexual e outros temas ainda pincelados ao longo do roteiro. A tensão instala-se e fica bem clara ao longo do desenrolar da película, numa direção que não se furta a aprofundar reflexões bastante importantes em meio a conversas entre as personagens. Faz refletir e se apresenta como um bom filme para balançar as mais rígidas convicções baseadas em preconceitos, problematiza questões sociais de uma maneira mobilizadora de emoções das mais diversas.
O interessante é que Malik não é uma personagem que nos cause simpatia à primeira vista, também não chama a atenção por nenhuma grandeza, a não ser pelo seu enorme talento em correr. Questiona de maneira incessante o caminho da luta da população negra dentro de um país de supremacia branca. De frente à estátua de Colombo que dá nome à universidade, tece comentários históricos de uma maneira bastante pontual, novos parâmetros do pensar os nossos heróis dentro da atualidade, há nos nossos dias valores que foram sendo modificados ao longo de décadas de lutas encaminhadas por grupos alcançando modificações de crenças antes instituintes dos ideais da cultura. Dentro de uma perspetiva absolutamente pessoal, a nossa personagem nos leva pelas mãos ao tomar contacto com toda a tensão estrutural, a luta de forças que está abrigada dentro da malha social, da questão dos vínculos como também bastante determinados pelos nossos papéis dentro desse tecido, falando de origem de classe, género, raça, religião, ideologia. Em muitos momentos do filme o espetador será levado a sentir o mesmo estado “confusional” da personagem, onde aquilo que se acredita busca determinar-se na cena, mas algo de insólito leva a um pensar por outros caminhos, brilhante essa forma como o filme nos encaminha para os questionamentos necessários, delicadas e subtis cenas que nos levam a uma desconstrução de importantes crenças que ditam aquilo que nos é vivido (que vive em nós) como se fosse nosso.
Malik apaixona-se, e através desse amor muito da sua irascibilidade irá tornar-se mais ténue, mostrando-nos a presença de Eros, porém em igual proporção a sua capacidade de ação crescerá de maneira evidente, o que aumenta a tensão dentro do contexto que nos é apresentado. Não há conciliação possível, embora o amor, via fala da sua namorada, queira convidar a um revisitar essas separações raciais, sociais, de grupos. O filme não se propõe, e não cumpre mesmo essa tarefa, de apresentar soluções para a tensão social e muito menos buscará um final feliz para aplacar as nossas angústias frente ao modelo instituído, sobre o qual na nossa vida quotidiana e os nossos afetos, nos vemos referenciados e mantenedores dessas referências. O convite ao final do filme é claro, como deixamos aqui no início desse texto: “desaprenda”. O que de forma alguma substitui um pensar por outro, apenas convida a uma desconstrução e uma nova busca, tarefa quase sempre de angústia para o sujeito psíquico. Cada um de nós no nosso desamparo pedimos por uma comida rápida de ideologia, como cantava aquele poeta: “Ideologia eu quero uma para viver...”.
John Singleton que teve aos 23 anos duas nomeações para o Óscar (1991) por“Os Donos da Rua”( (Boyz'n the Hood), sendo o diretor mais novo a ter sido nomeado para esse prémio, dirige e assina o roteiro de “Duro Aprendizado”. Também é até hoje o único diretor negro a ter sido nomeado para o Óscar.
Temas para refletir, debater e realizar:
Seguindo a técnica de dinâmica de grupos do Cinema-fórum, depois de ver o filme, analisamos entre todos, de forma ordenada, os aspetos formais do mesmo (linguagem fílmica específica que utiliza o diretor, os planos, os truques cinematográficos, o uso do tempo e do espaço, os movimentos de câmara que emprega, as panorâmicas e o uso de plano-contraplano), e também os aspetos de fundo e conteúdos (psicologia das personagens, interpretação, os papéis, as mensagens que se nos tenta transmitir e a adaptação entre forma e conteúdo, valor do roteiro fílmico, uso da música e da fotografia).
Utilizando a técnica didática de trabalho por grupos, elaboramos uma monografia, que depois pode ser policopiada em forma de revista ou roteiro didático, sobre a intolerância étnica no mundo. No aspeto formal deve recolher desenhos e textos dos estudantes, fotografias, retalhos alusivos da imprensa, mapas, quadros sinópticos, entrevistas e bibliografia, com listas de livros de ensaio e ficção, listas de filmes e listas de CDs de música étnica. Com todo o material recolhido, podem também organizar-se nos estabelecimentos de ensino amostras com fotos, cartazes, desenhos, textos, murais e autocolantes com mensagens. Quanto a conteúdos, ademais da história mundial da intolerância, deve contemplar o mapa da intolerância com os países em que mais se deu e se dá. E, como é lógico, a intolerância nazi e a histórica persecução do povo judeu, a marginação dos imigrantes na Europa, nomeadamente na França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Espanha e recentemente mesmo na Suécia. Também a aniquilação dos povos indígenas de América, e, em especial nos EUA, ademais do comércio de escravos da África, e o infame “Apartheid” dos países do Sul do continente africano.
Elaboramos um plano de atividades didáticas e circum-escolares sobre o tema, a desenvolver nos nossos estabelecimentos de ensino, em que, se temos alunos imigrantes, solicitamos a sua colaboração ativa no mesmo. O plano deve contemplar: audições musicais de música étnica, de canções de diferentes países e de música instrumental, com instrumentos das diferentes zonas do planeta (flauta e harpa dos Andes, kora do Senegal, banjo de EUA, com cantares espirituais negros, tambores de Ruanda-Burundi), danças e comidas típicas e montagens teatrais com dramatizações adequadas, leituras de lendas e contos de diferentes comunidades e países, encontros de jogos tradicionais típicos de cada cultura, sessões de cinema com filmes interessantes, que possam servir para falar da intolerância étnica (existem muitos, alguns já analisados na série “As Aulas no Cinema”, e outros como “A Missão”, “Mississipi-Masala”, “American History X”...).Seguindo a técnica didática freinetiana da “Biblioteca do Trabalho”, podem constituir-se grupos de alunos para elaborar monografias temáticas sobre as comunidades de imigrantes que, hipoteticamente possam existir no lugar, vilas e cidades, para conhecer a sua cultura, o seu idioma e os seus costumes, ofícios e problemas, por meio de entrevistas que se façam aos mesmos. Existem muitas comunidades para ser tema do trabalho de pesquisa: senegaleses, marroquinos, equatorianos, brasileiros, dominicanos, venezuelanos, cubanos, bengalis e também os ciganos.
José Paz Rodrigues académico da AGLP, didata e pedagogo tagoreano.