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jjmadamebovaryillustrationBrasil - Laboratório Filosófico - [Rafael Silva] Madame Bovary, personagem do livro “O Romance dos Romances”, de Gustave Flaubert, escandalizou a sociedade de 1850 ao encarnar literariamente o “pathos” da modernidade, devolvendo cruamente aos seus leitores o indesejado sintoma psicológico produzido pela própria modernidade: a histeria. Nós, pós-modernos, não nos escandalizaríamos mais com uma Madama Bovary, não exatamente pelo fato de a histeria ter sido erradicada da nossa contemporaneidade, mas, ao contrário, porque hoje em dia ela é assaz democratizada. Pelo jeito não somos tão pós-modernos assim! Na verdade, ainda somos absolutamente modernos Absolutamente Madames Bovary.


No livro de Flaubert, Emma casou-se com Charles Bovary na esperança da felicidade burguesa-romântica que a sua época vendia como sendo a “verdadeira felicidade”. Porém, seu marido era um médico entediante e simplório. Então, em pouco tempo, ela já estava aborrecida e infeliz por perceber que a tal felicidade sonhada nunca viria, ou o que é pior, sequer existia. A vida interiorana de Emma e de seu esposo só piorava as coisas, principalmente por mantê-la alienada da roda capitalista-hedonista que já alegrava as capitais do mundo, resolvendo histericamente toda sorte de insatisfações individuais. Isso, porém, até um mascate oportunista abrir-lhe o universo das mercadorias refinadas vindas da iluminada Paris e do exótico Oriente.

Na primeira vez que o mascate ofereceu a Emma as caras sedas javanesas e as revistas de moda parisienses, ela, ingenuamente, disse que não podia comprá-las, alegando que o seu esposo não era rico. Aí o capitalismo, sem papas na língua, finalmente se apresentou mediante as palavras do mascate: “você pode ficar com tudo isso, mademoiselle, à crédito”. Ela ainda não tinha a menor ideia do que “à crédito” significava. Não obstante, entendeu rapidinho, sobretudo amou esse modo “a perder de vista” de amenizar a sua angústia pessoal que justamente queria perder de vista. Doravante, a suspensão do seu tédio, ainda que inadvertidamente paliativa, passou a ter o alto preço do que ela podia consumir à crédito.

A insatisfeita pequeno-burguesa, seduzida pelo capitalismo e pelas ilusões das revistas de moda de sua época, fez o mesmo que nós fazemos hoje em dia, seduzidos que somos pelo nosso (mesmo) capitalismo e pelas nossas (outras) modas: sucumbiu diante dos insustentáveis horizontes expandidos oferecidos ao Sujeito Moderno – assim como nós sucumbimos permissivamente aos ilimitados horizontes que a nossa pós-modernidade nos vende. E tanto faz se esse “nós” é burguês ou não, pois, atualmente, até os mais pobres guardam dentro de si um pequeno-burguês histérico, uma vez que todos somos alvos já alcançados e totalmente seduzidos pelo capitalismo e suas modas.

Porém, como o Sujeito Moderno é um saco sem fundo -tal é a histeria-, Miss Bovary não permaneceu feliz por muito tempo com as muitas mercadorias que comprava. Mal sabia ela que as benesses capitalistas nunca visaram a felicidade dos seus consumidores. Então, para dar conta da sua insistente infelicidade que o consumo à crédito sozinho não podia mais remediar, Emma passou a se envolver em relações amorosas-sexuais extraconjugais. Por um átimo, ela parecia ter encontrado a fórmula Moderna da felicidade: consumo&perversão. Ah! Mais um item fundamental: a mentira. Escondia sistematicamente de seu marido tanto os seus extravagantes gastos quanto, e principalmente!, os seus amantes.

Entretanto, como os amantes de Emma também eram Sujeitos Modernos, tampouco eles permaneceriam muito tempo satisfeitos com ela, ou com qualquer coisa que fosse. Nesse meio tempo, a conta que Emma há muito fazia com o mascate teve de ser irremediavelmente paga. Só que nem todos os bens dela e do marido saldavam a enorme dívida que ela havia contraído nos últimos anos. Procurando seus amantes agora também pelo dinheiro que lhe faltava, eles a rejeitaram terminantemente. Novamente sozinha com a sua velha infelicidade, Emma não suportou a situação. Desesperada, bebeu um veneno do boticário do marido-médico, correu para o meio da floresta, e morreu, deixando para trás o Mundo Moderno que sequer o Sujeito Moderno conseguia suportar.

Quão diferentes somos de Madame Bovary? Muito pouco, certamente, visto que só encontramos alívio para o insaciável vórtice pós-moderno no qual estamos imersos nas mentiras do capitalismo, no hedonismo consumista, na perversão sexual e, quando nenhum destes funciona, drogas venenosas. Mas por que Emma e nós precisamos de tudo isso simplesmente para não sermos infelizes? Ora, porque o Sujeito que nasceu na modernidade, e que cresce pujante na pós-modernidade, só faz mentir às pessoas que elas devem, a qualquer preço, ser mais do que são; que a realidade precisa ser mais do que é. Não que na antiguidade as pessoas e a própria realidade não parecessem faltosas. Porém, o advento da modernidade produziu mercadorias e perversões suficientes para estimular infinitamente essa falta fundamental que o ser humano enxerga no real.

#somostodosMadameBovary porque nunca estamos satisfeitos com a realidade ordinária que nos circunda, sobretudo por crermos piamente que a solução para a nossa insatisfação crônica deve sempre vir de fora, custar caro, ser bela, produzir orgasmos constantes e/ou múltiplos ou, na irrealização destes, matar-nos de vez. Emma morreu vítima de sua Belle Époque, mas segue presente na “notre époque postmoderne” nomeando o sintoma moderno por excelência. A psicologia se inspirou em Miss Bovary para cunhar um termo que falasse da insatisfação crônica de um ser humano, do conflito entre suas ilusões e aspirações, e da realidade insuportável que resulta desse embate: “bovarismo”.

Emma Bovary acreditou na ilusão de sua época que mentia que todo Sujeito deve e pode ser mais feliz do que realmente é. Melhor dizendo: tão feliz quanto o capitalismo e as revistas de moda são capazes de mentir. Os nossos capitalismo e modas outrossim nos convencem de uma felicidade sempre maior do que a que experimentamos ordinariamente. Então, compramos à crédito, trepamos constantemente e nos envenenamos alegremente apenas para fazer jus a tal ideal, que, entretanto, está sempre distante de nós alguns cifrões, orgasmos e doses de veneno. Isso que desde a modernidade chamamos “felicidade” é, na verdade, um mito, pois só os mitos nunca têm lugar na realidade. Não é à toa que o bovarismo é caracterizado como uma forma de mitomania. Desse modo, #somostodosMadameBovary porque insistimos no mito feliz que o capitalismo e a modernidade nos fizeram crer que é a realidade.


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