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220714 alves NYCEstados Unidos - Le Monde Diplomatique - [Eric Alterman] Ainda que dirigidas por democratas, a maioria das grandes cidades norte-americanas deixa a segregação social correr solta. Em Nova York, os privilégios dos ricos parecem ter encontrado um freio na eleição, em novembro de 2013, do prefeito Bill de Blasio.


Nova York vai se transformar numa “nova Havana”? Desde que o democrata Bill de Blasio foi eleito para a prefeitura da principal cidade norte-americana, em 5 de novembro de 2013, esse medo paira sobre o Partido Republicano, que designou o sucessor de Michael Bloomberg como seu “principal inimigo progressista”. Segundo o New York Times, “os dirigentes republicanos veem na jovem administração de De Blasio a encarnação dos medos deles diante do crescimento de uma ‘nova esquerda’”. Esta se caracterizaria notadamente por um “desdém populista em relação aos ricos, uma simpatia estampada em relação às organizações de trabalhadores, assim como uma preocupação constante com as desigualdades de renda”.1

Desde as primárias democratas para a prefeitura de Nova York, De Blasio colocou as desigualdades no centro de seu discurso, repetindo incansavelmente que a história de Nova York tinha se transformado no “conto de duas cidades”:2 aquela dos ultrarricos e a de todo o resto. Seu programa decididamente social lhe permitiu conseguir a investidura de seu partido – vencendo sobretudo a candidata favorita da mídia, apoiada pelo todo-poderoso prefeito que deixava o cargo3 –, depois de vencer com folga (72% dos votos) seu adversário republicano, Joe Lhota.

Lenin, Mao e Ho Chi Minh

Em seu discurso de posse, em 1o de janeiro de 2014, ele confirmou o mote de seu mandato: “Fomos eleitos para colocar fim às desigualdades econômicas e sociais que ameaçam desfazer a cidade que amamos”. Em Nova York, onde o poder econômico é onipresente, tal programa promete uma séria corrida de obstáculos. Tão logo a frase foi pronunciada, um editorialista da Slate,Matt Yglesias, partilhou um tuíte com todas as nuances: “Para sua posse, De Blasio monta uma cena em companhia dos corpos embalsamados de Lenin, Mao e Ho Chi Minh”.

Alguns dias depois, o processo de comunismo assumiu um contorno burlesco. Nova York acabava de ser atingida por uma espetacular tempestade de neve; as estradas estavam bloqueadas. Os tabloides se precipitaram ao encontro de cidadãos irritados pelos problemas de retirada da neve na região muito chique de Upper East Side de Manhattan. De Blasio teria lhes “voltado as costas”, insurgiu-se uma moradora no New York Post. “Ao recusar tirar a neve de Upper East Side, ele disse: ‘Eu não sou um deles’.”4A frase circulou pela internet e se espalhou nos meios de comunicação locais e nacionais – em particular nos de Bloomberg. Mas De Blasio permaneceu fiel ao discurso que fez seu sucesso eleitoral.

Para ganhar a prefeitura de uma cidade tão multicultural, esse filho de imigrantes alemães e italianos pôde contar com suas ascendências familiares, assim como com sua situação conjugal: ele é casado com uma afro-americana. Sua crítica severa às batidas policiais injustificadas (conhecidas como stop and frisk) que os negros sofrem seduziu parte do eleitorado, mas o que assegurou sua vitória foi com certeza sua mensagem econômica, cimento de seu programa.

Nova York é a terceira cidade mais desigual dos Estados Unidos, que são por sua vez o terceiro país com mais desigualdade do mundo. No bairro de Wall Street, os bônus pagos aos traders – US$ 164.530 por cabeça, em média, em 2013 – e os salários que ultrapassam US$ 20 milhões por ano, como o de Lloyd Blankfein, presidente do Goldman Sachs, em 2013, não suscitam nenhuma comoção. A administração Bloomberg era inteiramente devotada ao bem-estar e ao conforto dessa minoria de ultrarricos, sob o pretexto de que eles são os que mais contribuem para as receitas fiscais da cidade: 5% dos lares nova-iorquinos dividem 38% dos rendimentos globais.

Com apartamentos comumente vendidos por dezenas de milhões de dólares para uma elite globalizada, a ilha de Manhattan brilha mais do que nunca. A poucos quilômetros de distância dali, no entanto, uma parte não negligenciável da classe média nova-iorquina mergulha lentamente na pobreza. Entre 2008 e 2011, de acordo com dados do Departamento Norte-Americano do Censo, a renda média por família encolheu 6%. No final de 2011, metade das famílias da cidade ganhava menos de uma vez e meia a renda que determina a linha de pobreza; 17% das famílias em que um membro trabalha em tempo integral e 5,2% dos lares em que dois membros têm um emprego vivem abaixo dessa linha. Ao mesmo tempo, os aluguéis explodiram. Entre 2005 e 2012, o aluguel médio (ajustado à inflação) aumentou 11%, enquanto a renda dos locatários não cresceu mais que 2%. Segundo o Centro Furman de Política Imobiliária e Urbana, mais da metade dos locatários de Nova York gasta pelo menos um terço de sua renda para pagar a moradia.5

A medida que constitui o carro-chefe da campanha de De Blasio, combatida por todos os seus rivais, é a criação de um fundo especial para a educação universal desde a mais tenra idade, financiado por uma taxa de 0,05% sobre as rendas que ultrapassam US$ 500 mil. A proposta se reveste sobretudo de um caráter simbólico: o prefeito de Nova York não pode decidir sozinho sobre uma cobrança fiscal desse porte. Ele deve obedecer ao aval do governador do estado de Nova York, Andrew Cuomo. Ora, se por um lado esse aspirante à candidatura democrata para a eleição presidencial de 2016 se diz progressista em questões relativas à sociedade – ele é favorável ao controle das armas de fogo e ao casamento homossexual –, por outro ele reivindica certo conservadorismo econômico, particularmente em matéria fiscal. Numa carta aos moradores do estado, ele se gabava em dezembro de 2011 de ter “estabelecido o primeiro teto de impostos sobre a propriedade”, de ter levado os impostos da classe média “a seu nível mais baixo desde 1953” e as taxas sobre as empresas “a seu nível mais baixo desde 1968”.

O jogo ambíguo do governador

As ambições de De Blasio, portanto, correm o risco de tropeçar na obsessão anti-impostos de Cuomo. Os dois homens, que fazem questão de exibir sua amizade e se apresentar como aliados políticos, surgem principalmente como os “melhores inimigos” do Partido Democrata. Suas divergências refletem o conflito que opõe os partidários de uma economia mais igualitária, que colocam suas esperanças em líderes como De Blasio e na senadora Elizabeth Warren,e a ala direita do partido, mais preocupada com a liberdade das empresas e reunida em torno de Cuomo e de Hillary Clinton.

Sendo os estados encarregados de distribuir os benefícios federais e de aumentar os impostos, todo prefeito tem interesse em manter boas relações com seu governador, sobretudo se pretende levar a cabo políticas audaciosas. Acontece que Cuomo mantém um jogo ambíguo, destinado acima de tudo a preservar suas chances para 2016. Quando as pesquisas indicavam que a opinião pública lhe era favorável nisso, ele se associou ao candidato à prefeitura de Nova York para defender o projeto de educação pré-maternal universal. Contudo, chegado o tempo de financiá-lo, ele se opôs ferozmente à criação de uma nova taxa. Depois de uma queda de braço de várias semanas, De Blasio finalmente conseguiu que o estado financiasse a iniciativa durante três anos.

O novo prefeito não demonstrou a mesma tenacidade na questão das charter schools, as escolas públicas financiadas por fundos privados que escapam ao controle dos sindicatos de professores.6 Esses estabelecimentos educam uma pequena proporção dos alunos nova-iorquinos (nem 6%). Enquanto a maior parte dos progressistas vê nisso um meio de sabotar a escola pública, privando-a de seus financiamentos e de seus alunos mais motivados, os republicanos e os gestores de fundos de pensão, sempre preocupados em reduzir o papel do poder público, os defendem com unhas e dentes. Quando De Blasio criticou o princípio dessas escolas, Cuomo correu para defendê-las, forçando o prefeito a um recuo humilhante. Aos olhos do público, o primeiro apareceu como um novato, e o segundo, como um político experiente.

Mas De Blasio não é rancoroso. Quando, no final de maio de 2014, o Working Family Party, uma coalizão de militantes sindicais, comunitários etc. próxima do Partido Democrata, se dividiu quanto ao apoio a ser dado a Cuomo para a renovação de seu assento em 2015, ele batalhou a seu favor nos bastidores. Um prefeito de Nova York tem tanta dificuldade em desafiar seu governador quanto este tem de desafiar o apoio do mundo das finanças. Acontece que Cuomo já levantou mais de US$ 33 milhões visando à sua reeleição no próximo ano, ainda que não tenha nenhum oponente significativo.

A questão da moradia será crucial para sondar a determinação de De Blasio. Durante a campanha, ele prometeu criar 200 mil novas unidades de habitação com aluguel barato. Segundo a maior parte dos especialistas, será difícil atingir esse objetivo. Ele próprio evoca “o maior e mais ambicioso dos programas de moradia com aluguel barato iniciado por uma cidade deste país em toda a história dos Estados Unidos”.

Ocorre que o setor imobiliário exerce influência considerável sobre o aparelho político nova-iorquino, e é importante não desagradar-lhe. Os ricos, que pagam milhões de dólares por um apartamento em frente ao Central Park, querem por seu lado ser mimados, ter garantidos para si os serviços de um concierge, dispor de piscinas e salas de ginástica; eles não têm nenhum desejo de dividir seu bairro – e muito menos o hall do prédio! – com a plebe que anda de metrô. Dessa forma, De Blasio faz papel de equilibrista, mostrando-se favorável à promoção imobiliária, mas também preocupado em desenvolver a oferta em favor das classes médias e populares.

Firmeza contra a classe média

De momento, sua estratégia se mostrou eficaz, como o testemunha o caso “Domino Sugar”. Há alguns anos, o futuro dessa antiga refinaria de açúcar no coração do Brooklyn suscita animados debates. Em 2012, o promotor Jed Walentas comprou o terreno, prometendo construir escritórios para empresas de novas tecnologias, mas também 2.300 moradias, das quais 660 com aluguel barato. O prefeito, no entanto, julgou as cifras insuficientes. Apesar das ameaças do promotor de abandonar tudo e dos ataques do conjunto da imprensa, ele se manteve firme, e Walentas se comprometeu a construir quarenta moradias de aluguel barato adicionais.

De Blasio compreendeu então que qualquer política favorável aos pobres e às classes médias corria o risco de provocar quedas de braço semelhantes com a classe média bem de vida, seus aliados na capital do estado de Nova York, Albany, e a mídia que a defende. Assim, ele fez a aposta de oferecer serviços reais às pessoas, a fim de sublinhar a defasagem entre as preocupações dos meios de comunicação e os problemas cotidianos delas. Enquanto a economia da cidade se comportar bem, ele deverá estar em condições de realizar sua promessa do “progressismo urbano” que se desintegrou nos anos 1960. Los Angeles, Seattle, São Francisco ou mesmo Chicago seguirão o exemplo nova-iorquino? 

Ilustração: Alves.

Notas:

1   Michael Barbaro e Michael M. Grynbaum, “Republicans cast de Blasio as a leading liberal foe” [Republicanos lançam De Blasio como um líder liberal inimigo], The New York Times, 14 maio 2014.

2   Cf. Nathaniel P. Morris, “De Blasio’s tale of two cities” [O conto de duas cidades de De Blasio],The Washington Post, 7 mar. 2014. A fórmula “conto de duas cidades” se inspira no título de uma obra de Charles Dickens.

3   Ler Renaud Lambert, “Une élection selon Michael Bloomberg” [Uma eleição segundo Michael Bloomberg], Le Monde Diplomatique, jun. 2010.

4   Jennifer Gould Keil e Frank Rosario, “De Blasio ‘getting back at us’ by not plowing” [De Blasio “voltando as costas para nós” ao não retirar a neve], The New York Post, 21 jan. 2014.

5   “#NYChousing. 10 issues for NYC’s next mayor” [#Moradia na cidade de Nova York: 10 questões para o próximo prefeito da cidade de Nova York], Center Furman for Real Estate & Urban Policy, Universidade de Nova York, 2013.

6   Ler Diane Ravitch, “Volte-face d’une ministre américaine” [Reviravolta de uma ministra norte-americana], Le Monde Diplomatique, out. 2010.


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