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pobreza-riqueza 3Manifesto 74 - [André Albuquerque] Escrever uma história é difícil, mais difícil ainda é escrever uma boa história, daquelas que prendem desde o início, que nos fazem apaixonar pelas personagens e pelos seus trajectos.


Não esquecer que uma boa história deve conter algumas mudanças inesperadas na narrativa, para ficarmos de boca aberta e com vontade de ler, ouvir ou imaginar mais. O final é o mais difícil, é aquela parte em que há quem prefira finais felizes, há quem goste de finais realistas, "porque a vida é mesmo assim", e há quem goste de finais dramáticos, cheios de sangue, suor e lágrimas, muitas lágrimas.

 
Uma história que meta gente pobre tem todos os condimentos para se tornar numa boa história. Há a possibilidade de estarmos perante personagens que se apaixonam fatalmente por personagens ricas, apostando num amor impossível; personagens que nascem pobres, vivem pobres e morrem pobres, estas servem para nos mostrar a sorte que temos em não sermos famintos; e personagens que ascendem na hierarquia social a pulso. Esta última categoria de personagens é aquela que oferece as maiores possibilidades de nos dar uma belíssima história, um(a) "self-made man/woman", um(a) lutador(a), um(a) vencedor(a). Começar do zero, do nada, e chegar ao interminável é encorajador, empolgante e tem ainda o condão de nos mostrar que para chegarmos lá basta querermos muito e trabalharmos para isso.

O uso de histórias da pobreza e dos pobres é irresistível e sempre foi um ponto forte da literatura, da informação, do desporto e da política. Num mundo cada vez mais empanturrado de informação, é cada vez mais difícil olharmos em redor e não sermos esbofeteados com histórias da pobreza a todo o segundo. Há a caridade que se preocupa imenso com os mais pobres e a sua fome, há as políticas cada vez mais sociais e preocupadas apesar dos constantes cortes nas próprias prestações sociais, há a auto-criação de oportunidades que em menos de um fósforo transportaram um pobre da sua barraca para uma mansão com vista para o mar, três cães de caça e um iate de dois andares e também há o necessário contraste, um magnata de sempre que começou por ser obrigado a vender o iate, depois a mansão e que no fim apenas ficou com três velhos mas leais cães de caça. Histórias de suposta humanidade, histórias que nos querem tornar em marinheiros atentos e amarrados à luz do farol que não para de girar, e que de tanto girar, em vez de nos guiar, acaba por nos atordoar e paralisar. Mas lá está, quem se deixa paralisar são só aqueles que não sabem aproveitar o microsegundo que têm para agarrar a luz e serem guiados para o nirvana.

É certamente uma lapalissada dizer que só há milionários porque há pobres e que os milionários só fazem senão bem em aproveitar o espaço público em seu favor. É a tal luta de classes, quem luta melhor ganha. E a estratégia que o capitalismo decidiu utilizar para organizar a desorganização que o mesmo provocou nos sistemas financeiros e económicos em 2008, foi justamente sugar e utilizar ainda mais os pobres e a pobreza.

As constantes notícias sobre o aumento da pobreza são utilizadas pelos sectores anti-capitalistas para tentar mostrar que estas políticas não estão a resultar e que devem ser alteradas, mas o capitalismo usa-as, inteligentemente, para assustar aqueles que ainda não estão nesta situação. Dessa forma, ganham para o seu lado da batalha um exército de formigas aflitas e laboriosas dispostas a tomarem todas as atitudes necessárias para que na próxima notícia eles não estejam naquela estatística - mesmo que o façam de forma inconsciente.

E então é ver estas formigas a chibar o colega de trabalho, a tentar fugir aos impostos da melhor forma possível - mesmo que futuramente acabem por pagar uma multa pelo seu acto feito de forma desmazelada, porque fugir bem aos impostos só é possível para quem já é abastado -, a dar o couro e o cabelo para abrirem um negócio próprio que daí a dois anos os enfiará numa corrente interminável de dívidas, a aceitarem descidas absurdas de salários e cortes em direitos fundamentais só para não perderem o trabalho, a aceitarem não terem filhos e a venderem os que já têm lá por casa. Tudo para não entrarem nas estatísticas da pobreza.

O que as formigas não se dão conta, é que enquanto fazem tudo isto, não só se estão a esquecer das suas obrigações de solidariedade para com os seus, os da sua classe, como estão a engordar o mesmíssimo elefante rico que lhes pede todos estes sacrifícios para não as esmagar, enquanto, sem elas se aperceberem, lhes tapam a entrada para o seu buraco, construído com tanto esforço e dedicação, e que terão de voltar a construir do zero.

É que estas formigas perdidas no meio do medo também participam nas campanhas de recolha de alimentos de certos e determinados bancos glutões, nos grandes pic-nics citadinos onde são injectadas com mediocridade intelectual e impregnadas no sítio mais escondido do seu cérebro com publicidades inteligentes que as automatizam para comprar o supérfluo, oferecem os últimos tostões aqueles que antes lhe prometeram um crédito ou investimento genial que transformaria a sua diária refeição de arroz de atum num repasto de lagosta suada vinda dos melhores mares. E o pior de tudo, é que estas formigas votam naqueles e naquelas que, prometendo consertar todas as coisas que partiram anteriormente de propósito, apenas querem colaborar com os elefantes ricos para que tudo fique como está, melhor, para que os elefantes fiquem ainda mais ricos do que estão.

No fim de contas tudo estará bem quando acabar bem, e a verdade é que no dia 13 de Julho, de certeza que haverá mais algumas belíssimas histórias de pobreza para contar, e das melhores, daquelas que transformam meninos de favela, refugiados de guerra, filhos de imigrantes que chegaram à civilização ocidental sem nada nas mãos, crianças que tinham doenças graves ou meninos gozados na escola e no bairro por terem as pernas tortas, em campeões do mundo de futebol.

Tal como outras actividades económicas criadas para entreter e mostrar às formigas que há salvação e que com muito esforço se transformarão em maciços elefantes, o futebol também salva. Sem ele, seriam mais os putos do Funchal a deixarem-se fotografar nus por turistas menos sérios, seriam mais os meninos da favela que entre um emprego de salário indigno e um emprego como foguete de droga não teriam grandes dúvidas, seriam mais as crianças africanas destinadas a morrer de fome ou numa qualquer guerra civil absurda ordenada por dois elefantes estrangeiros em confronto.

Aqui há dias, disse o Papa Francisco que "os comunistas roubaram a bandeira dos pobres à Igreja Católica". À partida esta frase é logo impossível, porque para os comunistas só há uma bandeira, a vermelha. É que uma bandeira deve ser agitada para mostrar orgulho nalguma coisa, e não para mostrar que ali há almas bondosas que oferecem conforto e segurança aos menos protegidos. A bandeira da pobreza a que o Papa se refere, nunca foi roubada à Igreja ou perdida em nenhum momento da sua história, porque desde o seu início que ela só serviu para mostrar que a Igreja vive não "para" mas sim "dos" pobres, e a Igreja nunca deixou de a agitar.

Os comunistas e outros grupos - poucos, cada vez menos -, lutam para que os pobres façam parte do passado. A Igreja Católica luta para que eles se mantenham num patamar constante, que lhes permita tirar benefício perene da sua existência, quase como se a "bandeira da pobreza" da Igreja não fosse um pano enfiado num pau, mas sim um espeto de ferro em brasa que apenas serve para trespassar pobres.

Mas a Igreja Católica é só um mais um elefante. Um elefante mais antigo e portentoso do que alguns outros, e tão ou mais capaz que os outros, de se alimentar das formigas que, de quando em vez, decide espezinhar. As formigas medrosas têm de começar a olhar mais para cima do que para o lado, ou até para baixo da terra, têm de ser capazes de entrar no carreiro certo das que sabem como fugir às enormes patas dos elefantes. Quando organizadas e decididas as formigas são mais inteligentes e velozes a mudar de rumo, os elefantes são muito poderosos, mas pesados, pachorrentos e lentos.

Neste mundo fabuloso sobre o qual La Fontaine teria sabido escrever uma bela história, é preciso alterar a moral da mesma, porque quando deixar de haver pobres, os elefantes passam as ser os medrosos e as formigas vão ser capazes de os extinguir da face da Terra.


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