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gabi bola presoFrança - Le Monde Diplomatique - [Sarah Perrussel e Leah Ducré] Na França, há quinze anos o cumprimento externo da pena permite que condenados em final de sentença vivam e trabalhem fora da prisão. Sem suspender a condição de detento, ele prepara o regresso à liberdade. 


"A gente sai do xadrez e é atirado na rua, no frio, na hora que eles bem entendem!” Rachid reclama por princípio,1 porque prefere estar aqui a estar na prisão. São 8 horas da manhã. Na noite anterior, a temperatura caiu abaixo de 0 °C na pequena comuna de Saint-Hilaire, a poucos quilômetros de Grenoble. Armados com pás e rastelos, Karim e os outros detentos ligados à iniciativa Solid’Action tiram a neve das proximidades de uma escola. Enfrentando o gelo, eles voltam a se confrontar com as exigências do mundo do trabalho. Alguns meses antes, viviam atrás das grades. Hoje, esses marcados pela vida contam com o “cumprimento externo da pena”. Essa alternativa francesa ao confinamento permite que os detentos completem sua sentença em regime aberto. Supervisionados por associações, prisioneiros de longa data ou pequenos infratores que vêm de uma curta passagem na prisão tomam o caminho da reintegração ou, para alguns, da integração.

A lei sobre prevenção da reincidência e individualização das sentenças, aprovada pelo Parlamento em 17 de julho de 2014, apresenta esse dispositivo como parte da “liberdade supervisionada após cumprimento de dois terços da pena”. Mas como ter certeza de que, apesar de valorizado no texto da lei, ele não será esquecido na prática ou negligenciado em favor da pulseira eletrônica? Existente na França desde 1970, o cumprimento externo da pena é reconhecido em termos de integração há quinze anos, mas só atinge um pequeno número de detentos. Em 2013, apenas 664 pessoas ficaram sob a responsabilidade de associações.2 Na última década, a participação dessa medida no abrandamento de penas só caiu, passando de 11% em 2005 para menos de 5% em 2013.3

A administração francesa não dispõe de dados estatísticos.4 Enquanto a pulseira eletrônica é alvo de alguns estudos, a ausência de pesquisas qualitativas sobre o cumprimento externo da pena torna muito subjetiva a avaliação de sua eficácia. Optar por esse dispositivo também é uma escolha ética e filosófica. “É necessário repensar a punição para que ela permita reintegrar o condenado à comunidade”, avalia Pierre-Victor Tournier, diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França. O especialista em demografia penal lamenta que a prisão ainda seja o foco do sistema no país. No inconsciente coletivo, o encarceramento continua sendo a pena de referência. O cumprimento externo pode ser visto como outro nome para o acesso à liberdade, a pérola das políticas laxistas. A realidade é bem diferente. “Isto está longe de ser um acampamento de férias!”, exclama Jean-Yves Balestas, presidente da Arépi, uma associação de inserção social da comuna de Dauphin. A juíza Céline Roccaro concorda: “O cumprimento externo da pena é mais restritivo do que ficar em uma cela na frente da televisão, mas também é uma maneira mais inteligente de cumprir a pena”.

Ao contrário da crença popular, o cumprimento externo da pena é mais barato que uma vaga na prisão. A administração penitenciária paga entre 20 e 40 euros por dia, por pessoa, à associação que se encarrega dos detentos, ao passo que o encarceramento custa cerca de 95 euros. O elevado número de guardas nas prisões explica em grande parte a diferença. A economia para o governo também resulta do fato de que ele não cobre todas as despesas das associações: alojamento, refeições, acompanhamento social, assistência na procura de emprego, atividades culturais ou de formação. Balestas estima que cada residente custa em média 70 euros por dia. A administração penitenciária repassa apenas 35 euros.5 Para cobrir o restante, a Arépi e as cinquenta associações de cumprimento externo da pena existentes na França precisam procurar contratos com as coletividades regionais ou com empresas.

É um verdadeiro desafio. São raras as instituições dispostas a trabalhar com pessoas sob custódia judicial. E isso mesmo com os contratos permitindo financiar parte do sistema, pois os condenados repassam entre 20% e 40% de sua renda à associação que os acolhe e lhes oferece trabalho. Como os salários dos condenados variam entre 400 e 1.100 euros líquidos, o montante que lhes resta depois de pagar esses custos é modesto. Já as associações, para cobrir suas despesas, estão constantemente em busca de outras subvenções junto ao governo ou às coletividades: metrópole, conselho geral, departamento ou direção de coesão social. A maioria das associações que pratica o cumprimento externo de pena enfrenta uma grande precariedade. Por que o governo não dá mais apoio? Anne Chemithe, membro do Serviço Penitenciário de Inserção e Condicional (SPIP, na sigla em francês) de Isère, explica: “De acordo com as regras orçamentárias, o governo compromete-se a cobrir apenas os custos adicionais vinculados à sentença de prisão: a vigilância e o reforço da segurança”. O acompanhamento social, a assistência, a moradia e o trabalho não estão incluídos nesse orçamento.

Virar-se para o futuro

A prisão trancafia o detento em seu passado; o cumprimento externo da pena ajuda a preparar seu futuro. “Sem a Solid’Action eu ainda estaria na prisão. Teria voltado a fazer besteira para poder comer, para ter onde morar”, diz Jérémy, que já cumpriu sua pena. Aos 27 anos, sua situação financeira ainda é frágil, e ele sabe que a qualquer momento pode se ver obrigado a voltar para a rua. “O que me deixa estressado é a dívida. Ainda tenho de compensar as partes civis, durante seis anos.” Então, para não colocar tudo a perder novamente, ele volta à Solid’Action com frequência para encontrar trabalho e moradia. Tanto as refeições como os quartos são coletivos. Jérémy nem sempre consegue a privacidade com que sonha, mas sabe que pode contar com essa estrutura em caso de dificuldade.

Entre os dispositivos penais existentes, o cumprimento externo da pena é o que oferece o suporte mais abrangente. Apesar dessa qualidade, é o menos utilizado. Em 2013, as pessoas que usavam pulseiras eletrônicas eram quinze vezes mais numerosas que os detentos em cumprimento externo da pena.6 Para a administração penitenciária, a vigilância eletrônica tem duas vantagens principais: custa muito mais barato (10 euros por dia, por pessoa) e é mais simples de pôr em prática. Mas não se ajusta a muitas situações.7 O uso de pulseira eletrônica implica retornar ao domicílio, o que nem sempre é possível. Para Jérémy, voltar a viver com os pais seria impensável. A Solid’Action dá uma solução para esse problema. Lá, ele também encontrou um ambiente afetivo que o impede de voltar a se meter em confusão e retornar ao ciclo da reincidência. Além disso, para poder usar a pulseira eletrônica, o detento precisa apresentar um projeto profissional, mas muitos não conseguem fazê-lo, por falta de formação, experiência ou referências. Não é fácil encontrar trabalho depois da prisão. Para essas pessoas, e também para aquelas que o vício ou as más influências as impedem de se reintegrar, o cumprimento externo da pena costuma ser o melhor dispositivo penal possível para o abrandamento da sentença.

Somente a falta de recursos financeiros não justifica o fraco desenvolvimento dessa pena alternativa. Frequentemente, o número de casos concedidos é inferior ao que prevê o orçamento da administração penitenciária. Outros obstáculos estão envolvidos, como a falta de informação entre as instituições ou o receio pessoal dos envolvidos na decisão de instaurar um cumprimento externo de pena. A política de abrandamento da pena em um departamento se assenta na parceria entre o diretor do Serviço Penitenciário de Inserção e Condicional e o juiz de aplicação de pena (JAP).8 E ambos podem relutar quanto à alternativa de cumprimento externo da pena: o SPIP alega a insuficiência de recursos humanos para aplicá-la, ao passo que o JAP considera os riscos que o detento representa para a sociedade.

Em caso de um incidente grave, a responsabilidade é do juiz, por isso ele pode se mostrar resistente ou exigir fortes garantias antes de optar pelo dispositivo.9 A lógica da segurança geralmente prevalece sobre a da reinserção. Além disso, os JAP muitas vezes desconhecem as práticas das associações de integração. Quando assume plenamente seu papel de intermediário, o SPIP permite estabelecer uma relação de confiança e favorece a ousadia nas decisões sobre o dispositivo de abrandamento de pena. É o caso de Grenoble, onde a juíza Roccaro conduz uma política voluntarista. Ela explica que se “tranquilizou” conhecendo bem as associações e o serviço de inserção de Isère.

O Serviço Penitenciário de Inserção e Condicional tem mais um compromisso: fazer as associações locais conhecerem o dispositivo. O processo é ainda mais difícil pelo fato de os conselheiros de condicional trabalharem sempre com menos pessoal que o necessário. Em 2011, diante da queda de seu crédito, os SPIPs de Eure e Sena Marítimo decidiram não mais indicar casos para cumprimento externo da pena.10 A administração penitenciária previu o financiamento de novos projetos; no entanto, só colocou no orçamento a compensação das associações, mas nenhum dinheiro suplementar para aumentar o número de conselheiros do SPIP...

Engajamento necessário

Essa falta de recursos, aliás, acaba tendo de ser compensada pelo compromisso forçado do terceiro elemento-chave da relação: as associações. Muitas vezes, é pela convicção pessoal que os diretores dessas estruturas voltam-se ao cumprimento externo de pena. “Minha preocupação é reinserir as pessoas na vida em sociedade, quando tudo foi feito para excluí-la. Também acho que é essencial retirar os mais fracos da desumanidade da prisão por alguns meses”, diz o responsável pela Solid’Action, Alain Poncet-Montange. Em algumas regiões, o tripé institucional funciona muito mal. Na Borgonha, por exemplo, as associações que abrigam o cumprimento externo de pena ficaram bastante desanimadas em 2012: “De maneira geral, o sentimento é de que a justiça é um parceiro complexo (até problemático), sobretudo pelo tempo consumido em procedimentos e pelo risco de decisões inesperadas que desarranjam tudo o que foi preparado”.11

De voz rouca e ombros curvados, Frédéric carrega consigo o passado na prisão. Após onze anos encarcerado, ele experimentou dois anos de cumprimento externo da pena. Ciente das desvantagens e das vantagens do dispositivo, ele se sente feliz de ter podido receber uma “lufada de ar fresco” antes de sair: “O cumprimento externo da pena me ajudou muito a reencontrar a realidade”, declara. “Consegui me adaptar às mudanças da sociedade: celular, internet e tudo o mais.” Mas Frédéric provavelmente não voltará a ver a associação que o apoiou. Os militantes das associações seguem em frente sem agradecimentos. Eles estão acostumados. Em todos os níveis, aprenderam a trabalhar sem esperar reconhecimento. Sua abnegação continua sendo a pedra angular do sistema. Como em muitas outras áreas, é ela que compensa o recuo do Estado.


Sarah Perrussel e Leah Ducré são estudantes de jornalismo


Ilustração: Gabriel K


1    O nome dos condenados foi alterado.

2  Pierre-Victor Tournier, “Nouvelles séries pénales temporelles actualisées au 1er décembre 2013” [Novas séries penais temporais atualizadas em 1º de dezembro de 2013], relatório do Observatório das Prisões e Locais de Detenção ou Restrição das Liberdades, 2013.

3  Direção da Administração Penitenciária, “Les chiffres clés de l’administration pénitentiaire au 1er janvier 2013” [Principais números da administração penitenciária em 1º de janeiro de 2013], Paris, jul. 2013.

4  Kensey Annie e Abdelmalick Benaouda, “Les risques de récidive des sortants de prison, une nouvelle évaluation” [Os riscos de reincidência dos egressos da prisão, uma nova avaliação], Direção da Administração Penitenciária, Cahiers d’études pénitentiaires et criminologiques, n.36, Paris, maio 2011.

5  Hajman Elsa, “Le placement à l’extérieur, un aménagement de peine à développer” [Cumprimento externo da pena, um dispositivo penal a ser desenvolvido]. Disponível em: .

6  Pierre-Victor Tournier, “Nouvelles séries pénales...”, op. cit.

7  Pierre-Victor Tournier, “Le placement sous surveillance électronique, est-ce que ça marche?” [O monitoramento eletrônico funciona?], Observatório da Criminalidade e Respostas Penais, Éditions du CNRS, nov. 2010.

8  FNARS Borgonha, “Placement extérieur” [Cumprimento externo da pena], 2012.

9  Mouhana Christian, “Les relations entre monde judiciaire et administration pénitentiaire” [A relação entre o mundo judicial e a administração penitenciária]”, Questions pénales, XXV/2, Centro de Investigação Sociológica em Direito e Instituições Penais, maio 2012.

10            Correspondência do SPIP de Eure à associação Saint-Paul de Rouen, 4 abr. 2011; correspondência do SPIP de Sena Marítimo à associação Saint-Paul de Rouen, 31 mar. 2011.

11       Estudo de acompanhamento de pessoas sob custódia judicial acolhidas nas associações da rede FNARS.


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