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IMG 8021Ucrânia - Realismo Político - [André Ortega] Para quem não se lembra, a guerra civil na Ucrânia se dá entre um governo central pro-ocidente, com recortes chauvinistas, e um levantamento no leste do país, concentrado na região do Donbass, chamado de separatista, mas caracterizado pelo federalismo e o antifascismo em seu discurso.


Foto - Trincheira na guerra na Ucrânia.

Ainda no fim de 2014, por volta de outubro, muito antes de Debaltsevo e das negociações de Minsk II, eu discutia a possibilidade do conflito na Ucrânia congelar (conflito congelado, frozen conflict). Naquele momento não passava de uma leitura geral da correlação de forças, da situação estratégica, misturado com algum bom senso e comparações com outros países. Toda vez que me perguntavam o que eu achava ou toda vez que eu me manifestava a respeito, não podia deixar de trazer essa opção. No fim de agosto do ano passado eu falei um tanto disso quando os ucranianos começaram a construir “O Muro de Dnipopetrovsk”, uma espécie de linha maginot misturada com cordão sanitário.  O processo de Minsk II e a intensificação da influência russa (tirando o próprio desenvolvimento estratégico) fortaleceram essa opinião. No entanto, o que mais contribuiu para essa minha posição foi o que eu pude observar em campo entre fevereiro e março de 2015 (por volta de 60% do tempo no front, na região de Lugansk). É minha experiência da guerra civil ucraniana que me leva a sustentar a opinião de que o conflito está congelado e o que em última análise eu chamo de um termidor novorruso (que é o apaziguamento das tendências mais radicais ou revolucionárias em prol das políticos e políticas adequadas ao congelamento). Neste breve período, além de testemunhar o que vou descrever, também discuti muito a questão com Alejandro Acosta(que escreve sobre política internacional), o que ajuda a lapidar o quadro – assunto era diário, a cada hora um exemplo. Essas conversas nos permitiam articular análises mais sofisticadas sobre o processo ucraniano além de constatar um congelamento que para nós já era o óbvio, o fato dado, então já cabia analisar.

O conflito congelado é um conflito não resolvido. É uma situação em que as repúblicas existirão de fato mas não serão reconhecidas, nem farão alguma paz com o Estado ucraniano. O Estado ucraniano desiste de suas ofensivas fracassadas, mas ao mesmo tempo não reconhece e os rebeldes não avançam. Escaramuças vão continuar e os ucranianos recorrem a uma “palestinzação” da região, não demonstrando tanto interesse em recupera-la a partir do momento que começou uma campanha de bombardeios devastadora e extremamente alienante (para a população civil). Seria um caso parecido com o da Transínistria, da Abkhazia ou da Ossétia do Sul. O problema e a diferença é que isso ressalta um separatismo, sendo que o separatismo não era exatamente o programa central, mas algo marginal dentro de um contexto mais amplo baseado principalmente no federalismo e numa concepção básica de antifascismo (o governo de Kiev é mau, “fascista”, mata o povo, então vamos combatê-lo).

Antes tudo, cabe ressaltar de eu estava com os cossacos. Por influência de Moscou os cossacos acabaram por aceitar, de cara feia, aderir a autoridade unificadora das repúblicas populares. Os cossacos mantiveram uma postura mais radical de oposição a negociações ao mesmo tempo que eram críticos dos dirigentes das repúblicas. Ischenko (subordinado ao Atamã Dryomov), comandante de Pervomaisk (cidade do front norte) fez videos furiosos denunciando as negociações e os dirigentes, antes de morrer assassinado por um comando de sabotadores.  Enfim, eu estava com os mais radicais e estava no front – se minha visão estivesse sendo de alguma forma distorcida, seria para o lado oposto do congelamento.

Os cossacos de uma maneira geral não demonstravam muita confiança em Minsk, por outro lado tinham confiança na continuidade da guerra – viviam falando de como em breve acabaria o cessar-fogo e a guerra voltaria com toda força. Muitos dali sonhavam com a retomada da cidade de Licithiansk, e depois dela seria uma grande estrada na direção de Kiev (estrategicamente verdadeiro – a tomada da cidade seria um grande triunfo e colocaria os ucranianos numa situação muito difícil). Não confiavam na boa vontade dos ucranianos, que estariam somente se reorganizando para um próximo ataque como fizeram antes – existem fascistas demais do outro lado para esses se interessarem por uma paz. Também tinham razões morais para recusar a permanência dos acordos, pois os fascistas que atacaram o Donbass e queimaram pessoas vivas em Odessa não poderiam ficar impunes.  Existem também os motivos pessoais, pois muitos estão fora de suas casas, situadas em territórios controlados pelo exército ucraniano.

Alguns, como muitos fazem por aqui, ainda argumentavam como a crise política e econômica obrigaria Kiev necessariamente a uma ofensiva, num ato de desespero que garantiria legitimidade política.

“É sempre o exército ucraniano que rompe, pois ele usa esse cessar fogo pra se reorganizar; se re-estruturam e partem pra ofensiva. (…) Falei com um amigo de Kharkov e ele me passou como está a situação econômica, de crise total, o açúcar que custava 5 grivnas agora custa 20, não tem carne no mercado, a economia está destruida. Eles têm de preparar uma ofensiva e apostar numa vitória ou deixam de existir, pois a situação está insustentável.” (Comandante “Richard”, Stakhanov; leia entrevista completa)

A realidade é muito mais desoladora. O que existe até agora (já o oitavo mês de 2015) é um conflito parado, sem ganhos ou mudanças estratégicas, onde a artilharia ucraniana as vezes arrasa zonas rebeldes e posições opostas trocam tiros de infantaria. Por incrível que pareça, o que eu vi lá e que veio se formando a partir do crepúsculo do ano passado foi uma guerra de posições reminiscente da Primeira Guerra Mundial, trincheiras incluso. Quem mais fez essa comparação foi  o voluntário brasileiro Rafael Lusvarghi (que fez algo como dez meses de guerra sem descanso); eu me lembro de mais alguém que disse o mesmo em público, porém minha memória me trai. O que tem de mais singular e móvel (mas ainda assim um tanto fixo, de posições) é a guerra de block-posts, em que os dois lados disputam por pontos de controles na estrada – elemento essencial para afirmar o controle territorial no início da guerra, agora menos importante. O que antes era uma guerra irregular, de guerrilhas, de alta mobilidade, virou uma guerra de posições lutada de um lado por um exército irregular.

O lado ucraniano está muito fraco para ganhar, está logisticamente degastado e com a moral decadente (devido não só as derrotas mas as ondas de recrutamento forçado). Suas últimas tentativas de ofensiva no pós-Slaviansk foram um fracasso total. A situação de crise não exige necessariamente a ofensiva, mas somente o prolongamento da condição de guerra – a existência perene do inimigo inclusive alimenta um discurso de legitimação em Kiev aliado ao recrudescimento do aparato repressivo.

O lado novorrusso não só conta com as próprias limitações militares para organizar uma ofensiva, como ainda tem que lidar com a posição de Moscou.  E qual é a posição de Moscou? A posição de Moscou é de buscar a paz por não querer caos e guerra na sua fronteira, por não querer consequências econômicas que vão dos abalos no mercado energético até as sanções lançadas pelo ocidente, ao mesmo tempo que acha conveniente uma zona rebelde dentro da Ucrânia como uma pedra no sapato dos anti-russos sentado em Kiev e acima de tudo uma pedra no sapato da estratégia da OTAN, que não pode incluir um país em guerra. Isto quer dizer que a Rússia acha conveniente o congelamento do conflito. Creio que quanto a isto existe um ponto de convergência entre diversos analistas (mesmo que alguns tratem de maneira estúpida e simplista como um mero “proxy russo” buscando realizar esses objetivos), entre eles Richard Sakwa em seus “Crisis in Borderlands”. É bom lembrar, claro, que a Rússia já tinha um carta contra Kiev na Crimeia, sendo a revolta no Donbass um inconveniente, uma dor de cabeça, um fato consumado com o qual ela deve lidar. A Rússia não tem interesse em anexar a região, pois isso só seria mais dor de cabeça. O melhor é congelar.

A influência russa passou a moderar as coisas de acordo com o que foi acertado em Minsk. Os rebeldes iam ter que se organizar e se unificar sob as repúblicas; as repúblicas deveriam criar um exército profissional ou pelo menos tentar…. até criaram um contrato! De repente combatentes e comandantes que lutaram um ano inteiro sem receber nada foram submetidos a um contrato oficial de uma das duas repúblicas populares; se algum comando se recusasse a assinar seria considerado um “makhnovista”, um desertor. Obviamente uma medida de controle, pois Moscou quer garantir que o aquilo que é conversado com os dirigentes das repúblicas seja de fato respeitado pelos combatentes em campo. Naturalmente também atraiu elementos que até então não haviam se metido na guerra e que não são exemplo de zelo patriótico (apesar de muitos terem saído logo quando não receberam pagamentos). Eles precisam de estabilidade, não de punição para “os fascistas de Odessa”, afinal estão jogando um jogo maior (como me disse um comandante em Pervomaisk, “agora não decidimos mais nada, somos pequenos perto de um conflito bem maior”). Certamente existem diversos emissários moscovitas trabalhando nesse sentido, para não falar dos novorrussos que de fato servem a essa visão.  Rússia também pode garantir maior segurança e talvez a expansão das capacidades defensivas (anti-artilharia) dos rebeldes. De qualquer forma é muito difícil para a Novorrússia ignorar o Kremlim, isso seria cair num isolamento mortal. Desta forma assumem dirigentes mais dóceis e a revolução perde seu sentido inicial (i.e. ir a Kiev, punir fascistas, federalismo, etc) em troca de sua sobrevivência na forma de um processo político distorcido na forma das repúblicas.

Países europeus que se envolveram diretamente em Minsk tem interesse em acalmar o conflito porque também tem suas economias feridas. Mesmo os Estados Unidos, que jogavam mais lenha na fogueira, moderaram sua posição por uma série de fatores: desilusão com a capacidade de Kiev vencer a guerra, a desorganização política do lado ucraniano, a disposição do presidente Obama em negociar ali para trabalhar em conjunto sobre o Oriente Médio, motivado por uma seguida de derrotas internacionais e pela pressão eleitoral. A Rússia então tem que mostrar boa vontade e manter os rebeldes sob controle.

O que vi em campo foi uma série de coisas relacionadas a letargia, paralisação, burocratismo e tudo que possa caracterizar um processo de congelamento. Muitos se esforçavam pela manutenção do status quo; comandante que elogiavam posições agressivas se esquivavam da responsabilidade assumir essas posições -aparentemente ninguém estava disposto a arriscar. O que eu vi numa posição avançada de trincheiras, 6km de Popasna (cidade controlada por ucranianos) é o melhor exemplo. O tenente responsável pela posição fazia de tudo para manter o status quo e um funcionamento “burocrático” das trincheiras, mesmo numa situação em que os ucranianos atacavam todos os dias, as vezes os dia inteiro! Apesar de seu nome de guerra, “Pirata” era um sujeito extremamente quadrado e pouco audacioso. O grupo de voluntários brasileiros (naquela época Unidade Che Guevara, criada por Dryumov), unidade de rasyvetika (“hasvetika”) (reconhecimento, sabotagem e diversionismo), tinha sua autonomia operacional solapada e seu serviço atrapalhado. Alguns russos ficaram impressionados pois afinal os brasileiros queriam se arriscar ao invés de cavar trincheiras inúteis e montar guardas infinitas (certamente não tão desnecessárias). “Trincheiras inúteis”, assim as viam pelo menos em comparação com as trincheiras kilométricas dos ucranianos, construídas com máquinas (não com pás) e com estruturas de alta tecnologia, feitas de concreto armado e com cômodos funcionais. As horas de guarda pareciam mais desoladoras sem o serviço de rasyvetika. Quando alguns brasileiros saíram com alguns russos para o reconhecimento, foi um escândalo – atirar nas posições ucranianas parecia absurdo mesmo com os ataques diários. A perspectiva de atacar se tornou inconveniente e para alguns comandantes seria sair de uma zona de conforto, sendo portanto necessário controlar/disciplinar as bases, sejam estrangeiras ou locais. Existe muita enrolação. Em Stakhanov as tropas passam um dia após o outro trancadas em quartéis improvisados, em outras cidades se observa a tentativa deformada de se retornar a uma “vida normal” (só que onde boa parte dos participantes são pessoas de uniforme militar).

Conversei bastante com o voluntário Rafael Lusvarghi sobre o assunto, já que ele também queria se esclarecer sobre a situação – hoje ele com certeza a compreende com ainda mais profundidade. Depois desses episódios, Rafael se mudou para Donetsk, onde começou uma nova unidade, com quadros renovados, jovens ousados unidos no amor às armas, determinado a se rir desse status quo e conduzir ações contra o inimigo. Para ele o burocratismo e a inércia são muito desgastantes. Lusvarghi adotou uma postura de “paciência curta” e não aceita bullshit burocrático, o que obviamente gerou conflito com toda ordem de superiores. Seu costume de ir atacar as posições ucranianas e de eventualmente explodir torres inimigas o levou para além do conflito (não, não para o paredão): os brasileiros acabaram numa unidade de morteiro, onde as coisas funcionam num ritmo muito mais devagar. Essa semana Rafael se encontrou com Igor Strelkov, uma peça importante no começo da revolta mas que acabou se retirando do palco principal. Isso pode ter renovado seu ânimo de alguma forma (pelo o que conheço de Rafael, ele certamente aprecia suas críticas as repúblicas, seus líderes e boa parte de seus soldados). Strelkov é um tanto radical, subscreve a ideia de congelamento e considera isto nocivo. No entanto, parafraseando um prestigiado comandante de pelotão que entrevistei, Strelkov não é general, Strelkov é lenda – ou seja, é “passado”.  É difícil dizer até onde vão os braços de Strelkov, mas as dificuldades são claras. Além dessa situação em geral (que é o oposto do que ele defende), existem alguns pontos específicos. Seu principal aliado (“fantoche” para os detratores), Mozgovoy, está morto. Os atuais dirigentes das repúblicas são o oposto dele, Zarkachenko especialmente (que lutou sob ele) o renunciou. Ele sabe também que tem a oposição de figuras no Kremlim (ele provavelmente crê que é o caso do próprio Surkov). Ele lembra do passado, onde se envolveu diretamente na polêmica com o neo-comunista Kurghnyian por este ter servido como um emissário russo num processo de negociação envolvendo algumas forças de Donetsk e o exército ucraniano – forças poderosas trabalham no sentido oposto daquilo que ele pretende. O fato é que o conflito está congelado e que por enquanto é difícil ver como Strelkov poderia mudar qualquer coisa.

[A unidade de Lusvarghi já não existe mais~]

Assista o vídeo em que Lusvarghi fala um pouco das perspectivas da guerra e se inscreva no canal para acompanhar mais material da guerra na Ucrânia:


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