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140914 ilustraadriannegallinariLe Monde Diplomatique - [Sébastien Broca] Colaborativo e aberto: ao celebrar, em 2013, seus trinta anos, o software livre encarna mais do que nunca a resistência contra a privatização do saber e da cultura. Milhares de programadores desenvolvem benevolamente ferramentas que servem a todos. As relações entre esse movimento e as esferas mercantis.


 

Pânico na rede: em abril de 2014, profissionais da informática descobriram que uma falha tornava vulnerável um dos softwares de criptografia mais utilizados no mundo. Esse programa coloca para funcionar os protocolos de segurança representados pelo pequeno cadeado que aparece na barra de endereço do navegador. Espera-se que ele assegure a confidencialidade das trocas de dados entre um site e seus usuários quando, por exemplo, são feitos pagamentos on-line. Redes sociais, serviços e sites de vendas integraram-no a fim de evitar qualquer interceptação de informações por terceiros. Esse programa, chamado OpenSSL, apresenta uma particularidade: é um software livre.

Para além do problema da segurança, a revelação dessa falha (chamada “Heartbleed”) levanta uma questão: como um software fundamental para a maior parte dos atores da web comercial – entre os quais alguns acumulam centenas de milhões de dólares de lucros – pode ser concebido e mantido por um punhado de desenvolvedores voluntários?1Se a falha passou despercebida durante dois anos, foi em razão do fraco número de colaboradores do projeto. Essefracasso espetacular destaca a relação desequilibrada entre as grandes empresas da web e o universo do software livre, cujos desenvolvedores são historicamente movidos pela paixão pela programação mais do que pelo chamariz do ganho. Ele também coloca em pauta o futuro do movimento de profissionais da informática que alguns intelectuais de esquerda viram como uma força de resistência à mercantilização da internet.

Ferramenta de emancipação

Até o final dos anos 1970, os programas de informática não tinham valor de mercado: com frequência escritos de maneira cooperativa pelos fabricantes e pelos usuários, eles podiam ser livremente trocados. No início dos anos 1980, a difusão maciça do microcomputador alterou as regras do jogo. Ela favoreceu a criação de uma indústria do software, o que balançou a cultura das pessoas ligadas à informática, historicamente baseada nas normas da pesquisa científica. Muitos desenvolvedores deixaram então as universidades para integrar empresas recém-criadas. Eles aceitaram que seu trabalho fosse submetido a cláusulas de confidencialidade e servisse para desenvolver softwares “proprietários” (os da Microsoft, por exemplo), vendidos com condições de uso restritivas.

Foi para lutar contra essa tendência que Richard Stallman, então especialista em informática do Massachusetts Institute of Technology (MIT), criou em 1984 o movimento do software livre. Ele definiu nesses termos os programas cujo código-fonte – as instruções que determinam a execução de um software – está disponível e pode ser utilizado, copiado, modificado e redistribuído. Na visão dele, isso permite defender a colaboração entre desenvolvedores, a circulação da informação e a possibilidade de que os usuários controlem suas ferramentas. O movimento do software livre apoia-se desde a origem sobre dois eixos: de um lado, produz programas suscetíveis de substituir softwares proprietários; de outro, carrega um discurso militante, articulado em torno das ideias de liberdade do usuário e da abertura do saber.

No final dos anos 1990, os softwares livres já não eram programas esotéricos desenvolvidos por um punhado de hackers cabeludos. O GNU/Linux tornou-se um sistema de exploração robusto e apreciado pelos profissionais. Com o impulso fulgurante da internet, as questões levantadas por Stallman ressoaram além do círculo dos primeiros convertidos. Na França, militantes e intelectuais da esquerda crítica descobriram o software livre com uma ponta de fascinação.2 “Mas até onde se pode ir?”, perguntou-se Jérôme Gleizes no primeiro número da revista Multitudes, antes de responder: “Não há limites.”3 Ele imaginava um mundo informático inteiramente desembaraçado de seus entraves proprietários.

Os responsáveis pela rede Samizdat.net – que abrigava na época uma constelação de sites e de listas de discussão para associações, revistas e organizações sindicais – contribuíram então para difundir o uso, no seio dos movimentos sociais, de numerosas ferramentas livres (GNU/Linux, Apache, Sympa, Spip),4 insistindo na necessidade de aproximar “hacktivistas” e ativistas.5 Intelectuais como Yann Moulier-Boutang, André Gorz e Gleizes viram o software livre com um trunfo para superar as resistências da esquerda crítica em relação à informática e à internet, frequentemente consideradas instrumentos da globalização neoliberal. O movimento lançado por Stallman veio assim encarnar a possibilidade de uma dissidência no seio do mundo digital. Gorz o descreveu como uma “negação prática das relações sociais capitalistas”;6 negação ainda mais significativa por se aninhar em um setor-chave da nova economia do “imaterial”.

Duas grandes ideias emergem dessas interpretações entusiasmadas: os softwares livres são tecnologias emancipadoras e encarnam uma alternativa à organização capitalista da produção “imaterial”. Mas em que ponto estamos quinze anos depois?

Mais do que uma finalidade técnica, o movimento do software livre visa a um objetivo social. Isso o distingue de sua outra metade, o movimento open source, que defende igualmente a abertura do código informático, mas por outras razões: produzir softwares com melhor desempenho e criar modelos de negócios inovadores. Stallman, por sua vez, estima que a “liberação” das tecnologias tem por objetivo estender o campo das liberdades individuais e coletivas. Como salienta o desenvolvedor Benjamin Mako Hill, “ele está pouco ligando para o software livre: para ele, o que importa é a liberdade dos usuários de softwares”.7 Sua aposta é que, quando se liberam os softwares, são libertados aqueles que os utilizam.

Vários argumentos fundamentam essa ideia. Os softwares livres estariam assim imunizados contra as funcionalidades maliciosas – por exemplo, aquelas que procuram comprometer os dados pessoais dos usuários; porque, a partir do momento em que todos têm acesso ao código-fonte, essas funcionalidades são fáceis de serem eliminadas (isso supõe, no entanto, como mostrou o caso “Heartbleed”,que o código seja regularmente examinado e controlado). Ao evitarem que os programas se tornem caixas-pretas, certos defensores do software livre colocam para si mesmos um objetivo mais amplo: permitir uma reapropriação democrática da informática. Gorz era sensível a essa ideia. Ele considerava os softwares livres “tecnologias abertas”, por oposição às “tecnologias trancadas”, que “escravizam o usuário, programam suas operações e monopolizam a oferta de um produto ou serviço”.8 Ele os via como um meio de ultrapassar uma sociedade de consumo na qual as pessoas utilizam as tecnologias sem compreendê-las nem dominá-las.

Os softwares livres foram, portanto, pensados como o veículo de um projeto de emancipação. O chato é que todo mundo já ocupou um lugar a bordo. Os gigantes da web utilizam-nos hoje em dia para impulsionar seus serviços e fazer funcionar suas gigantescas infraestruturas técnicas; e isso não tem nenhum efeito sobre suas liberdades. Não é porque os serviços do Google ou do Facebook são fornecidos graças ao Linux que os internautas compreendem melhor o funcionamento da web ou que seus dados pessoais deixem de ser transmitidos por meio de agências de informação! Ao centralizarem e afastarem dos usuários a execução de numerosas tarefas, o crescimento das redes sociais e o desenvolvimento de serviços on-line (webmail, armazenamento de arquivos) embotaram a eficácia dos softwares livres em garantir as liberdades.

Essas tendências não escaparam aos principais interessados. Para serem fiéis ao espírito do movimento – e não somente na intenção –, certos adeptos do software livre deslocaram um pouco a luta, tentando, por exemplo, dispensar os serviços do Google.9Outros se esforçaram em construir soluções de substituição das grandes redes sociais comerciais, com um sucesso de momento limitado, tendo em vista os exemplos do Diaspora e do Identi.ca. Já Stallman preconiza uma solução muito simples: recusar-se sistematicamente a utilizar os serviços dos gigantes da web. Rígido, mas não desprovido de humor, ele incita os pais a considerar o Facebook “uma espécie de gangue com a qual você não quer que seu filho se veja envolvido”.10

Quando o Google e a Intel se deixam seduzir

Um dos maiores sucessos do software livre é de ordem jurídica. Criada em 1989, a General Public License(GPL)forneceu aos desenvolvedores uma ferramenta sólida para subtrair os programas informáticos dos mecanismos de apropriação privada. Essa licença confere aos usuários os direitos de execução, cópia, modificação e distribuição. Ela impõe a eles uma obrigação: que essas liberdades sejam mantidas em todas as versões ditas “derivadas” do software. Dessa forma, um editor não pode recuperar o código “livre”, efetuar nele algumas pequenas modificações e comercializar o todo sob uma licença proprietária, o que a GPL impede de forma engenhosa. Além disso, ela inspirou várias outras criações jurídicas, como as licenças Creative Commons, que permitem ao autor de uma obra artística ou intelectual liberar os direitos proprietários intelectuais convencionais.

Alguns viram nessa inovação fundamental o detonador de um modelo produtivo emergente. Moulier-Boutang, que é economista, apresentou a abertura dos recursos informacionais como o melhor combustível para a inovação. Ele viu igualmente na organização colaborativa do trabalho experimentada pelos desenvolvedores de softwares livres o sinal da obsolescência das hierarquias gerenciais.11 Da mesma forma, Gorz via a luta entre os softwares livre e proprietário como a expressão de um conflito mais geral entre uma economia pós-capitalista em formação, impulsionada pelo desenvolvimento da abertura e da gratuidade, e dos atores industriais agarrando-se desesperadamente às ferramentas convencionais da propriedade intelectual.

Na verdade, o capitalismo cognitivo foi capaz de aceitar esse regime jurídico alternativo que parecia ameaçá-lo. Pouco a pouco, as empresas tecnológicas compreenderam que renunciar à apropriação privativa de certos recursos informáticos poderia trazer vantagens: uma redução de suasdespesas, por exemplo. Com o OpenSSL,elas usam um software cujo desenvolvimento não pagam. No caso do núcleo Linux, a abertura do código lhes permite mutualizar uma parte de seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento. O aperfeiçoamento do software é assim majoritariamente assumido pelos assalariados de grandes empresas (Google, Oracle, Intel etc.), que veem nisso uma solução com bom desempenho e pouco onerosa. Cada empresa emprega profissionais de informática para realizar as modificações do código que considera particularmente estratégicas para sua atividade, desfrutando ao mesmo tempo o trabalho dos outros. A ausência de apropriação privativa torna-se um instrumento de eficácia econômica. Os partidários do software livre não necessariamente reconhecem nisso seu projeto inicial, mas também não veem aí grande coisa para reclamar, contanto que a abertura do código seja preservada.

Estamos, portanto, muito longe da agitação pós-capitalista que um intelectual como Gorz acreditou descobrir. As exigências de grandes projetos colaborativos como o Linux incitam talvez as empresas a conceder margens de liberdade mais importantes a seus empregados; estes, no entanto, ainda são empregados. A ausência de apropriação privativa também não é suficiente para modificar a divisão das riquezas entre capital e trabalho. De maneira geral, a parte dos lucros tirada de um software que volta para seus desenvolvedores não é necessariamente superior no mundo do “livre”. Com frequência, a taxa chega a revelar-se inferior àquilo que é na indústria “proprietária”.

Dessa forma, o caminho percorrido há trinta anos reveste-se de uma clara importância. Quando são protegidos por uma licença de tipo GPL, os frutos do trabalho permanecem livremente acessíveis a todos.12 Não é nada, particularmente num contexto no qual a extensão dos direitos de propriedade intelectual privatiza seções inteiras do conhecimento, da cultura e até mesmo da vida.13 E, além disso, se os softwares livres não são mais suficientes para garantir as liberdades individuais na internet, o movimento lançado por Stallman não renunciou completamente a fazer um contrapeso aos gigantes da web...

Sébastien Broca

Sébastien Broca é pós-doutorando no LabEx Sites/CEPN e autor de Utopie du logiciel libre, du bricolage informatique à la réinvention sociale [Utopia do software livre, do faça você mesmo informático à reinvenção social], Le Passager Clandestin, Neuvy-en-Champagne, 2013.



Ilustração: Adrianne Gillinari

1  Cf. Jose Pagliery, “Your Internet security relies on a few volunteers” [A segurança da sua internet repousa sobre um punhado de voluntários], CNN Money, 18 abr. 2014. Disponível em:http://money.cnn.com.

2  Ler Bernard Lang, “Des logiciels libres à la disposition de tous” [Softwares livres à disposição de todos], Le Monde Diplomatique, jan. 1998.

3  Jérôme Gleizes, “Introduction au logiciel libre” [Introdução ao software livre], Multitudes, n.1, Paris, mar. 2000.

4  Ler Philippe Rivière, “La toile de Spip” [A rede de Spip], Le Monde Diplomatique, out. 2003.

5  Cf. Aris Papatheodorou e Jean-Pierre Masse, “Ils pourront toujours se brosser avec leurs lois” [Eles sempre vão poder se esfregar com suas leis], entrevista com Jean-Marc Manach, Transfert, Paris, 28 set. 2000.

6  André Gorz, L’immatériel [O imaterial], Galilée, Paris, 2003.

7  Benjamin Mako Hill, “Freedom for users, not for software” [Liberdade para os usuários, não para o software], 23 out. 2011. Disponível em: http://mako.cc.

8  André Gorz, Ecologica [Ecológica], Galilée, 2008.

9  Cf. Goofy, “Se libérer de Google? Chiche!” [Libertar-se do Google? Duvido!], Framablog, 26 maio 2014. Disponível em: www.framablog.org.

10  Richard Stallman, “Facebook”. Disponível em: https://stallman.org.

11   Yann Moulier-Boutang, Le capitalisme cognitif. La nouvelle grande transformation [O capitalismo cognitivo. A nova grande transformação], Éditions Amsterdam, 2007.

12   Existem várias outras licenças no mundo do software livre, das quais algumas, chamadas “permissivas”, não colocam barreiras à privatização do código.

13       Cf. James Boyle, “The Second Enclosure Movement and the construction of the public domain” [O Segundo Movimento de Fechamento e a construção do domínio público], Law and Contemporary Problems, v.66, n.1-2, Durham (Estados Unidos), 2003.

 


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