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Mario BenedettiBrasil - Diário Liberdade - [João Guilherme A. de Farias**] 21 de março foi o dia internacional da poesia, data atribuída pela UNESCO na sua 30ª Conferência Geral em 1999. Aproveitamos esta comemoração, a conjuntura brasileira atual e as vésperas do aniversário do fatídico golpe militar de 1964 para relembrar a importância que carrega a obra de Mario Benedetti.


Foto no Domínio Público - Mario Benedetti em 1983.

meio rica / meio culta / entre o que crê ser e o que é / media uma distância meio grande / Do meio mira meio mal / os neguinhos / os ricos os sábios / os loucos / os pobres / Se escuta um Hitler / gosta mais ou menos / e se um Che fala / também / Em meio ao nada / meio que duvida / como tudo a atrai (a meias) / analisa até a metade / todos os fatos / e (meio confundida) / sai às ruas com meia panela / então meio que chega a se importar / com os que mandam (meio nas sombras) / às vezes, só às vezes, se dá conta (meio tarde) de que a usaram como peão / em um xadrez que não compreende / e que nunca a converte em Rainha / Assim, meio raivosa / se lamenta (a meias) / de ser o meio do que outros comem / dos quais não consegue entender / nem a metade. (Poema “Classe Média”).

Há 52 anos, o Brasil adentrava numa das mais profundas e cruéis fases da sua história: instaurava-se a Ditadura Militar. Iniciada em 1964 e oficialmente extinta em 1985, seria desonesto negar que seus resquícios ainda permanecem vivos e são não raramente reproduzidos diariamente pelas instituições que constituem o Estado brasileiro (Tribunais, Polícias, etc.).

Ao lado de países como Paraguai, Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Colômbia e Guatemala, o Brasil passou a compor o infeliz quadro dos Estados que violaram famílias inteiras, deixando-as dilaceradas pela tortura, pelos desaparecimentos e exílios de milhares de trabalhadores rurais e urbanos, estudantes secundaristas e universitários e militantes políticos, que corajosamente resistiram e ousaram lutar.

A influência desse processo de militarização que assolou os Estados da América Latina por mais de três décadas, cada qual com a sua singularidade, é flagrante na obra de Mario Benedetti, o “poeta do desexílio”.

Se hoje áreas do saber dedicam-se ao estudo da função da memória como fator de importância na luta contra o retrocesso e supressão das conquistas democráticas, consagrando-a [a memória] como uma ferramenta fundamental para manter vivas as lembranças da barbárie promovida no seio do Estado de exceção para que esta não mais ocorra, pode-se dizer que no campo literário a dedicação da obra benedettiana atribui elevado destaque a esta temática, sendo ela mesma uma arma na preservação da memória.

Não sei como nem quando, mas essa garotada de hoje será a vanguarda de uma pátria realista. E nós, os veteranos? Nós, as carroças, como dizem os galegos? Bem, os que ainda estivermos lúcidos na época, nós, as carroças que ainda estivermos rodando, nós os ajudaremos a recordar o que viram. E também o que não viram. (Romance “Primavera num espelho partido”).

Nascido em 14 de setembro de 1920, no departamento de Tacuarembó, na cidade de Pasos del Toro, interior do Uruguai, foi registrado como: Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti Farrugia. Aos quatro anos, Benedetti se mudou para a capital, Montevidéu, onde concluiu seus estudos primários no Colégio Alemão. Em 1946, Benedetti se casou com aquela que seria sua eterna companheira: Luz López Alegre, para quem dedicou, quando dos trinta anos de parceria, o poema Bodas de Perlas:

[...] cuando la conocí / tenía apenas doce años y negras trenzas / y un perro atorrante / que a todos nos servía de felpudo / yo tenía catorce y ni siquiera perro / calculé mentalmente futuro y arrecifes / y supe que me estaba destinada / mejor dicho que yo era el destinado / todavía no se cuál es la diferencia [...].

Passados mais de 10 anos no exílio, quando viveu em países como Argentina, Peru, Cuba e Espanha, em 1984 retornou ao Uruguai, inaugurando uma fase que ele próprio denominou de desexílio.

Em 2006, Luz Alegre faleceu. Em 2009, aos 88 anos, foi a vez de Benedetti nos deixar.

Por coincidência, ou não, a primeira vez que ouvi falar de Mario Benedetti foi durante uma aula de Teoria Política Contemporânea, na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Unila, e não numa aula de literatura (!). Salientava o professor, naquela ocasião, que nomes como Carlos Onetti, Daniel Viglietti e Mario Benedetti são imprescindíveis para a compreensão da realidade Sul-Americana, tornando-a inclusive mais rica e fabulosa.

Após ter lido uma parte significativa da obra benedettiana, posso dizer, sem sombra de dúvidas, que a aprendizagem da história dos processos políticos da América do Sul, de Artigas aos Tupamaros, é incompleta e insuficiente se não passar por suas considerações e seus relatos fantásticos.

A capacidade de Mario Benedetti, de nos levar às mais bárbaras situações, desde uma sessão de tortura até a mais íntima cena de amor, como em Pedro e o Capitão, consagra-o como um dos principais escritores da América Latina.

Benedetti [...] recupera a palavra cassada pela censura e, a partir dos destroços, reconstrói a fala dos oprimidos, exigindo do leitor um mergulho na história para poder alcançar os significados das imagens poéticas e das referências. (CORREA, p. 172) [1].

Em seu conto La Vecina Orilla a pedra de toque, isto é, o ponto a partir do qual se constrói toda a sua narrativa é a entrega de uma rosa vermelha. Incrivelmente, uma simples flor, em Benedetti, torna-se um ato potencialmente subversivo.

"Todo lo político que hice en mi vida fue llevar una rosa" "¿Y te parece poco?"

A paixão, a verdade e a ausência de inocência que constituem cada palavra, estruturando-as em versos e parágrafo, culminando em poemas e romances, resultam em Benedetti na mais valiosa demonstração de uma sociedade afetada por profundas contradições, marcada historicamente por uma prejudicial correlação de autoritarismo estatal e desigualdade econômica, que, nas situações mais gravosas, aplaude inconscientemente a mais cruel natureza humana materializada num único ato: a tortura.

Mas, ao mesmo tempo, sua escrita revela a antítese desse processo de desumanização. A esperança, arma de todo exilado, pulveriza-se por sua obra.

O desejo da sobrevivência, do retorno, da manutenção de um amor e da sobrevivência da memória revela a sua absoluta crença na força das mulheres e dos homens.

O ateísmo de Benedetti espraiado por seus escritos não é, nesse sentido, destituído de significado. É, ademais do resultado do seu materialismo literário, uma forte amostra de que para ele o destino dos indivíduos está nas suas próprias mãos, como força coletiva.

Benedetti, tal como se referiu à sublime e revolucionária figura de Soledad Barret Viedma, foi um literário “de três ou quatro povos”. Sua literatura, sem perder o encanto, dispensa termos rebuscados e preza pela clareza.

Sem fazer de seus romances e poemas um reflexo mecânico e positivo da realidade, Mario Benedetti encanta a todos com a destreza que permite unir e superar elementos antagônicos como a dor e a esperança.

[...] o texto de Benedetti se encontra em um patamar de testemunho, contudo, possui o distanciamento necessário à representação e à análise crítica dos acontecimentos. O poeta via sua escritura não como uma representação fiel da realidade, mas como uma ponte para o exercício de sua atividade poética: “[...] a realidade enriquece ao escritor quando se converte em um trampolim para sua imaginação, em um elemento motivador e desencadeante de seu mundo de ficção” (BENEDETTI, 1974, p. 108). (CORREA, p. 172).

Se muitos “marxistas” fazem da obra de Karl Marx um mero estudo literário e acadêmico, olvidando-se do ponto alto de sua teoria: a revolução; alguns leitores de Benedetti, por vezes, apegam-se ao seu lado puramente sedutor, que ventila um certo grau de romantismo e erotismo, como em Corazón Coraza, esquecendo que é na totalidade de seus escritos que está a mensagem de sua literatura: a compreensão de uma realidade específica e do conjunto das relações contraditórias que se erguem sobre ela; em outras palavras: a denúncia das desigualdades e da violação do respeito ao ser humano, propondo uma dose mediata de clamor e luta pela bandeira vermelha do socialismo.

A obra benedettiana é, por seu caráter político, uma rosa potencialmente subversiva que entrega para a humanidade a autoria para forjar o seu próprio futuro.

NOTAS:

[1] CORREA, Maria N. Fonseca. Literatura, história e memória: uma leitura da poesia de Mario Benedetti. In. http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14669/1/2013_MariaNazareFonsecaCorrea.pdf

*Escrevia essas linhas em homenagem a Mario Benedetti, com o propósito de divulgar a sua importante obra político-literária. Nesse mesmo momento, estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) eram reprimidos por posicionarem-se contra o ato promovido por um grupo de manifestantes da classe média paulistana, que, dentre outros disparates, aplaudiam as ações da Polícia Militar de São Paulo, demonstrando absoluta falta de conhecimento da realidade segundo a qual a PM paulista executa quase duas pessoas por dia, sobretudo na periferia, portanto longe das suas luxuosas casas, além de ignorarem a tradição histórica desta universidade, que é marcada pela luta contra a repressão policial e em favor da democracia. Por isso esse texto é dedicado aos/às estudantes, trabalhadores e trabalhadoras e militantes que dão vida à PUC-SP.

**João Guilherme Alvares de Farias é militante político, estudante e pesquisador da PUC-SP e membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da USP.


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