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besPortugal - Revista Rubra - [Raquel Varela e Renato Guedes] Se tomarmos como verdadeiras as declarações dos responsáveis do Banco Espírito Santo (BES) e do Banco de Portugal (BdP), o caso do BES será o seguinte: se tivermos presente o organigrama do Grupo Espírito Santo (GES) [figura 1], uma parte dessa estrutura (da ESFG para cima) está podre, assim o essencial seria proteger o que está abaixo, ou seja, o banco propriamente dito; uma parte da podridão que afecta o BES terá a forma de empréstimos ao GES no valor de 1,5 mil milhões de euros, mas, segundo aquelas declarações, o banco teria, ainda assim, uma almofada de 2,1 mil milhões para acomodar essa parte putrefacta, i.e., para cobrir essa perda; por outro lado, o banco teria aprovisionado 700 milhões de euros para fazer face à perdas dos pequenos investidores que compraram títulos de dívida do GES nos balcões do BES. Mesmo assim, insistem várias fontes que o Estado ainda tem cerca de 6 mil milhões de euros, parcela do empréstimo da Troika destinado a recapitalizar a banca, que poderia ser usado no caso do BES. Finalmente, dizem, a família Espírito Santo perderia todos os seus activos (propriedades, acções, etc.), para saldar as suas dívidas.


As Incógnitas

Mas, nesta história que tantos tomam por verdadeira, há uma série de incógnitas.

Primeiro, o valor da dívida do GES ao BES é, de facto, somente de 1,5 mil milhões? Os problemas financeiros do GES são o resultado das imparidades (a diferença entre o valor contabilístico e o valor real) dos seus próprios activos. Isto é, se compararmos a declaração do valor dos activos apresentada pelo Grupo com o seu valor em bolsa, há 3 semanas, a diferença era de cerca 6 para 1, ou seja, os activos valiam 6 vezes menos. Na verdade, as dívidas do grupo são avaliadas em cerca de 7 mil milhões de euros. Ou seja, é muito provável que os seus activos estejam longe de liquidar as dívidas do Grupo se valem, na realidade, 6 vezes menos. Anuncia-se o calote.

Ao mesmo tempo, a exposição do BES ao GES varia de acordo com a imprensa: o Banco Português de Investimento (BPI) estima em 4,465 mil milhões de euros a exposição directa e indirecta; e a dívida do BES Angola ao BES monta a 3 mil milhões de euros — que só será paga se esmifrarem o povo angolano, nos moldes do que cá que fizeram no caso BPN.

Voltemos a almofada de 2,1 mil milhões de euros que o BES afirma ter. Assumindo que o banco tem de facto essa almofada, o que significa fazer uso dela para pagar o calote?

Há cerca de um mês, o BES terminou com sucesso um aumento de capital de pouco mais de mil milhões de euros, tendo assim elevado o seu capital próprio para um valor ligeiramente superior a 6 mil milhões de euros. Ora, antes do aumento, o BES declarara que cumpria o ratio exigido de 8% de capitais próprios em relação aos empréstimos e que esse valor passaria para 9,6% depois do aumento de capital; e, possivelmente, chegaria aos 10,5% na conversão de prejuízos em créditos fiscais, um bónus extra que o governo deu a todo o sector bancário.

Mas façamos as contas: se ratio do banco é 10,5% e o capital de 6 mil milhões, então se tirarmos 2,1 mil milhões para cobrir a exposição ao GES significa diminuir esse ratio para 7%, que é o actual limite mínimo. Este número é uma aproximação grosseira, mas recorda-nos o óbvio: o uso desses 2,1 mil milhões resultará numa queda abrupta daquele ratio, isso sem considerar o facto que os activos do BES estão expostos a uma grande desvalorização. De quanto? Não se sabe. Mas o Citigroup desenha um cenário em que esse ratio poderia cair para cerca de 3,1%. Consciente disso, o governador do BdP veio declarar, em 15 de Julho, que, no caso do BES precisar de liquidez, haveria accionistas e bancos interessados num aumento de capital ou em empréstimos ao banco. Mas percebamos exactamente o que significado destas palavras: ou os interessados são, na verdade, o Estado ou, então, o Estado terá de dar a garantia para aquela operação.

Os tais 700 milhões de euros aprovisionados pelo BES mostram bem quão incertas são as declarações dos responsáveis do BdP. Esta semana, o semanário Expresso esclarece-nos que, afinal, esse dinheiro representa o valor da seguradora Tranquilidade. O problema é que, contas feitas, essa garantia representa hoje somente… 50 milhões de euros.

A Europa, Portugal e o BES

Desde 2009, pelo menos, a ordem que emana da Europa é capitalizar a banca. O advento da crise de 2008 pôs os bancos na posse de um número ainda por clarificar de activos tóxicos. De lá para cá, cada Estado tratou de usar toda a sua força para trocar esses activos tóxicos (desvalorizados) por activos frescos (com valor).

Ao nível do BCE, tivemos, por um lado, uma queda histórica tanto dos juros como dos depósitos obrigatórios dos bancos no BCE (os juros estão em 0,15% e o depósito mínimo em -0,1%). O BCE também relaxou a sua política tanto na facilitação do acesso ao crédito directo através do BCE — o que em situações normais é altamente desaconselhável e custoso —, como passou a ser muito mais flexível na aceitação das garantias dos bancos (aceitando títulos duvidosos como garantia). Por outro lado, as dívidas públicas ofereceram um investimento seguro (ainda que com a intervenção da Troika, no caso de Portugal) permitindo essa troca de activos. No caso de Portugal, em 2009, criou-se uma linha de garantias oferecidas pelo Estado no valor de 20 mil milhões de euros (Governo Sócrates) e uma linha de crédito de 12 mil milhões de euros (ao abrigo do Programa da Troika). Tudo isso implica que o conjunto da banca está falida e só sobrevive se estiver ligado directamente ao Estado por um cateter de capitais.

Se nos recordarmos do BPN – cuja operação de nacionalização foi então anunciada como lucrativa no futuro —, esta dedução torna-se indiscutível: tirando o presidente, Oliveira e Costa, que tirou uma férias em casa — a que a imprensa chamou de prisão domiciliária —, os antigos accionistas conservaram a propriedade da única parte do grupo com activos não tóxicos e quem vive do trabalho pagou integralmente a conta por via da constituição do empréstimo da Troika. Por isso, a conclusão é que o BPN, ainda que não tenha falido de um ponto de vista formal, devia ter falido. Mas o BPN foi “salvo” pelo Estado. E esse salvamento foi exigido para que o Estado não deixasse cair os investidores que viam as suas fortunas abaladas pela crise no banco. Portanto, dizer que o Estado perdeu cerca de 9 mil milhões de euros é só declarar metade da história, pois a outra metade, e a que mais importou para a governação, é que alguns deixaram de perder cerca de 9 mil milhões de euros — isto é, os seus investidores, que, no “espírito” do empreendedorismo, por serem investidores, deveriam ter suportado os riscos da sua actividade.

Ora, a Banca portuguesa apostou tudo na sobrevalorização das casas (200 mil milhões em mais valias urbanísticas e uma dívida galopante); depois, para salvar o negócio imobiliário de valores inchados, transferiu os prejuízos para a dívida pública, via salários e reformas; através do poder político, privatizou o património público e empresas lucrativas, vende o que resta a investidores chineses com vistos gold; e, finalmente, levanta sérias suspeitas de lavar dinheiro para ditadores africanos com mandatos de captura internacionais, como é o caso do clan que governa a Guiné Equatorial, onde 44% da população nem sequer tem acesso a água potável.

Como é sabido, o ex-ministro dos negócios estrangeiros, Luís Amado, foi um dos promotores da entrada da Guiné Equatorial na CPLP. A Guiné Equatorial é o 3º maior produtor de petróleo da África e tem um PIBpc semelhante ao da Inglaterra, mas é possível ter um PIB elevado e, simultaneamente, a miséria da população — pois a Guiné Equatorial, além de ser um espelho de miséria e corrupção, é uma ditadura das mais sanguinárias dos nossos tempos. A riqueza do ditador, procurado pela justiça internacional, precisa de um porto seguro e há, inclusive, uma parte dela que é pura e simplesmente resultante de lavagem de dinheiro que não consegue entrar “limpo” nos corredores “normais” da circulação de capitais, nomeadamente, devido a processos judiciais em alguns países europeus como, por exemplo, a França. Assim, a Guiné Equatorial já assumiu entrar na recapitalização do BANIF, agora presidido, nem mais nem menos, por Luís Amado.

O Banif com a Guiné, o BES com Angola. Os clans, as ditaduras de partido único, os países ricos de povos miseráveis, têm assim em Portugal a plataforma giratória do dinheiro mais-sujo-é-impossível.

A Banca portuguesa vai queimando tudo por onde passa — o salário médio em Portugal já não dá para viver decentemente, com o mínimo morre-se de fome, os pensionistas estão na miséria, as empresas lucrativas foram vendidas, o consumo interno morreu, os jovens? emigrem!, e se tudo isto mesmo assim não chega, por que não vir a nós, senhor, o dinheiro sujo da miséria africana!

O que não se diz

Sobre os dinheiros disponíveis do Estado para a capitalização da banca, há uma incógnita não desprezível. Temos que nos perguntar o que estará o Estado a fazer com os 6 mil milhões que ainda tem supostamente disponível para a capitalização.

Suponhamos por um instante que está tudo a correr bem. O Estado emprestou parte do dinheiro a um banco e este, após os prazos estipulados, vai pagando a dívida com juros. Nesse caso, esse dinheiro teria um impacto positivo para o Estado, que, no fim das contas, iria receber o dinheiro de volta, mais algum em juros. Claro que se as coisas correm mal e o banco tem de cobrir as perdas, quem é o primeiro a perder é o Estado, dado que aquele dinheiro serviu como garantia para os depositantes e investidores privados.

Ainda que assumamos que tenha sido essa a trajectória dos 12 mil milhões de euros emprestados pela Troika e, portanto, dos 6 mil milhões que ainda faltam ser usados, há outra situação possível. Suponhamos que estamos diante de um banco com problemas de caixa, não só porque não atinge os ratios exigidos, como porque não tem dinheiro para fazer face às suas dívidas. Nesse caso, o que teríamos seria, não uma capitalização, mas a assunção dos prejuízos privados em troca de uma massa falida. E é precisamente isso o que acontecerá se o Estado puser algum dinheiro no BES em nome da capitalização, pois, ainda que a situação do BES seja formalmente diferente, no conteúdo em nada se diferencia do que já aconteceu com o BPN.

Assim, se algo há de semelhante no caso do BPN e no caso do GES, não é só a gestão duvidosa. O governador do BdP já indicou uma solução para o BES: a injecção de capital novo, por via de bancos e accionistas. Mas apresentam-se algumas dificuldades. O dinheiro disponível para isso (os tais 6 mil milhões) tem algumas limitações: só poderia ser usado para o aumento de capital e não para tapar buracos. A hipótese — intolerável — que se pode vir a desenhar para o BES é a de um grupo de bancos injectar o capital e assim recapitalizar o BES, desde que, como é evidente, o Estado entre com garantias perante esses bancos, porque estes só vão assumir uma massa falida com a devida protecção do Estado. E quem diz garantias do Estado diz pensões, reforma, saúde, educação. Se esta operação ocorrer, ela será anunciada como lucrativa para o erário público, tal como aconteceu com o BPN.

É muito difícil prever os próximos acontecimentos relevantes para os-que-vivem-do-trabalho em Portugal. Por um lado, o governo é pressionado politicamente para dilatar a resolução do problema de modo a que a sua intervenção financeira seja gradual e imperceptível para os eleitores. Por outro lado, esse mesmo governo é pressionado pelos “mercados” para revalidar as suas garantias ao capital privado. Em todo caso, é certo que a factura deste Governo será no final remetida para os trabalhadores. A alternativa é expropriar os activos, não sustentar os negócios privados e, muito menos, cobrir os seus riscos, como fez a Islândia há 3 anos — mediante uma mobilização popular que levou à queda do Parlamento. Um exemplo claro, e selectivamente esquecido, de que é possível optar pelo bem-estar social, pela liberdade e segurança das pessoas, contra a sustentação dos negócios privados dos investidores.

A solução para o GES/BES

A solução para o BES podia ser simples para o Estado. Independentemente do problema do valor dos activos financeiros, estes continuam a ser uma riqueza. Desde a Portucel, passando pelos campos de arroz da Comporta, hotéis, hospitais e balcões do banco com os seus trabalhadores formados, estamos diante de uma riqueza que pode ser usada pela conjunto da sociedade. Se o Estado tivesse a mesma ligeireza com que passou por cima da legislação ambiental e outorgou ao GES o direito a abater sobreiros no caso Portucel, ou como desmontou os contratos de trabalho assinados com os trabalhadores da função pública em favor dos contratos com os “mercados” e o juros da dívida, poderia agora passar por cima dos interesses dos investidores que andaram a reboque da família Espírito Santo e que agora clamam aos céus que sejam protegidos contra ela. A desapropriação dos activos do GES e do BES foi e continua a ser uma solução.

Mas, o que significa expropriar o GES/BES, desapropriar um banco? Expropriar um Banco não significa levar um país à falência. Pelo contrário, expropria-se um banco para evitar que o país vá à falência. Algo que foi feito na Europa várias vezes e em Portugal, em 1975. Ou seja, evita-se a nacionalização, em que o Estado só assume prejuízos, como no caso BPN e como foi e continua a ser o caso da recapitalização dos bancos sob protecção da Troika (dinheiro garantido pelo Estado, em troca de cortar salários, pensões e prestações sociais). Com a expropriação ficam sempre garantidos os depósitos que estão protegidos pela reserva bancária (fundo de garantias bancárias) — e que devem estar protegidos; com a expropriação conserva-se a riqueza de activos do banco (no caso do BES, campos de arroz, fábricas, propriedades, hospitais e clínicas, balcões bancários, trabalhadores formados, cujos despedimentos não devemos aceitar). Com essa riqueza investe-se na produção de mais riqueza para aquilo que o país necessita de produzir; com a expropriação evita-se a fuga massiva de capitais (e quanto mais tarde, pior ela será). Quem perde com a expropriação não são os depositantes nem o Estado, mas os accionistas centrais do Grupo.

Assim, os limites objectivos da economia criaram uma situação política que não admite simultaneamente dois resultados: neste momento, seja qual for a medida tomada, ou se salvam os investimentos privados dos accionistas do BES ou se salva o que resta do Estado social, dos salários e das reformas. Não existe qualquer solução económica que consiga salvar os dois.

*Renato Guedes, físico teórico, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Raquel Varela, historiadora, investigadora da FCSH-Universidade Nova de Lisboa


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