O crescimento lento mas contínuo da abstenção eleitoral nos países mais desenvolvidos ou, nos que o não sendo, integram espaços económicos imperialistas, como é o caso de Portugal, levanta uma questão pertinente que quase todas as correntes comunistas costumam arrumar sumariamente, dizendo que essa é uma atitude politicamente atrasada, própria dos alienados.
Este tipo de apreciações prende-se com a ideia de que os comunistas não se devem alhear nem desvalorizar os actos eleitorais, porque eles não só são parte integrante da luta política, como decidem o nosso futuro próximo por via dos governos e programas eleitos. A este argumento segue-se a enumeração das vantagens proporcionadas pela participação nos actos eleitorais: difusão das ideias comunistas em melhores condições, com o acesso a meios que normalmente lhe estão vedados, como a TV. E para terminar, como derradeiro argumento de autoridade, citam-se algumas passagens do Esquerdismo, doença infantil do comunismo, de Lenine. Citam mal, porque o tomam como uma bíblia, abstraindo-se da situação vivida na época em que essas palavras foram escritas (as revoluções comunistas estavam na ordem do dia, os partidos comunistas à esquerda da social-democracia cresciam aceleradamente e as burguesias europeias encontrava-se desorganizadas e enfraquecidas pela I Guerra Mundial) e a quem elas se dirigiam – os partidos e formações comunistas radicais que queriam desencadear o assalto imediato ao poder dispensando parlamentos e sindicatos.
Se lessem Lenine na totalidade, descobririam outras passagens demonstrativas de que para ele as eleições são “um meio de luta entre outros, aplicável especialmente em certos períodos históricos” (1906, Obras, tomo X) e que “a sucessão dos métodos de luta parlamentar e não parlamentar, da táctica de boicote ao parlamento e da participação nele, das formas legais e ilegais de luta, as suas relações recíprocas e os laços entre elas – tudo isto se distingue por uma assombrosa riqueza de conteúdo”. “Na combinação das formas parlamentares e extraparlamentares é por vezes conveniente, e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares.” (Esquerdismo...)
Em abstracto, o argumento de que os comunistas devem participar na luta eleitoral é tão correcto como o contrário. Como estamos perante uma questão táctica, tudo depende da situação concreta. O problema está em que a obrigatoriedade de concorrer com listas próprias ou em coligações se instituiu como uma norma no movimento comunista a partir das Frentes Populares e foi transformada, na prática, numa questão estratégica e num princípio.
ESGOTAMENTO DO SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO
É hoje um facto inquestionável que a abstenção está em crescimento, principalmente nos países ricos e estáveis, onde, nas eleições mais concorridas, só cerca de 60% dos eleitores votam. Nos EUA, Áustria ou Dinamarca, raramente se chega aos 50%. Ou seja, governos e presidentes dos países ocidentais são eleitos por 20% a 30% do eleitorado. Pela sua dimensão e tendência de crescimento contínuo, este é um facto novo que preocupa os ideólogos burgueses e para o qual não têm solução. Trata-se de um claro indício do esgotamento e apodrecimento das instituições e do actual sistema de representação política e partidário democrático.
Nos nossos dias, em tempos de globalização, o parlamento português já não tem a mesma importância nem desempenha o mesmo papel de há 100 anos, quando nascia em resultado da nossa revolução burguesa, ou àquele que desempenhou nos anos imediatos ao 25 de Abril, em consequência da queda da ditadura e de toda a agitação política e social que se lhe sucedeu. Isto acentuou-se com a adesão à União Europeia, deixando a Assembleia da República de ser o lugar de disputa entre as facções da nossa burguesia. Com a perda da soberania e as decisões a virem de Bruxelas, o parlamento passou a ser um lugar onde os partidos servem as suas clientelas, onde os lóbis repartem e acertam a gestão dos negócios públicos e onde as personalidades partidárias fazem o seu tirocínio antes de ocuparem cargos no governo ou na administração pública, irem para Bruxelas ou para as administrações dos banco e empresas do Estado e privadas.
O descrédito que rodeia o parlamento não é sintoma de atraso político das massas. É um fenómeno real que prenuncia a agonia do sistema democrático parlamentar.
OUTRA FORMA DE DEMOCRACIA É POSSÍVEL
O argumento vulgarmente invocado de que a abstenção é inaceitável porque deixa campo livre aos “outros” para decidirem por nós não é verdadeiro nos tempos que correm, porque se choca com situações de facto:
Hoje há muitas pessoas – principalmente jovens – com actividade política e social, que participam em protestos dos mais variados (imigração, direito à habitação, contra a guerra, nas escolas, contra o trabalho precário, ecologia, protestos contra a OMC, antiglobalização, contra a NATO, G-5, 8, 12, etc.) que integram e/ou colaboram com movimentos e partidos, mas que não votam. Estão longe de ser uma maioria, mas são bastantes. Para o ficar a saber, basta (no nosso país) estar nas manifestações da Solidariedade Imigrante ou do May Day, ver quem esteve nas acções de resistência para impedir que moradores pobres fossem despejados nos bairros degradados das periferias de Lisboa e Porto, ou ver quem promoveu e esteve nas manifestações contra a repressão policial ou de solidariedade com Grécia, por exemplo.
É um erro olhar para a abstenção como um todo. As pessoas abstêm-se por diversas razões. Não sabemos é as percentagens por classes e estrato social, idade, ou motivos. Mas, independentemente disso, níveis de abstenção que começam a ultrapassar os 40% são um dado político que não pode ser ignorado. A questão principal que o elevado nível de abstenção nos coloca é: por que não surgem partidos nos países mais ricos e estáveis da Europa, América do Norte, Japão, Austrália capazes de corresponder a esse desencanto e corporizar as preocupações e reivindicações dos que não se identificam nem se vêem representados nos partidos existentes e já não acreditam nos políticos nem nas virtualidades dos sistemas e instituições democráticas? Por que não surgem no hemisfério norte movimentos como os que estão a ocorrer na América Latina e Central, em que as velhas oligarquias e os partidos tradicionais estão a ser afastados do poder político por partidos e movimentos renovados, com forte pendor nacionalista e anti-imperialista, embora reformistas? O BE, o Die Link, o Partido Anticapitalista, formações novas e ascendentes na Europa, não promovem medidas capazes de melhorar as condições de vida dos mais pobres como o fazem esses novos partidos e movimentos na América Latina, nem têm os traços anti-imperialistas e nacionalistas progressistas dos partidos e movimentos da Bolívia, Venezuela, Equador, Nicarágua, etc.
Que o sistema democrático se desacredite, que as eleições sejam cada vez menos participadas, não nos deve causar qualquer problema. A resolução a favor da esquerda revolucionária do problema posto em evidência pelo abstencionismo tem de ser encontrada no quadro geral de um programa de derrube da burguesia. Se as classes trabalhadoras não encontram motivos para votar nos candidatos e partidos do sistema em que não se revêem, aos revolucionários cabe-lhes ir ao encontro dessas expectativas. Mas, dada a diversidade das classes, estratos sociais, motivações, etc., é pouco provável que seja possível dar expressão política ou social, de uma forma orgânica, ao abstencionismo. Pode, isso sim, ser usado pelos revolucionários contra a democracia burguesa, pondo a nu o esgotamento do parlamentarismo e do seu sistema de representação; mostrando que este é a ditadura de uma minoria sobre a maioria; que a democracia “participativa” deixa de fora milhões de cidadãos que só são chamados de tantos em tantos anos a escolher os mesmos de sempre para darem algum crédito a um jogo viciado, que tudo isto é ainda mais grave, na medida em que os governos não são mais que mera extensão executiva do poder europeu. E voltar a dizer que, ao contrário do que se acredita, há outras formas de representação populares e de democracia de base.