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carloslopesCabo Verde - Pambazuka - Na passada sexta-feira, o secretário-geral adjunto da ONU, o guineense Carlos Lopes, falou pouco mais de meia hora no II Fórum Nacional de Transformação e provocou um sismo cujas ondas de choque ainda hoje se sentem em Cabo Verde.


Foto OE (CC) - Carlos Lopes

Apontou as três questões que considera fracturantes para o arquipélago: uma democracia polarizada e lenta a tomar decisões, um excesso de tradição jurídica e os perigos da descentralização desmedida. Desconstruiu os pólos de desenvolvimento: cluster do mar a competir com grandes investimentos na costa africana, hub aéreo com oportunidades perdidas, praça financeira dependente dos bancos portugueses “e preguiçosos” porque preferem a segurança do investimento em títulos do tesouro à capitalização do sector privado. E criticou a excessiva “ancoragem” a uma Europa em crise, encorajando uma viragem “pragmática” para África. Nesse mesmo dia, Carlos Lopes deu uma entrevista ao Expresso das Ilhas – igualmente meia hora, desta vez marcada ao segundo porque a agenda era apertada – onde abordou alguns destes temas, mas onde também se falou de economia, de África e do futuro do continente.

Expresso das Ilhas – Na sua apresentação referiu três questões fracturantes que dizem respeito a Cabo Verde: o custo da democracia, a justiça e a descentralização. No fundo, o que é preciso fazer em relação a todos estes temas?

Carlos Lopes – Uma das atitudes fracturantes que identifiquei foi o facto do custo da democracia não permitir que Cabo Verde tire partido da rapidez necessária para o processo de decisão, e quando vemos os países concorrentes de Cabo Verde movimentarem-se com uma grande velocidade isso tem a ver também com o facto de eles poderem tomar decisões muito rápidas, porque têm liderança para isso e não têm de passar por processos muito complexos de decisão. No caso de Cabo Verde, o que eu quis demonstrar é que temos de evoluir de uma situação de democracia competitiva para uma democracia mais consensual. Não quer dizer que se apaguem as diferenças, mas é necessário identificar alguns objectivos de natureza nacional, que estão acima do jogo partidário directo, e que permitem que o país tenha as escolhas estratégicas claras. Claro que isso requer um processo de socialização e de consensualização. Em relação às questões de foro jurídico, identifiquei que a tradição jurídica de Cabo Verde, muito latina e portuguesa, pode levar a custos insuportáveis. Vemos isso no Brasil, onde os vários poderes independentes imiscuem-se no poder um do outro – o legislativo fazendo um pouco do judiciário, o judiciário fazendo um pouco de segunda câmara para o legislativo e o político no meio dos dois – e isso bloqueia a máquina. Eu dei como exemplo que um bairro de Lagos [Nigéria] tem mais população do que as ilhas todas de Cabo Verde, e um bairro de Lagos com cem magistrados seria uma risada, mas é o que existe em Cabo Verde. E é só o princípio, porque cada vez mais o jogo político, por estar polarizado, vai ver qualquer interferência na expansão da independência dos juízes e do sector judiciário como uma interferência e não havendo um tecto, a independência vai ser sempre uma agregação de custos, e isso é insuportável. E o terceiro elemento é a descentralização exagerada. Claro que há insularidade e as ilhas, de uma certa forma, têm uma identidade, mas elas viveram durante séculos sem que essa descentralização fosse tão densa e agora há apelos para que ela se densifique ainda mais. Isto comporta custos que o país não pode ter, por isso propus um pacto de responsabilidade fiscal para Cabo Verde, onde há tectos para tudo isto e, para além dos tectos, é preciso haver ganhos de eficiência, mas comecemos pelos tectos.

Mas, e pegando na justiça e na descentralização, apesar de considerar um exagero o número de magistrados, a verdade é que a lentidão da justiça é um dos problemas do arquipélago. Por outro lado, as ilhas do Barlavento pedem agilização de tomada de decisões e dizem que não podem estar à espera de uma resposta da Praia que muitas vezes demora mais de um mês.

Eu penso que isso é a identificação do problema, mas a solução não é o que se está a fazer. Há um bom diagnóstico com uma má solução. O diagnóstico é que a justiça precisa de ser agilizada e sofisticada e com a experiência de Cabo Verde em relação às novas tecnologias na administração era de esperar que a justiça fosse muito mais electrónica nos seus processos e não é isso que acontece, por excessivo formalismo é uma justiça muito notarial e isso precisa de mudar. O mesmo princípio se aplica à agilização das decisões para as outras ilhas.

Na sua intervenção chamou ainda a atenção para as mudanças demográficas que Cabo Verde vai enfrentar. Acha que ainda não há uma preocupação particular com essa alteração?

Parece-me que será uma das grandes áreas de turbulência se os cidadãos, e os dirigentes têm uma grande responsabilidade nisso, não forem preparados para assumir uma realidade demográfica muito diferente da actual, e que já está à porta: decréscimo da população jovem – que vai ter incidência na segurança social – o problema da imigração, a necessidade de cosmopolitismo em todos os pólos identificados como estratégicos – e que não são compatíveis com uma relação muito introspectiva desses clusters – a falta de integração da diáspora no processo produtivo – para haver um ganho de talentos e de investimento – e a concorrência em relação aos países vizinhos, que estão já a tratar destas questões. Portanto, há aqui mudanças brutais.

Por falar em concorrência. Apontou África como sendo o caminho do futuro, mas também há várias questões que se põem. Uma delas é que há várias áfricas no continente. Cabo Verde, que é uma democracia estável e elogiada, conseguirá estabelecer canais com, por exemplo, uma CEDEAO onde vários países têm estádios diferentes de democracia?

Cabo Verde não vai aproximar-se de África por causa da democracia. Tem de ser pragmático. A relação com a África, para além das questões históricas que são objecto de grande debate em Cabo Verde, e eu nem quero ir por essa via, embora ache que alguns desses debates são perenes na sociedade cabo-verdiana e denotam ainda problemas mal resolvidos de identidade, mas não quero entrar por aí, quero ir pelo caminho do pragmatismo que Cabo Verde já demonstrou. Os cabo-verdianos gostam do seu país, querem muito para o seu país, investiram muito no seu país, e podem deitar tudo a perder se, pragmaticamente, não fizerem uma escolha africana de ancoragem. É uma questão prática e como tal tem de ser muito focada, não pode ser apenas um slogan, tem de se ver pólo a pólo o que é que Cabo Verde tem que fazer para conseguir essa ancoragem, seja no hub aéreo, no cluster do mar, na praça financeira, etc., e para cada um deles tem de ter uma estratégia muito pragmática de ancoragem dos processos africanos. Não se vai passar um certificado de bom ou mau comportamento a cada país africano, Cabo Verde não tem, nem nunca teve, essa pretensão em relação aos seus parceiros e não é agora que vai começar. Portanto, trata-se de ser pragmático. Como Cabo Verde o foi em relação à ajuda ao desenvolvimento, no passado, agora precisa de o ser em relação às possibilidades de investimento.

Ao mesmo tempo, descontruiu todos esses pólos de desenvolvimento na sua intervenção. A Dubai Ports, como referiu, está neste momento a dominar a costa africana [só em Dakar investiu sete vezes mais que Cabo Verde em todo o seu cluster do mar]. Afinal, quais são as hipóteses de Cabo Verde?

Para cada um destes elementos o que eu quis chamar a atenção foi que Cabo Verde precisa de fazer mais para se integrar nos debates africanos e nas oportunidades africanas. Não pode falar dos seus diferentes clusters como se fossem extensões dos interesses europeus, era essa a minha mensagem. Porque, para a própria Europa só interessa Cabo Verde se for em relação a África. Não estando integrado nestes grandes debates, o país perde oportunidades. É claro que eu tinha de fazer efeito, despertar consciências, mas acredito em Cabo Verde e penso que é possível dar a volta.

Aproveitando, na mesma, todas estas oportunidades?

Sim. Mas, tem que se agir de uma forma diferente.

Aprender a falar a linguagem africana?

Falar a linguagem africana e, sobretudo, integrar os debates africanos. Sobre a criação de uma zona comercial intra-africana, sobre o programa de infra-estruturas do continente, todos esses grandes mecanismos sobre África e as suas opções económicas precisam de mais presença cabo-verdiana.

Como analisa, por exemplo, a possibilidade da moeda única africana?

Os países da zona CFA já têm uma moeda única. Cabo Verde está fora dessa zona, mas tem as mesmas características porque a zona CFA está ancorada no euro, assim como o escudo cabo-verdiano. Os outros países que estão fora, felizmente, são os países que mais crescem na costa ocidental: Nigéria, Gana, Serra Leoa. Portanto, há muitas vantagens em criar uma moeda única porque potencia o mercado africano. O que foi decidido recentemente, os critérios de convergência, servirá para que todos cheguem a um determinado número de parâmetros, que permitirão a integração. É muito parecido com o modelo da convergência do euro, portanto, acho que é factível e para Cabo Verde é desejável e abre grandes perspectivas.

De qualquer maneira é preciso ter atenção às falhas do modelo europeu.

As falhas que existem no modelo europeu são a inexistência de uma regulação bancária comum e de uma política fiscal comum. Eu acho que se exagerou quando se apontaram esses dois factores como as razões da crise europeia. Não foram esses dois factores que criaram ou que podem resolver a crise. A verdadeira razão da crise é a quebra do sistema bancário europeu e a tentativa de recapitalização desse sistema bancário passando os custos sociais às populações. E isso vê-se também pelo facto de os países que estiveram em crise estarem a sair dela oficialmente, mas com uma dívida pública maior do que a que tinham quando entraram. Portanto, a razão principal foi mais a falta de interesse político para disciplinar o sector financeiro, que se transformou numa espécie de governador geral das economias. África está muito longe desse tipo de quadro.

Ainda falando de África, disse que 2/3 do crescimento do continente baseia-se no consumo interno, por outro lado, quase metade da população [48 por cento] ainda se encontra em situação de pobreza extrema, esta desigualdade poderá pôr um travão ao desenvolvimento?

A questão da desigualdade é muito importante, tanto mais que essa desigualdade tem aumentado no continente. Apesar de haver uma classe média que se alarga, os super-ricos estão cada vez mais ricos e os super-pobres estão cada vez mais pobres. Na realidade, a pobreza em África é menos importante do que a pobreza na Índia, mas os pobres africanos são muito pobres, apesar de serem em menor número. E este é um problema que obriga a que os processos de transformação estrutural sejam muito baseados nas políticas de inclusão, sobretudo de criação de emprego. Para África, em geral, falamos em industrialização, para Cabo Verde é menos a industrialização e mais a potencialização da geração de emprego nos serviços. Eu tenho medo, porque têm havido ganhos de produtividade muito bons na agricultura cabo-verdiana e têm havido ganhos de produtividade no turismo, mas nesses ganhos de produtividade há menos gente necessária e isso cria mais desemprego, a não ser que se tenha outras actividades ou que se acrescente o volume de actividade económica, o que não é o caso. Daí o desafio de estarmos no fim de um determinado modelo e de Cabo Verde precisar de passar para a velocidade seguinte.

Cabo Verde está neste momento com um desemprego de 16 por cento, maioritariamente jovem, e muitos analistas têm dito isso: que o crescimento da economia africana não está a ter reflexos na criação de emprego, como se explica isso?

É fácil explicar: não é um crescimento com qualidade. É um crescimento muito baseado no consumo interno, no boom dos preços das commodities e da maior procura desses produtos e é baseado, parcialmente, numa melhor gestão macroeconómica. Não é uma transformação estrutural, é um crescimento, e o que nós estamos a dizer é que é preciso uma transformação estrutural, passar das actividades de baixo valor produtivo para as actividades de alto valor produtivo e, no caso de África, isso tem de passar pela industrialização. Há muitos factores que contribuem para uma industrialização da África e só quando isso acontecer é que haverá geração de emprego. Por exemplo, um país como a Tunísia, que estava muito bem em todos os seus indicadores macro, mas não apostou na industrialização, não criou emprego entre os jovens e desencadeou todas as ondas de contestação.

E no caso de Cabo Verde?

No caso de Cabo Verde, as actividades que podem gerar mais emprego são as que necessitam do dinamismo dos diferentes pólos identificados – mar, ar, etc. – mas, devido às características dessas mesmas áreas, não é possível fazê-lo fechando o emprego aos cabo-verdianos, tem de ser cosmopolita. Daí haver aqui um momento da verdade, que vai obrigar a olhar para os outros de forma diferente.

No fórum de 2003 já tinham sido debatidas muitas destas questões. Chegámos a 2014 e continuamos a debatê-las. Não se corre o risco de voltar a debatê-las em 2030?

Eu acho que em relação a 2003 houve progressos que foram alcançados graças ao fórum, não totalmente, mas em parte. Houve escolhas estratégicas nacionais que posicionaram Cabo Verde onde está. Só que agora estamos numa outra etapa, passou 2008 e 2009, houve a crise, a ancoragem à Europa fazia sentido naquela altura, agora não é mais o caso, e os próprios factores contextuais mudaram completamente. A África de 2003 tinha metade do PIB que tem hoje, tinha taxas de crescimento que começavam a florescer, mas era tudo parco e instável, e hoje em dia é tudo totalmente diferente. Cabo Verde não pode ficar parado no tempo, estamos a entrar numa nova fase. Pode-se perder o capital investido, essa é a minha mensagem. É necessária uma decisão rápida em todos os elementos fracturantes que identifiquei.

Uma das palavras-chave, e actualmente na moda, para África é ‘boldness’ [audácia]. Até onde pode/deve ir essa audácia, tanto mais que é necessária também uma abertura aos mercados externos, porque sem isso não há crescimento.

A audácia africana tem a ver fundamentalmente com a negociação com as parcerias. Isso é muito bom porque África estava a ser vítima quase de um roubo das suas matérias-primas e tem de renegociar os contractos. Começa-se a pôr em causa contractos que estavam assinados há muito tempo. Isso tem a ver com a chegada de novos parceiros, com o facto do investimento externo ser superior à ajuda ao desenvolvimento, com o facto de África ser procurada pelos fundos de investimento privados, com o facto de África poder aceder directamente aos mercados. Enfim, as condições mudaram. E tem a ver também com o facto dos exercícios estatísticos começarem a mostrar que as contas nacionais estavam subestimadas e que as economias africanas são muito maiores do que se pensava.

Concorda com os que defendem que a ajuda externa estava a prejudicar o continente?

Não, não vou a esse extremo. Mas, acho que estagnou muitas áreas, como a agricultura. Se o dinheiro todo posto na agricultura permitisse uma agricultura produtiva estaríamos hoje numa situação muito diferente em termos de pobreza. Toda essa ajuda foi para a segurança alimentar e estagnou a evolução da capacidade produtiva.

Houve mesmo quem falasse na gestão da pobreza…

Sim, em gerir a pobreza em vez de a matar.

Últimas questões. Que visão tem para o futuro da economia africana?

A economia africana tem perspectivas muito favoráveis porque as megatendências são favoráveis ao continente. Ao contrário do que se diz, o boom dos preços das matérias-primas não está para desaparecer e o seu principal novo cliente – a China – acaba de aumentar consideravelmente as suas propostas de investimento no continente, ao contrário também do que se imaginava. O segundo ponto favorável é o crescimento da população, maioritariamente jovem, e da classe média, o que faz com que as tendências demográficas sejam favoráveis ao continente numa altura em que os outros estão a envelhecer, ou seja, muita da produção industrial terá de ser relocalizada e uma parte virá para África. O terceiro factor é a maior possibilidade de investir no mercado africano, e se a integração regional for bem sucedida, e há agora movimentos muito fortes nessa direcção, cria a possibilidade de grandes mercados.

Há também o outro lado: a instabilidade continua no continente.

A instabilidade africana não é pior do que a instabilidade de outros continentes, nomeadamente a Ásia, mas é exagerada em relação a esses outros continentes. Não quer dizer que não exista, mas o número de pessoas afectadas por conflitos em África é cerca de 100 milhões, numa população de um bilião. É preciso também ver a fotografia completa. E quando pensamos que a Europa há 60 anos estava envolvida numa guerra mundial, não é muito estranho pensar que a África esteja ainda a resolver problemas de conflitos, de identidade, de gestão de diversidade, etc., porque esses eram exactamente as razões que levaram às guerras mundiais. É preciso pôr as coisas em contexto, porque esses problemas também existem em muitos países da Ásia, com incidência muito superior ao da África, sem que isso se reconheça.

E que papel poderão ter os PALOP?

Todos, com excepção da Guiné-Bissau, estão muito bem na fotografia: crescimento económico, indicadores sociais, progresso. E as novas descobertas, principalmente extractivas, criam boas perspectivas. A Guiné-Bissau, a menor economia do continente, cada vez mingua mais porque ainda não saiu do seu ciclo de conflitos de baixa intensidade, é preciso dizer que são de baixa intensidade, mas que têm estes efeitos perniciosos de, por um lado, não deixarem o país evoluir e, por outro, não serem suficientemente grandes para atrair a atenção do resto do mundo.

Nem estas últimas eleições o deixam mais optimista?

Eu sou um eterno optimista e espero que as coisas se resolvam, mas continuo convencido que essa resolução passa por uma reforma do sector de segurança, que ainda não aconteceu.

*Carlos Lopes é de Guiné Bissau e trabalha pra ONU.


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