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ponegro aljustrel2Portugal - Jornal Mapa - [Filipe Nunes] Em Aljustrel o pó negro da laboração gananciosa da mina cola-se na pele e na boca. Mas a sua relação umbilical com a vila alentejana continua a impedir, em nome de um propagado desenvolvimento económico, que se questione qual é afinal o preço a pagar pela saúde e pelo ambiente por esse pó que cobre as casas da vila, as mesmas que tremem cada vez mais ao ritmo dos rebentamentos diários da exploração mineira. A factura do pó é cobrada com uma elevada taxa de cancros e subjugada com o salário da mina. Ninguém reclama ou pretende o fim da mina, mas vai crescendo uma inquietação social que desafia os velhos estigmas das preocupações ambientais e da saúde, convertidos em temas tabu em nome da inquestionável produtividade económica.


Ser de Aljustrel é ser mineiro. Para quem aí vive, a mina está em todo o lado: cerca a vila e entranha-se na sua terra, rendendo-se o seu povo ao argumento, por força de mil vezes repetido, de que a mina é a sua única fonte de riqueza. Essa força de sustento nunca foi exclusiva, nem para a economia da região, nem para que se prescinda do trabalho no campo para poder haver comida em casa, mas o cante do coro dos mineiros não esconde a força dessa relação: qualquer pessoa tem ou teve alguém aí a trabalhar, numa sensação de que a mina pode ser mãe ou madrasta.

Para longe ficou a memória dos seus inícios, da rejeição popular à mina que veio destruir as riquezas naturais (ver caixa), e cedo a mina começou a fazer parte do ADN de Aljustrel. Por ser fonte de trabalho, tudo ou quase tudo se ia perdoando e para que houvesse esse perdão a própria mina nasceu com a sua própria força policial, secundada e substituída pela repressão das autoridades quando a labuta nos poços e profundezas atingia limites insuportáveis de dignidade. Houve contestação, mortes, resistências e solidariedades, dando corpo ao imaginário (real) das lutas dos mineiros. Essa identidade atravessou todo o século passado, para chegar ao século XXI esgotada do sindicalismo revolucionário ou combatente das décadas de 30 e 60. Quando se dá o retomar da laboração da mina em 2007/8 pela empresa Almina, do grupo Martifer, já o grosso da actividade mineira se deslocara anos antes para o concelho vizinho de Castro Verde, onde nos finais dos anos 80 nascera a maior mina da Europa, reduzindo Aljustrel a uma espécie de parente menor do filão da indústria mineira, mas ainda assim sem deixar de pesar sobremaneira no concelho ao empregar cerca de 600 pessoas.

A saúde em risco

Passado o tempo das efusivas promessas, no qual a retoma da actividade mineira sempre foi terreno fértil para render votos a sucessivos governos municipais e nacionais, a comunistas, socialistas ou à direita, há algo a assombrar o quotidiano de Aljustrel – um pó negro que assenta nas casas e nos pulmões. Quando aqui chegamos, basta aproximar-nos das entradas da vila, para ver as vísceras da terra a céu aberto e perceber aquilo de que tanto se fala entre os aljustrelenses.

Os mais velhos recordam como o pó da mina sempre foi uma realidade, enumerando os que morreram da silicose ao longo das décadas. Mas foi logo no arranque da laboração, em 2008, que se deram os primeiros alertas, denunciando o Sindicato dos Mineiros (STIM) as poeiras contendo pó de sílica que se espalhavam pela vila: “um risco para a saúde dos trabalhadores da mina e dos habitantes de Aljustrel que inalarem as poeiras” 1. Actualmente esse pó tornou-se uma preocupação demasiado óbvia. Fruto de uma maior movimentação de minério, atinge toda a terra, com os ventos predominantes de Oeste a levarem o pó, sobretudo vindo da lavaria, directamente para a vila. O lamento é geral, e dizem-nos que é impossível ter algo sem que esteja coberto de pó.

As pessoas que vivem mais perto da mina dão conta dessa “luta inglória”, como refere uma moradora que lava a sua varanda duas vezes ao dia e tem a água completamente preta: “quando o tempo está mais seco é horrível, anda uma nuvem de poeira sobre o ar”. Quem aí trabalha diz-nos que “quando de manhã venho trabalhar para Aljustrel pela estrada de Beja, quando se começa a avistar a vila, vê-se uma espécie de cúpula de pó a envolver a terra”. Outro testemunho relata que ”quando chego de noite e passo junto à mina, há uma poeira tão intensa no ar que parece nevoeiro. Terraços e telhados de Aljustrel estão todos cheios de um pó negro”. Por isso mesmo questiona-se: “o que interessa é envolver as pessoas neste problema que é de saúde pública, é de todos, se o problema existe, onde estão as entidades responsáveis?”

O pó preto de que se fala resulta dos processos de britagem (trituração) e de estocagem (queda no parque) do minério em bruto. Poeiras que contêm finas partículas de metais pesados, como cobre, manganês, chumbo, mercúrio, níquel, arsénio, etc. Os riscos para a saúde, uma vez inalados ou depositados nas hortas, solos e linhas de água, são manifestos, podendo causar distúrbios neurológicos e graves problemas respiratórios e cancerígenos. Aljustrel é dos concelhos de Portugal com maior incidência de cancro de pulmão e o acaso não mora aí.

A culpa morre solteira

A razão da grave escala do problema resulta, no dizer de alguns dos mineiros que escutámos, da ganância da mina que não quer gastar energia nem água, contrastando com o que se passa nas minas de Castro Verde, onde a lavaria tem “aspersores a fazer cair água em cima do minério para não levantar poeiras e na Almina isso não existe.” Aí, diz-nos um mineiro – que preferiu não divulgar o seu nome – “nos primeiros dias que trabalhei na lavaria nem conseguia respirar. Tenho sempre um pó preto no nariz”. Já a mina anuncia na sua página web que “respeita todas as normas ambientais em vigor recorrendo às mais modernas tecnologias disponíveis”. No entanto é notória a falta de clareza e de frontalidade da mina e das entidades com responsabilidades nas poucas respostas disponibilizadas.

Na verdade, assiste-se a uma total desresponsabilização do que sucede. As autoridades oficiais negam que existam riscos para a saúde pública. Em Junho passado o director dos Serviços de Minas e Pedreiras, José Silva Pereira, comentava à revista Visão que os dados do sistema de medição de poeiras não revelavam “nada de especial” 2. Quatro meses antes, o Gabinete do Secretário de Estado do Ambiente informava, na sequência do pedido da Autarquia à avaliação da qualidade do ar, que a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), tendo feito essas recolhas, não podia dar resposta à presença de metais pesados pois “para uma avaliação qualitativa das partículas” eram necessárias análises “cujos equipamentos não estavam disponíveis”… Quanto aos Relatórios Ambientais Anuais enviados pela Almina, esse mesmo ofício da tutela datado de Março dava conta que o último entregue fora em 2010. E quanto à fiscalização às medidas de minimização e monitorização da qualidade do ar dispostos na Declaração de Impacte Ambiental (DIA) de 2012 ao Alteamento das Instalações de Resíduos, é linearmente reconhecido que “desde a emissão da DIA, a CCDR não recebeu qualquer documento sobre o ponto de situação quanto ao cumprimento do estipulado na DIA”.

Por outro lado, o Diagnóstico para a Sustentabilidade (2013), no quadro da Agenda 21 promovida pela Autarquia de Aljustrel, refere na caracterização ambiental do concelho que “a emissão de partículas provenientes da actividade mineira causam, por vezes, perturbações na população da vila”, mas que no domínio da poluição atmosférica não existem “situações graves, pois as fontes de poluição (…) são irrelevantes” 3.

A surdez muda de Aljustrel

A essas respostas redutoras, soma-se um alarmismo quase mudo, apesar de haver um crescendo de inquietação e falatório. Embora exista uma corrente na população que esta farta do pó e dos malefícios da mina e que clama pela saúde das pessoas em primeiro lugar, logo se erguem vozes que avisam que falar sobre a mina é mandá-la embora: “o que querem? Desemprego? A mina sempre existiu e sempre fez pó, não é novidade nenhuma” 4.

O mais grave ainda nessa inquietação surda-muda é a falta de objectividade de quem defende e exige uma maior responsabilidade ambiental e de saúde pública por parte da Almina em Aljustrel. Surgiu inicialmente um grupo, com ligações ao PCP, que com a aproximação das últimas eleições autárquicas deixou de se ouvir; houve ainda um discreto abaixo assinado que correu alguns cafés da localidade; mas no fim de contas a veemência do protesto acaba por surgir apenas de forma mais fincada nalgumas páginas das redes sociais, mas também aí pouca gente dá a cara. O dar a cara não é fácil para os aljustrelenses e quem dá tem uma cautela confrangedora antes de iniciar qualquer conversa sobre a mina: dizendo que a apoia e que acha por bem que ela labore e que labore cada vez mais, não vá alguém duvidar da sua submissão aos interesses da mina.

Nessa tónica da submissão acaba por residir, no fundo, não só o impasse do problema ambiental e de saúde pública, como rapidamente se entrecruza com um regresso algo inesperado às mais básicas questões que as lutas dos antigos mineiros do século XX haviam enfrentado. Regressam à conversa as discrepâncias de salários, os trabalhos arriscados, a segurança duvidosa, os turnos intermináveis, etc..

A dificuldade em ultrapassar esse impasse e submissão é fruto da posição que o poder local e a população na sua generalidade assumiram. A defesa cega do sector mineiro como o garante da economia da terra sem querer aprender com a trágica herança dessa actividade. Olhar como Pilatos para o lado e adiar a imposição definitiva dos limites necessários que possam garantir a sobrevivência e o futuro dos aljustrelenses. O que significa acautelar a sua saúde e o seu ambiente sem que exista a preocupação com o aumento do valor das exportações da Almina e com o seu contributo para estatística económica nacional.

Entre esses dois pratos da balança é por isso importante que nos interroguemos sobre o sentido das palavras de Marcos Aguiar, assessor da Autarquia de Aljustrel, quando, ao defender naturalmente uma “incorporação plena do setor mineiro na estratégia de desenvolvimento sub-regional” 5, proclama “o reconhecimento social de um setor que emprega diretamente mais de dois milhares de trabalhadores, contribuindo, através desta valorização alargada, para o incremento de práticas de distribuição de lucros e de responsabilidade social e ambiental”. Como se o incremento dessas práticas e a responsabilização social e ambiental fossem uma condição secundária dependente da valorização do sector mineiro e não uma condição prévia para este operar. Altura igualmente para nos questionarmos sobre a razão dos cerca de 30 milhões de euros que foram atribuídos pelo Estado a título de incentivo na retoma da mina, se terem esfumado durante o processo de degradação ambiental que causam estes pós negros, sem que nos esqueçamos precisamente dos “102 milhões de euros, com o largo contributo da atividade extrativa da empresa Almina”, que colocaram Aljustrel como “o concelho português que mais aumentou as exportações nos últimos anos”, como referia Marcos Aguiar no Diário do Alentejo.

Com menos pudores, podemos ler na página do Facebook “Não ao Pó da Mina” o questionar do assentimento economicista do problema, reconhecendo logo à partida que: “Sim, sempre houve pó, sim, basta pesquisar sobre os nossos antepassados e verificar que os trabalhadores/ população morriam precocemente devido à inalação contínua deste pó”, para logo se reclamar que “se sempre houve um sim, acho que chegou a hora de dizer um NÃO! Não podemos viver agarrados a um passado onde não havia conhecimento e onde as mentalidades não estavam despertas para estas causas. Hoje em dia a parte ambiental é, ou deveria ser, uma área de destaque de qualquer empresa, principalmente de uma mina.
A mina é um bem para as nossas gentes e para a nossa terra, mas não podemos deixar que a parte económica se sobreponha à saúde de uma população. Certamente haverá meios de minimizar toda esta situação que, falo por mim, está a tornar-se insustentável. Queremos a Nossa Mina, mas não matem a Nossa Terra!” 6.

Que futuro?

As questões ambientais que a indústria mineira levanta talvez sejam nos dias de hoje das principais bandeiras de contestação social um pouco por todo o mundo. Por outro lado, o coro dos mineiros foi perdendo a força das suas antigas e combativas associações de classe, numa perda de conquistas que promoveu a precariedade dos vínculos laborais ao abrigo de subempreiteiros e dos novos códigos laborais que a crise veio justificar – ainda que não haja crise mas uma alta nos mercados dos metais. Conjuntura suficiente para se impor a laboração contínua da mina, o que em Aljustrel se reflectiu de imediato no ar negro que cobre a vila.

Deste modo, se somarmos o silêncio incómodo deste problema ambiental e de saúde pública ao consentimento da lavra mineira gananciosa e sem controlo, não poderemos nunca desembocar num discurso honesto que fale de um modelo economicamente sustentável para Aljustrel ou para a região. Esse desígnio apenas acentua a relação de dependência da mina – uma actividade volátil e de recursos finitos – com a região, na sua sobrevivência económica e social e sem que se conheça qualquer plano b; como por força dos crimes ambientais em curso, esse desígnio arrisca a que não haja lugar sequer para qualquer plano ou alternativa possível para aqui crescer ou viver o que quer que seja, só pagando um elevado preço na hora de aplicar os remendos à destruição causada. Quem dá crédito, por exemplo, a uma saída agrícola em terras poluídas?

Aljustrel já sabe aliás do que aqui se trata. Nos últimos anos entrou em curso – custeada pelo erário público, claro está, e não pela indústria mineira – a recuperação ambiental das áreas mineiras envolventes à vila. A mineração centenária é facilmente perceptível pelas águas alaranjadas que resultam da drenagem ácida das minas e que contaminaram as águas subterrâneas e os cursos de água, e que agora o Estado português, através da Empresa de Desenvolvimento Mineiro, procura minimizar.

Ao mesmo tempo que se trata dessa ferida ambiental, outra é aberta mesmo ao lado. Ritmadas pelas vibrações dos disparos com explosivos que do fundo da mina se propagam nas brechas das paredes das casas, vai esvoaçando o pó negro sob o qual ninguém deseja respirar fundo. Nem respirará descansado enquanto persistir essa ameaça. Quem sustenta essa ameaça, não se queixa nem dos lucros que aufere, nem do necessário compadrio político que o acarinha. Já quem vê a sua saúde e a dos seus filhos condenada, pergunta-se afinal onde está essa força da classe mineira? Da população que verdadeiramente cuida dos seus? Que cuida da sua Terra e da Natureza que lhe resta ainda?

 

O motim de 1855 na Mina de Aljustrel

O historiador Paulo Guimarães conta-nos em “Conflitos Ambientalistas nas Minas Portuguesas (1850–1930)” (in De Pé Sobre a Terra. Estudos Sobre a Indústria, o Trabalho e o Movimento Operário em Portugal, 2013) a história do motim de 1855 na mina de São João do Deserto em defesa de um bem público. Nesse ano um acidente nessa mina, junto à vila de Aljustrel, leva a que durante o Verão as pessoas que se deslocavam a Aljustrel para se tratarem encontrassem a sua fonte seca. Aí, na Ermida de São João, as águas férreas eram procuradas por pessoas da região e todo o país para o tratamento de doenças da pele, do estômago e do paludismo. Não tardou, pois, que um grupo de homens armados invadisse o campo mineiro durante a noite e, cercando as casas do Director e dos seus empregados, lançasse gritos ofensivos à sua dignidade e entrasse em confrontos físicos. As autoridades não intervieram e acabariam por ordenar ao concessionário da mina o fornecimento de águas medicinais. O lugar termal foi deslocado posteriormente 1 km para jusante e manteve-se em actividade até meados da década de 1960.

Filipe Nunes
António Homem Samarra

 

Notas:

  1. http://goo.gl/vU5veb
  2. http://goo.gl/T8pr27&lt
  3. http://goo.gl/krXSfF
  4. Acerca da percepção social do risco, fruto da actividade mineira em Aljustrel, veja-se o estudo (2008) de Sandra Valente, Elisabete Figueiredo e Celeste Coelho, com a conclusão de que os riscos da actividade mineira são minimizados por referência aos benefícios económicos e sociais, decorrendo isso da tradição mineira local e do facto da população ter conhecido os efeitos da suspensão da actividade por mais de 10 anos antes da retoma em 2007/08.
  5. http://goo.gl/q9R6uf
  6. http://goo.gl/bByH54


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