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José Paulo Netto

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Em coluna

Magalhães-Vilhena: um marxista erudito – e não só

José Paulo Netto - Publicado: Terça, 19 Janeiro 2016 22:35

Saiba o meu eventual leitor, desde já, que dois motivos me levam a trazer à baila o nome de Vasco de Magalhães-Vilhena (1916-1993), no instante mesmo em que localizo, entre meus velhos livros, a sua obra – seminal e clássica – sobre Sócrates (e Platão). O primeiro motivo é lembrar que, neste ano, decorrerá o centenário de nascimento do filósofo, quando certamente os círculos mais lúcidos da cultura portuguesa (e não apenas dela) haverão de homenageá-lo devidamente; o segundo é registrar a recente publicação de um conjunto de apontamentos seus acerca de uma questão central do pensamento marxista, a questão da ideologia.


Devo confessar que a minha primeira aproximação à obra de Magalhães-Vilhena não foi propriamente das mais fecundas – e agora, corrido tanto tempo, ouso desculpar-me pela leitura pouco produtiva invocando a (in)desculpável ignorância filosófica dos meus verdes anos... Aconteceu na década de 1960 o meu contacto inicial com o pensamento de Magalhães-Vilhena: então, em Belo Horizonte (num espaço livreiro que não sei se ainda existe – na minha memória ficou algo como “Livraria J. M. Gomes”, que vendia livros novos e usados, instalado em sala de um prédio da Rua da Bahia), deparei-me com um exemplar do seu Le problème de Socrate e logo o comprei. Retornando dias depois àquela livraria, pude adquirir Socrate et la légende platonicienne (ambos os livros publicados em Paris, em 1952, pelas Presses Universitaires de France; estão hoje traduzidos sob os títulos O problema de Sócrates e Platão e a lenda socrática, editados pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, respectivamente em 1984 e 1998). Seguramente já imagina o leitor que sobra dizer que o estudante pouco letrado percorreu com avidez e com a atenção possível os dois volumes... mas aproveitou pouquíssimo, ou quase nada, do que continham aquelas largas centenas de páginas.

Somente uns anos mais tarde, com uma cuidadosa releitura, pude ter alguma consciência da relevância desses textos de Magalhães-Vilhena – resultantes, com efeito, da sua tese de doutoramento (defendida em 1949, na Sorbonne), tese que o tornou reconhecido como um qualificado analista da filosofia antiga: em 1954, foi agraciado com o máximo prêmio da Association des Études Grecques, respeitada instituição ligada à academia francesa. Aquela releitura, feita ao fim do primeiro terço dos anos 1970, fixou para mim a imagem de Magalhães-Vilhena como um notável erudito, cuidadoso pesquisador marxista que revolucionou com brilhantismo a visão tradicionalmente estabelecida de um capítulo extremamente significativo da filosofia ocidental.

Essa imagem, embora com elementos de verdade, logo se revelaria unilateral, como pude verificar no período em que estive trabalhando em Portugal, na sequência da Revolução dos Cravos. Só então constatei que Magalhães-Vilhena foi muito mais que um erudito: foi, sem qualquer prejuízo do seu específico trabalho acadêmico, antes estimulando-o, um exemplar militante comunista – na década de 1930, muito jovem, já ingressara no Partido Comunista Português/PCP, em cujas fileiras haveria de permanecer até à morte.

Obrigado ao exílio em 1945, quando foi excluído do corpo docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (lecionava então a disciplina História da Filosofia Antiga), radicou-se em Paris; aí se doutorou e construiu sólida carreira intelectual, vinculando-se, na Sorbonne, ao Centre de Recherches sur la Pensée Antique (1946-1974) e ao Centre National de la Recherche Scientifique (1947-1967). Com o processo revolucionário aberto pelo 25 de Abril, pôde enfim retornar a Portugal, assumindo uma cátedra na Universidade de Lisboa, na qual se aposentou em 1980, por razões de saúde. Ao longo das três décadas de exílio, nunca esmoreceu na luta antifascista: integrado na ação do PCP no exterior, denunciou corajosa e sistematicamente o regime de Salazar e, desde 1950, atuou no Conselho Mundial da Paz.

No seu regresso a Portugal, a intelectualidade marxista mais jovem já tinha em Magalhães-Vilhena o seu maître à penser, de um lado pelo seu descortínio no trato da história da filosofia (expresso na obra coletiva que organizou e que a censura fascista não pôde impedir de circular: Panorama do pensamento filosófico. Lisboa: Cosmos, I-II-III, 1956, 1958 e 1960) e, doutro lado e sobretudo, pelo seu seguríssimo domínio da textualidade de Marx e Engels (atestada, por exemplo, na sua intervenção à edição do Manifesto do partido comunista. Lisboa: Avante!, 1975). Ademais, figuras daquela intelectualidade, também forçadas ao exílio, haviam anteriormente contactado com Magalhães-Vilhena e com ele estabelecido relações de colaboração científica que prosseguiriam no Portugal libertado em abril de 1974 – com destaque para Eduardo Chitas (1937-2011) e Hernâni Resende (1942), que responderiam com zelo por parte do seu espólio literário.

O grande segmento já de conhecimento público do espólio de Magalhães-Vilhena documenta que a sua obra não se restringe, absolutamente, aos limites da erudição acadêmica própria ao especialista que ele foi da filosofia antiga (com muitos outros desenvolvimentos para além da sua tese de 1949). O filósofo discutiu Bacon e Hegel, polemizou com figuras decisivas do pensamento português do século XX (p. ex., com Antônio Sérgio) e tematizou questões epistemológicas de interesse contemporâneo.* Entretanto, parte desse espólio – conservado por sua companheira, Hélène Lanièce de Magalhães-Vilhena, falecida em 1996, e em seguida entregue aos cuidados do PCP – contém ainda materiais inéditos. E agora, nestas últimas linhas, o meu eventual leitor tem o segundo motivo que me leva a recordar Magalhães-Vilhena.

Poucos anos antes de sua morte precoce e inesperada, Eduardo Chitas ocupava-se de examinar originais constantes do espólio de Magalhães-Vilhena, com atenção especial a textos eventualmente inéditos. Chitas, prestigiado professor da Universidade de Lisboa – um dos fundadores do Grupo de estudos marxistas/GEM, que nucleia pesquisadores marxistas e já é bem conhecido pelos seminários internacionais que promove em Lisboa (os colóquios Marx em maio) –, convocou para trabalhar com ele no exame mencionado o jovem filósofo João Vasco Fagundes, ativo membro do GEM (é autor de um ensaio precioso: A dialética do abstrato e do concreto em Karl Marx. Lisboa: GEM, 2014). Entre os vários materiais inéditos que chamaram a atenção de ambos estava um original, redigido em francês e vazado em 135 páginas datilografadas; nelas, provavelmente escritas em meados dos anos 1960, Magalhães-Vilhena, deixando sem título o texto, aponta o seu objeto com a seguinte notação: “Ideologia e sociedade; ideologia e ciência; papel da ideologia na direção científica dos processos sociais”.

Pois é este o material que foi há pouco publicado, em volume intitulado Fragmentos sobre ideologia (Lisboa: GEM, 2015). A confiável tradução é de João Vasco Fagundes, que manteve a estrutura expositiva formalmente assistemática do original, apôs-lhe notas esclarecedoras e antecedeu-a com um longo (quase 40 páginas) e eficiente prefácio. Nele, Fagundes não apenas dá conta dos procedimentos de que se valeu para editar o texto, socorrendo-se inclusive do recurso a outras obras de Magalhães-Vilhena; especialmente sustenta, com argumentação persuasiva, que o caráter formalmente assistemático da exposição (donde, no título, a referência a fragmentos), provavelmente devido ao seu inacabamento, não impede que nas reflexões constitutivas do volume se patenteie “um conteúdo recheado de sistematicidade”, evidenciando “uma concepção de fundo que lhes oferece [aos fragmentos] nexo e coerência” (p. XIX). E, a meu juízo, a leitura cuidadosa dos apontamentos de Magalhães-Vilhena demonstra que esta interpretação de Fagundes é procedente.

O importante, todavia, é considerar aquele “conteúdo” e aquela “concepção de fundo” que as reflexões de Magalhães-Vilhena extraem e inferem da minuciosa análise textual dos “pais fundadores” (os “clássicos” Marx e Engels, mas também Lenin), análise que combina criticamente o trato imanente da escritura “clássica” com a abertura à sua historicidade histórico-cultural concreta. Das elaborações de Magalhães-Vilhena resultam determinações essenciais – portanto, atuais – para a dilucidação da ideologia, de suas relações com a ciência e de sua funcionalidade social.

Resumidamente, o certo é que a leitura desses Fragmentos sobre ideologia, na passagem do centenário de nascimento de Vasco de Magalhães-Vilhena, permite compreender por que o insigne marxista português ainda permanece um maître à penser – para todos nós.

Notas:

* Remeto o leitor interessado na biobibliografia de Magalhães-Vilhena aos vários trabalhos contidos em E. Chitas e H. Resende, coords., Filosofia. História. Conhecimento. Homenagem a Vasco de Magalhães-Vilhena. Lisboa: Caminho, 1980. Posteriormente, tanto Eduardo Chitas quanto Hernâni Resende publicaram textos referidos a seu mestre comum.

Fonte: blog da Boitempo.


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