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voaMoçambique - Revista Fórum Semanal - [Helô D’Angelo e Leonardo Fuhrmann] Para o autor moçambicano, um dos mais reconhecidos da língua portuguesa na atualidade, a jornada para compreender o outro passa por identificar semelhanças que podem ser encontradas em uma viagem interior.


Foto: VOA (Domínio Público)

Aos 60 anos, o moçambicano Mia Couto é possivelmente o escritor de língua portuguesa de maior influência internacional na atualidade. Neste ano, ele foi um dos finalistas do Man Booker International Prize, importante prêmio literário inglês. Conhecido pela poesia de suas narrativas, marcadas também pelo uso de figuras fantásticas, ele utiliza dessa mesma sensibilidade para falar sobre política, a construção de uma sociedade do medo e o estranhamento em relação ao outro.

Biólogo por formação, ele usa o exemplo de um corpo vivo para falar sobre a interação de diferentes e defende a necessidade de conseguirmos identificar aspectos do outro dentro de nós mesmos para conseguir compreendê-los em sua complexidade. No Brasil para lançar Mulheres de cinzas, primeiro livro da trilogia As areias do imperador, ele conta por que escolheu uma jovem negra como narradora e fala da importância de conhecermos a História a partir de outros ângulos. Leia abaixo a entrevista na íntegra:

Fórum – Por que a sua resistência a chamar Mulheres de cinzas de romance histórico?

Mia Couto – Se alguém está falando em romance histórico, não sou eu. Não sei fazer isso. O que eu faço é uma história que decorre no fim do século XIX, mas sem nenhuma pretensão de reconstituir a História. Eu quero inclusive fazer uma certa desconstrução. Colocar em causa aquilo que se tem como a veracidade dos acontecimentos dessa História solene. Quero mostrar que existem versões do passado que foram construídas e algumas delas não vingaram porque eram as visões dos marginais e dos vencidos. É um romance que dialoga com a História.

Fórum – Como foi a reconstrução dos relatos orais dos moçambicanos sobre aquele período?

Mia Couto – O lado dos portugueses, de fato, não foi complicado porque há muita documentação escrita. Eu tive sorte porque é um dos períodos históricos de Moçambique mais bem documentados por fontes portuguesas. Do lado moçambicano, eu tive de viajar, ir ao lugar onde se passaram os acontecimentos. Fui entrevistar dezenas de pessoas. O que era curioso é que elas no início não queriam falar, pois tinham medo. Diziam que não falavam sobre esse assunto para não acordar fantasmas. Isso era, desde logo, uma indicação muito curiosa da relação que as pessoas tinham com essa memória. Foi preciso ganhar a confiança das pessoas, mas do que escolher, ser escolhido por alguns dos mais velhos daquela região, que me ajudaram a reconstituir essas outras versões.

Fórum – Como foi construir a voz dessa narradora, que é uma jovem negra?

Mia Couto – Eu acho que começa por uma batalha interior. Antes de falarmos com alguém, precisamos saber que esse outro está dentro de nós. Existem fronteiras que foram construídas entre aquilo que é nossa própria identidade social, racial, étnica, religiosa ou seja qual for, em que nós nos sentimos bem. Esse é o nosso chão. Se formos capazes de encontrar dentro de nós esse outro que ainda está dentro de nós, o lado masculino e feminino que está dentro de nós, por exemplo, começa a ficar mais fácil estarmos disponíveis a fazer essa travessia, porque ela já foi iniciada dentro de nós. Isso pode parecer um pouco abstrato, mas, quando eu comecei a construir as personagens femininas, percebi que não era pelo número de conversas que eu tivesse com pessoas de outro sexo que eu poderia assumir isso. Foi uma viagem dentro de mim, descobrir que, afinal, essa construção do que é masculino ou feminino é muito inventada.

Fórum – Por que ela foi escolhida para contar uma história cujos papéis centrais são masculinos?

Mia Couto – Eu escolhi porque era um personagem que estava localizado na margem. Essa jovem tinha que fazer uma viagem, se impor e atravessar o preconceito e a visão de que ela não existia por ser mulher, jovem e pertencer à margem de uma sociedade que era muito patriarcal. A própria história que estou a contar, que é uma versão oculta, da margem, também tem de bater na porta da História grande, da História oficial que é contada nas escolas. Tem de bater na porta e dizer: eu existo, há uma outra versão.

Fórum – Como você vê essa questão do outro em um momento como o atual?

Mia Couto – Fico preocupado porque nós pensamos que esse ódio é resultado da situação de hoje, mas ela própria já é resultado de uma maneira estereotipada de classificar e ver o outro. É preciso entender que essa construção, de como é fácil ter medo de alguém, simplesmente porque é muçulmano. Sempre se vê o muçulmano como alguém muito diverso. Hoje, por exemplo, eu ouvi comentários em um canal de televisão aqui do Brasil que dizia que, agora, os ataques contra a França mostravam que o grande inimigo deles era a civilização, o bem.

Quem fala assim esquece que esses ataques do Estado Islâmico não começaram agora, tiveram início fora da Europa, dentro da região do Oriente Médio e do Norte da África. Naquelas ocasiões, o Estado Islâmico se manifestou com a mesma violência, o mesmo horror, matando muita gente que não é exatamente europeia e que não era exatamente católica ou cristã. O que eu quero dizer é que a situação é mais complexa e é preciso estar disponível. Quando, por exemplo, os músicos na Síria ou na Tunísia são perseguidos simplesmente por causa da música ser vista como uma heresia, é preciso saber erguer a voz também nesses momentos e não só quando a Europa ou nós somos atingidos.

Fórum – E como fica a questão das fronteiras e do medo nisso?

Mia Couto – Acho que a nossa reação contra o medo é ver a fronteira como uma linha de defesa, enquanto a vida faz fronteiras que são vivas. As fronteiras de nossas células se fecham, mas também são permeáveis e fazem trocas permanentemente com o que é diferente. O fora e o dentro fazem parte de uma transação que constrói a vida. No nosso caso, o que se está a tentar erguer é, dentro da muralha da identidade, só ter espaço para aquilo que é igual, aquilo que é visto como essência. Esse é o grande perigo.

Fórum – Até onde também existe uma construção desse discurso do medo?

Mia Couto – Sem dúvida, eu acho que o medo é algo fabricado porque é um permanente aliado de uma indústria.

Essa ideia que temos de reduzir nossas liberdades e nossa cidadania porque é preciso vigiar o outro. Nossa vida passou a ser, a cada minuto, réplica de quando entramos no avião, quando aceitamos ser revistados e ter um bocado da nossa privacidade invadida. Nós já fazemos isso, até faço com algum agrado para que eu viaje mais seguro, mas tem ali uma proposta de troca. É preciso que você reduza o vosso espaço de intimidade e de liberdade individual e coletiva em nome de nossa defesa e dessa construção de que somos essa entidade chamada “nós”.

Fórum – Isso tem ligação com o processo de desumanização citado no seu livro?

Mia Couto – Acho que esses processos são contraditórios. De um lado, há um processo de desumanização que fica claro quando há uma guerra para que o outro seja um alvo a ser abatido, é preciso matar e exterminar. Para isso, é preciso que esse outro seja desprovido de humanidade. Isso é o comum em países que estão em guerra. Moçambique esteve assim durante 20 anos. Mas, também, posso dizer por essa experiência de meu país, que é um processo que alimenta o seu próprio contrário. Há respostas de humanização e de resistência.

Fórum – Qual a importância da literatura nessa resistência?

Mia Couto – É um espaço da literatura e da arte, mas é sobretudo a busca por saber qual é a história do outro. Quem está perante nós – seja um imigrante ou alguém de outra cor de pele, de uma outra história ou de outra geografia –, tentar saber qual é a história dessa pessoa. Através dela percebemos o quanto somos mais semelhantes do que pensávamos. É a construção de uma narrativa que é individual, mas depois se torna coletiva. Esse passo se torna fundamental para reumanizar o mundo.

Fórum – Como você vê a relação do Brasil com os países da África hoje?

Mia Couto – É preciso, em primeiro lugar, que se dê continuidade a uma coisa que foi iniciada nos últimos dez anos. É preciso prestar homenagem a isso, eu vejo uma mudança muito clara. O Brasil conhece melhor a África. Quando eu vou às escolas, vejo que a África não é mais uma entidade distante e folclórica, é muito mais próxima e real. Da parte dos países africanos, também é preciso tomar iniciativas. Não pode ficar apenas à espera que o Brasil, por ser maior e ter uma economia mais forte, tenha a dianteira nesse processo. Há vontades políticas que precisam ser manifestadas. É óbvio que não acontece só porque os governos não estão atentos. Existem outras agendas, eu entendo. O Brasil está inserido em outro contexto. A África tem outras urgências e vizinhanças. Mas, uma das hipóteses que se abria, era de empresas brasileiras terem maior presença em nosso continente. Mas não ocorreu tão bem quanto a gente sabe. A crise dentro do Brasil também vai afetar esse vínculo.

Fórum – Mas houve alguma mudança na política?

Mia Couto – O que foi iniciado durante o governo Lula se mantém do ponto de vista político. A minha dúvida é se aquilo que afetou as empresas que estavam investindo e trabalhando em Moçambique, muito por conta dessa vontade política iniciada, se vão manter o mesmo ritmo. É algo que não tem a ver só com Moçambique ou Angola e a relação dos países africanos com o Brasil. Temos outras razões de uma crise maior, internacional, que envolve também os preços das commodities. O discurso precisa reconhecer que esse assunto não é simples.

Fórum – Como é a influência da cultura brasileira nos países de língua portuguesa da África hoje?

Mia Couto – O Brasil tem uma grande entrada nos países africanos de língua portuguesa por via das novelas. Mas isso tem de ser entendido como uma outra variante da língua portuguesa. Há termos que passam, expressões que são transmitidas. Mas tanto Angola quanto Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Guiné-Bissau têm suas próprias variações do idioma, uma dinâmica própria que não é tão profundamente influenciada pelo que é o português do Brasil.

Em um certo momento – nos anos 1950, 1960 e princípio dos 1970 –, quando havia uma relação muito próxima com a literatura brasileira, todos os cinco países africanos de língua portuguesa beberam muito do que era a literatura daqui. Jorge Amado é um exemplo, mas não é o único. Há outros escritores brasileiros que influenciaram muito, porque descobriram antes algo que a gente ainda estava tentando encontrar, que era introduzir no idioma os elementos da afirmação de uma identidade própria, distinta da língua do colonizador.

Fórum – Por que esse conhecimento da literatura brasileira foi interrompido?

Mia Couto – É uma ironia triste porque foi no tempo da ditadura no Brasil e em Moçambique e Angola que tivemos mais ligações construídas do ponto de vista de apoio do Estado das existentes agora. Possivelmente porque existe menos Estado do que existia naquela altura. Para mim, é claro que a proposta não é o regresso de qualquer ditadura, mas se deixou isso na conta das forças do mercado. E o mercado está preocupado com outras coisas que não são essas da ligação entre os falantes da língua portuguesa. A preocupação é com o que dá lucro, renda.

Fórum – Qual a importância do sucesso de autores africanos de língua portuguesa, como seu caso e do angolano José Eduardo Agualusa, para que os brasileiros conheçam melhor a África?

Mia Couto – A literatura é provavelmente um dos veículos mais eficientes para criar a ideia de que há outros de língua portuguesa que são bem diversos, com outras histórias e sotaques. E essa gente, no fundo voltando àquela outra questão sobre a qual já conversamos, não é tanto outro, como pensamos. Porque essas histórias também estão dentro do Brasil, seja pelos escravos que ajudaram a construir esse país, quanto pela raiz portuguesa, que passa por um Gonçalo Tavares ou um José Saramago, que estiveram também presentes naquilo que é a construção da alma brasileira.


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