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GloriaBrasil - Laboratório Filosófico - [Rafael Silva] A postura indiferente e os comentários, digamos assim, apáticos da atriz Glória Pires causaram espécie na transmissão do Oscar 2016 pela Rede Globo. Quem não assistiu à performance de Glória como comentadora da festa do cinema americano ao vivo, certamente pôde conferir os “grandes momentos” dela no rol de memes que se seguiram nas redes sociais. Alguns chamavam-na de perdida, outros de “lesada”, outros ainda sugeriam que ela estava com problemas mentais. Entretanto, por que Glória causou tanto com tão pouco?


Vejamos alguns exemplos do pouco que muito causou. Sobre a canção premiada, “Writing’s on the wall”, do filme 007 contra Spectre, ela disse, nada mais nada menos: “gosto médio”. Quando perguntada sobre qual filme ganharia a estatueta dourada, esquivou-se:” “sou ruim de previsões”. Já a pérola da noite foi a resposta que deu quando solicitada a discorrer sobre a canção que Lady Gaga tinha acabado de apresentar: “não sou capaz de opinar”.

Realmente, é de espantar que, hoje em dia, na era dos quinze minutos de fama preconizada por Andy Warhol, uma estrela da televisão não faça questão de ocupar, absoluta e vaidosamente, o espaço midiático de que dispõe. No entanto, da segurança de sua longeva e reconhecida carreira artística, a atriz pôde confortavelmente mandar um “beijinho no ombro” para o “recreio famoso” warholiano e não abusar do seu espaço de evidência, ocupando-o minimamente.

Não sem pagar um alto preço, contudo. Ainda durante a cerimônia do Oscar, memes debochados já pipocaram nas redes sociais. Alguns ofensivos inclusive. A reação dos telespectadores-internautas foi tamanha e tão imediata que, no dia seguinte, ainda pela manhã, Glória, em um vídeo-resposta, veio se explicar. Muito tranquila, disse: “Gente, fui convidada para comentar o Oscar, aceitei, e como não sou especialista, falei e agi como se estivesse na sala da minha casa, junto de amigos, só isso”.

No entanto, a onda memética que, no melhor dos casos, a acusou de apatia, e, no pior, de doença mental, deixou bem claro a alta expectativa que o público tem das figuras que vê na “telinha”. Tivesse Glória fingido, isto é, encenado uma empolgação que não tinha em relação às perguntas banais que recebia, e, em resposta, outrossim mentirosa e empolgadamente, tivesse devolvido mais banalidades, o público teria ficado satisfeito, pois é isso que as pessoas esperam da TV, ainda que ganhem somente falsidades televisivas de presente.

Porém, algo fugiu do script. Glória Pires foi apenas ela mesma; foi cruamente verdadeira: não encenou uma hollywood movie expert, coisa que assumidamente não é. Ocupou seu lugar de convidada, nada mais. Não encheu os ouvidos dos telespectadores com as banalidades com as quais estão acostumados a ser entretidos, deixando-os, desse modo, com o vazio de suas próprias opiniões -ou falta de opinião- sobre as melhores músicas e filmes concorrentes. Glória, como se diz, não “alugou” ninguém, tampouco a si mesma.

Por que então a massiva reclamação memética contra ela? Será que os telespectadores não vivem sem “micos histéricos” diante de si o tempo todo? Qual a dificuldade em lidarem com a quietude, com a tranquilidade, até mesmo com a apatia dos seus supostos entertainers? A primeira pergunta é respondida com a segunda: porque eles querem sim micos histéricos lhes entretendo ininterruptamente, para assim ficarem absolutamente entretidos e satisfeitos. Já à terceira pergunta, a resposta é mais sutil. Reperguntemo-la: por que a apatia causa tanta espécie?

A apatia (não-pathos), isto é, a ausência de paixão, que também significatranquilidade de ânimo, era chamada pelos gregos antigos de ataraxia. Em filosofia, ataraxia é a atitude fundamental do cético que não acredita no valor ontológico do conhecimento. Em outras palavras, o ataráxico é aquele que não se perturba pelo fato de a verdade não ser alcançável pela razão humana e, por isso, dispensa-se de discorrer sobre ela.

O cético-mor, qual seja, Pirro de Élis, ciente das limitações da sensibilidade e da racionalidade humanas, foi aquele que, em estado de ataraxia absoluta, encontrou tranquilidade não proferindo mais juízos sobre o que quer que fosse, vivendo completamente calado. Daí chamarmos quem não opina de pirrônico. E não foi uma quase ataraxiaque Glória Pires atuou diante de milhões telespectadores ao dizer quase nada sobre a badalada e esperadíssima cerimônia do Oscar? Glória se deu ao luxo de ser pirrônica ao vivo, em cores, e na Globo ao dizer: “não sou capaz de opinar”.

Agora, por que a tranquilidade mental de um entertainer incomoda tanto aos que querem estar entretidos por ele? Ora, porque, hoje em dia, mais do que nunca, espera-se que o entretenimento não seja tranquilo. Se for sossegado demais, é o público que se inquieta. Nunca é demais lembrar que para “acalmar” o populus da Roma Antiga, nada menos que cristãos sendo devorados por leões no espetacular Coliseu. Para a audiência ficar “tranquila”, é o entertainer que deve ser histérico. Porém, como Glória, a suposta entertainer, foi serena, apática (livre de paixão), o público é que explodiu, histérica e patologicamente, contra a pirronice dela. Seus memes outra coisa não queriam vociferar que: entertain us or die, bitch!

Porém, a ataraxia de Glória mandou um “beijinho no ombro” inclusive para a patologia memética voltada contra ela. No seu vídeo-resposta, gravado provavelmente em sua casa, com ela vestindo um pijama, sem usar maquiagem e com os cabelos despenteados, a atriz, que na telinha está sempre “preparada”, disse inclusive que se divertiu muito com os memes que fizeram “para ela”; que os memes são mesmo um “espaço” de criação e de diversão para as pessoas; e que não havia nada de errado com ela durante a transmissão da cerimônia do Oscar. Isso sim é tranquilidade de ânimo! A glória! E o Oscar de melhor ataraxia vai para: Glória Pires!


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