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martinsPortugal - Escritos de uma vida - Entrevista inédita da autoria de Jorge Valadas com notas de pé-de-página de FMR.


— Estávamos em fins dos anos trinta em Portugal e tu tinhas dez-doze anos[1]. Vamos começar pela tua juventude, em Lisboa, a tua entrada na política e o estado da memória social em Portugal na altura. Chegaste à política um pouco pela família. O teu pai, republicano politizado, acompanhava os acontecimentos em Espanha. Na altura havia noção que a questão social acompanhava o afrontamento político? Que havia uma dimensão revolucionária nos acontecimentos em Espanha? E o papel dos anarco-sindicalistas em Portugal, era conhecido, falado? A revolta da Marinha Grande em 1934, o atentado anarquista contra o Salazar, em 1936, estes acontecimentos faziam parte da memória do momento?

Que eu me lembre, a guerra de Espanha era vista, no meu meio, apenas como a luta entre a República e os fascistas. Sabia-se das barbaridades dos franquistas e as simpatias iam todas para a República[2], que era vista como sinónimo de liberdade de expressão e de maior justiça social. Só muito mais tarde tomei conhecimento dos movimentos sociais que ocorreram na sociedade espanhola durante a guerra. No que diz respeito a Portugal e no meio em que eu fui educado politicamente, não me recordo que fosse mencionado seja a revolta da Marinha Grande, seja a existência da corrente anarco‑sindicalista. No que diz respeito ao atentado contra o Salazar não posso garantir que não se tenha falado, mas eu era muito criança e não guardei realmente uma memória particular a esse respeito.

Quando acabou a guerra mundial, eu tinha 17 anos e trabalhava em Lisboa, numa livraria. Tinha assim acesso a livros proibidos e falava com pessoas que vinham à procura desses livros: edições brasileiras e francesas sobre marxismo, Jorge Amado, romances soviéticos… A influência que eu recebia era da defesa das posições comunistas em geral, da União Soviética, da resistência dos comunistas, da vitória sobre o nazismo. Não me recordo de se falar em anarquismo ou anarco‑sindicalismo. Se algo se falasse seria no sentido de mencionar uma corrente que já não existia, uma coisa simplesmente do passado. Só muito mais tarde, por leituras, eu soube da existência da CGT. A minha avó falava da primeira República, mas de uma forma muito conservadora: que tinha sido um horror, que havia desordens todos os dias… O meu pai mencionava algumas reuniões preparatórias da formação do partido comunista, aí por 1919-1920, mas sem muito acrescentar. Eu não tinha conhecimento nem contacto com o movimento operário.

— Entraste para o partido comunista em 1951. Em 1954 passaste para a clandestinidade e foste preso em 1957. Dentro do partido qual era a imagem que era transmitida, respectivamente, sobre os anarco‑sindicalistas e sobre os democratas republicanos? Que aspectos eram postos em realce para caracterizar estas duas correntes de oposição ao salazarismo?

No meio em que eu andava era bastante negativa e crítica, tanto para uns como para outros. Os republicanos eram vistos como uma cambada de doutores que andavam a conspirar nos cafés, que tinham aversão aos trabalhadores, que não queriam fazer nada nem arriscar fosse o que fosse. Queriam era voltar ao poder com o menor esforço. Aos anarco‑sindicalistas criticava‑se a ausência de um projecto revolucionário, as acções descontroladas que não conduziam a nada, a incapacidade organizativa para resistir à ditadura, a qual os tinha desfeito. Daí que, para os jovens da minha geração e do meu meio, uma só força se apresentava como alternativa, o partido comunista e as organizações a ele associadas.

Na sequência da campanha eleitoral do Norton de Matos acabei por entrar na actividade política, através do MUD Juvenil. Dessa campanha tinha ressaltado a capacidade do partido pôr as massas em movimento, levá-las à luta pela democracia[3]. Na época, era esta a visão que eu tinha sobre as correntes políticas. Nesses primeiros tempos da minha actividade militante estive em contacto com dois ou três elementos do Partido que tinham estado presos no campo do Tarrafal. Faziam críticas muito fortes à atitude dos anarquistas e foi então que percebi que o antagonismo entre essas duas correntes não era só sobre o passado mas que se perpetuava no presente.

—  A fundamentar essas críticas, sobretudo à que era dirigida aos anarquistas, havia a ideia da eficácia imparável da organização vanguardista de tipo bolchevique, a única capaz de funcionar na clandestinidade. No seu livro “Relatos da clandestinidade”, Silva Marques, falando dos anos 60, avança a ideia de que o partido comunista funcionou finalmente melhor como sindicato que como partido. Mesmo se as greves se produziam fora da direcção do partido, a actividade sindical quotidiana dos militantes do partido era essencial. Em conclusão, escreve ele, o partido tinha sido muitas vezes ultrapassado à esquerda pela sua base, sobretudo na margem sul de Lisboa e no Alentejo. Ele dá como exemplo a atracção dos militantes comunistas por acções violentas, tais como o ataque ao quartel de Beja. Em suma, que o partido tinha a sua implantação assegurada mas que não estava certo de ser seguido, menos ainda de segurar a sua base. Retomemos esta questão da relação entre actividade política e actividade sindical. Em que medida se poderá afirmar que a prática sindical esteve mais marcada pela experiência sindicalista revolucionária e a militância política mais formada pela actividade do partido comunista? Para lá da crítica que o partido fazia ao anarco‑sindicalismo, havia inegavelmente uma experiência histórica do sindicalismo em Portugal, que vinha de longe.

Não creio que essa análise retrate bem a questão. Falar de actividade sindical naquela altura é exagerado, pois esta estava reduzida ao que se passava nos sindicatos nacionais-fascistas. O trabalho do partido fazia‑se numa perspectiva de infiltração, de utilização dessas organizações, de tentativa de concorrer a certas eleições para tentar entrar nas direcções sindicais. Tal era a linha do partido na altura. A actividade reivindicativa económica tinha um grande peso nas empresas mas era feita à margem dos sindicatos. Na maioria dos casos constituíam‑se comissões semi­clandestinas nas empresas para conduzir essas lutas, as chamadas comissões de unidade. O partido comunista empenhava‑se bastante nisso: via aí uma maneira de pôr em movimento os trabalhadores pelas suas reivindicações, uma vez que a liberdade sindical não existia. No entanto, não me parece que essa actividade estivesse na continuidade da antiga tradição sindicalista, visto que, durante os anos 30, a repressão tinha desmantelado e feito desaparecer todos os resíduos das antigas organizações sindicais. A segunda guerra tinha trazido para as cidades, a zona de Lisboa em particular, uma nova geração de trabalhadores. Eram imigrantes vindos dos campos que, na sua esmagadora maioria, não tinham a experiência sindical antiga. Os sindicalistas da antiga geração tinham sido enviados para os campos de concentração – os mais radicais –, ou tinham‑se dissolvido na grande massa. Uma pequena minoria tinha mesmo sido cooptada pelo aparelho sindical fascista. A ideia que tenho é que se deu um corte profundo com esses tempos do anarco-sindicalismo. Para a minha geração, na zona de Lisboa, as lutas que apareciam eram algo de completamente novo e ligado à actividade do partido.

A greve era tentada muito raramente, só em situações extremas. No dia-a-dia, a actividade era sobretudo de levantar e agitar algumas reivindicações, fazer circular abaixo assinados, mobilizar os trabalhadores para irem pedir uns aumentos ao patrão e por aí fora. Isto tinha realmente um peso grande na vida militante. Simultaneamente, e à excepção dos períodos eleitorais, o partido desenvolvia a sua actividade política a um nível muito restrito – junto dos intelectuais, dos estudantes e das classes médias. A ideia era estar atento a todas as reivindicações que pudessem incomodar o governo, pô-las em movimento e utilizá‑las.

Resumindo: junto da classe trabalhadora as actividades desenvolvidas pelo partido eram essencialmente de tipo económico; junto dos sectores intelectuais e estudantes, além das suas reivindicações próprias, havia um trabalho de carácter mais político. Havia uma espécie de separação: a política fazia‑se com os democratas republicanos e a intelectualidade; com os trabalhadores fazia‑se reivindicações de índole económica. Mas isto era o fruto de uma linha política e não me parece que tivesse a ver com esse tal funcionamento sindicalista do partido de que fala o Silva Marques.

 — Depois do segundo Congresso (1946) a linha oficial do partido comunista era de entrar nos sindicatos fascistas. Ora, as lutas acabavam sempre por se exprimir fora destas instituições oficiais, através de organizações paralelas, clandestinas, as tais comissões. Mesmo se elas eram activadas pelos militantes do partido, de certa forma eram organizações espontâneas. Como se vivia esta contradição no interior do partido ?

 Era discutido, mas pouco. Por um lado por causa da grande repressão policial, por outro lado devido à própria estrutura do partido. Discutia-se mesmo muito pouco. Quando eu ainda era só simpatizante do partido ia acompanhando o que se passava, lia às vezes o Avante, que me passavam outros militantes, apoiava as actividades de alguns militantes que eram operários de fábrica. Um dos acontecimentos de que me lembro em particular é de uma eleição no sindicato dos metalúrgicos de Lisboa, em 1951 se não estou em erro, que deu muita discussão. De acordo com as directivas do partido, formou-se uma lista de oposição e concorreu-se à eleição. Alguns dos meus camaradas operários levantavam muitas dúvidas, reticências, críticas mais ou menos abertas à eficácia daquela táctica. A partir do momento em que eles se manifestavam nas asssembleias dos sindicatos ficavam logo fichados pelos pides que lá estavam. Mas tal era a linha do partido e pronto! Seguia-se, não por medo de ser atacado pela hierarquia, mas pelo grande respeito que havia ao partido. “O partido é que sabe”, era a opinião dominante! Houve casos, na altura do fim da guerra e sobretudo na província, em que as listas formadas sobre a influência do partido conseguiram ser eleitas. Mas no princípio dos anos cinquenta, quando eu entrei na actividade, era raro. As eleições eram todas falsificadas de uma ponta à outra, as listas de oposição nem sequer eram aceites. O que eu observei foi que quando os trabalhadores decidiam lançar-se numa luta nem lhes passava pela cabeça ir à direcção do sindicato porque isso era a mesma coisa que se denunciar a polícia.

 — A corrente trotskista não existia em Portugal. Que ideia tinhas tu na época do que podia representar esta corrente?

 Uma total ignorância. A única ideia que se tinha era a transmitida pela ideologia estalinista, que apresentava Trotsky como um agente tenebroso do imperialismo, que tinha sido muito bem morto. Mesmo a polémica de Lenine contra Trotsky antes da revolução era desconhecida. Creio que a corrente não tinha existência real em Portugal. Pelo menos não me recordo nunca de ter ouvido falar.

Como se via em Portugal nessa altura a situação internacional, as relações de força entre os blocos? Dizias tu que se discutia muito pouco. Nesse pouco discutia‑se a situação internacional? Em particular tens ideia como se percebeu em Portugal os acontecimentos da Hungria em 1956? Claro que tu tens hoje uma visão desses acontecimentos que não é a mesma que terias na altura. Em 1956, estavas já na clandestinidade.

Curiosamente as questões internacionais eram as que mais agitavam os militantes naquela altura. Havia na altura uma revista, a Vida Mundial, autorizada pelo regime, mas que trazia muitas informações do que se passava no mundo e a gente discutia muito aquilo nos cafés, assim meio à socapa. Acompanhávamos muito a situação internacional. A minha geração foi muito marcada por estas discussões. Nós entrámos na política no momento em que a Guerra Fria estava no auge, em que a vitória da revolução chinesa deixou tudo de boca aberta, pois até aí ignorava-se por completo a força dos comunistas chineses. Depois veio a guerra da Coreia, a primeira guerra do Vietname, e por aí fora… Havia a ideia que o campo socialista se estava a alargar de forma imparável e que o imperialismo tinha os dias contados. Nesse tempo o partido incutia, através dos seus documentos clandestinos, uma grande aversão ao imperialismo americano, à NATO, e aos Estados Unidos, o polícia do mundo. Uma das minhas primeiras actividades, ainda no MUD Juvenil, foi a campanha pela paz e contra a bomba atómica, campanha que consistia essencialmente em recolher assinaturas das pessoas, porta a porta. Mesmo sendo proibido, nós lá o fazíamos e bastantes jovens acabaram por ser presos. Havia um grande empenhamento na defesa da União Soviética e dos outros países que nós na altura víamos como socialistas e que, de facto, eram os únicos a opor-se ao imperialismo e a apoiar os movimentos de libertação das colónias.[4]

Sobre a revolução na Hungria. Na altura já eu estava na clandestinidade, ouvi a versão dada pela direcção do partido e pela rádio Moscovo e o que eu tirei disso foi única e exclusivamente a tese oficial do partido e do partido russo, isto é, de uma revolta contra‑revolucionária preparada pela CIA e que teria envolvido alguns sectores operários, enganados pela propaganda ocidental. Por isso apoiei sem reservas a intervenção do exército russo para esmagar a revolta. Não tenho dúvida de que a chamada “revolução” húngara foi essencialmente obra da CIA, mas na altura ignorava o outro lado da questão: o descrédito dos regimes do Leste perante as massas devido à mentira do seu socialismo, a ausência de liberdades para os trabalhadores, a revolta contra a polícia secreta, etc.

– Eu era criança na altura, e lembro‑me perfeitamente das grandes mobilizações organizadas em todo o país pela União Nacional em apoio à revolta na Hungria. Lembro‑me que o meu pai me levou a uma manifestação de apoio à revolução húngara diante da Câmara de Leiria na qual tomaram a palavra todos os dignitários locais do regime. Apesar de ser um acontecimento exaltado pelos fascistas, havia algo de estranho pois tratava‑se de um movimento em que um povo fazia a história, se revoltava contra um regime opressivo. Na altura, mesmo com onze anos, esta descoberta marcou‑me mais do que a propaganda anticomunista do regime sobre o acontecimento.

Sim, lembro-me que houve uma moda de a burguesia acolher crianças húngaras. Esse apoio que o regime de Salazar dava aos revoltosos, para os meios operários era o critério suficiente para saberem o que deviam pensar do assunto. Toda a dimensão de luta antiburocrática, de formação de conselhos operários, passou despercebida. No partido nunca ouvi falar em tal. Para nós só uma coisa contava: a luta do campo socialista contra a agressão imperialista. Os Estados Unidos estavam a apoiar as tentativas de reforma do regime húngaro e isso para nós chegava. Que o regime fosse burocrático, oprimisse os trabalhadores, que se tratasse de uma nova classe dirigente, a tudo isso estávamos totalmente alheios.

— Em 1957 és preso como militante clandestino do partido e ficas encarcerado até 1960. Já tinhas estado preso três vezes, mas antes de estar no partido, no MUD Juvenil. A prisão na altura era como uma escola de formação do partido. Lembravas tu que até os agentes da Pide diziam ironicamente: “Vais para a universidade!” Qual era a relação do partido enquanto organização e a prisão como instituição ? O Tomás de Aquino, no seu livro O segredo das prisões atlânticas, versão anarquista do que se passava no Tarrafal, explica como a organização comunista controlava os serviços internos do campo. Organização de sobrevivência do partido, ela obtém, de uma certa maneira, um poder relativo sobre os presos. No teu caso e na tua experiência, sentiste esse controlo do partido no interior da prisão?

O que o Tomás de Aquino diz pode ter sido verdade nos anos trinta, quando nas prisões e campos de concentração havia comunistas e anarquistas. Vinte e cinco anos mais tarde a situação era diferente. Praticamente todos os presos políticos eram membros ou simpatizantes do partido. Na prisão do Aljube, em Lisboa, apareciam de vez em quando uns indivíduos presos pela Pide nas fronteiras, clandestinos ou estrangeiros, que iam parar junto dos presos políticos. Era a única mistura que havia. O regime tinha um grande cuidado em separar os presos comuns dos presos políticos e dentro destes, em separar os comunistas dos outros. Muito raramente uns democratas republicanos ficavam presos nas salas dos comunistas. Por exemplo, uma vez, o Mário Soares esteve no Aljube na mesma altura em que eu. Nunca nos cruzámos. Ele estava preso numa sala particular, recebia a comida de casa, estava num regime diferente. Lembro‑me que nós víamos pela janela a criada da família Soares trazer a comida para o sr. Doutor. Na verdade não me recordo de presos políticos que não pertencessem à corrente do partido, portanto não havia disputas quanto à organização prisional.

— Como se passava a vida política no interior da prisão? Era uma organização relativamente igualitária ou era a hierarquia do partido na prisão que impunha os responsáveis ?

Os presos organizavam‑se, criavam a sua comuna, havia os responsáveis. Concretamente, numa sala em que estavam vinte pessoas, quem tomava a iniciativa eram as pessoas que eram funcionários do partido ou que tinham alguma responsabilidade política e isso era aceite pelos militantes de base sem problema, que eu me apercebesse na altura. Formavam um organismo de dois ou três que geria a comuna. Quando as condições eram favoráveis faziam‑se discussões em que todos participavam, sobre a resolução de problemas materiais da comuna, dar um subsídio a uma pessoa que tinha problemas familiares graves, distribuição de roupas que chegavam. Enfim, basicamente questões que não geravam discordâncias. Os contactos da cadeia com o exterior eram absolutamente secretos, as pessoas que não estivessem na Direcção prisional (o núcleo dirigente dos presos) não tinham nenhum conhecimento. Sabíamos que tais contactos existiam; apareciam papéis vindos do exterior, difundiam‑se informações políticas sobre o que se passava lá fora. Tudo isto era canalizado através dessa Direcção prisional.

— Como se reproduzia a hierarquia social dentro do partido e dentro da prisão, mais particularmente? No livro do Fernando Gouveia, um dos famigerados inspectores da Pide, ele fala muito na questão do respeito dos doutores dentro do partido. Dentro do partido e na prisão havia o respeito desta figura tradicional, conservadora, da sociedade portuguesa? Como se reflectiam dentro da prisão as hierarquias sociais ?

Ora bem: a meu ver a hierarquia fazia‑se sentir sobretudo pela graduação dentro do partido. Havia membros do partido que eram operários – o Jaime Serra, o Américo Sousa, o Chico Miguel, estive preso com todos eles – e que tinham altos cargos na direcção do partido. Tinham um acatamento incondicional por parte dos militantes. Não era por serem operários que o tinham menos que os dirigentes intelectuais, como o Cunhal, o Pedro Soares, o Guilherme de Carvalho. Eram dirigentes do partido e portanto tinha-se‑lhes respeito. Em geral, não me parece que houvesse, pelo menos entre os presos, o respeito por esses estatutos sociais tradicionais. No entanto, devo dizer que no meu período de prisão estive com poucos operários. Em Peniche os presos eram filtrados, iam para lá os profissionais da clandestinidade, os que tinham experiência política; era a tal “universidade” de que falavam os pides. Quando lá estive, a quase totalidade eram funcionários do partido. Eram pessoas que, qualquer que fosse a sua origem social, estavam há anos na mesma situação. A clandestinidade acabava por uniformizar o estilo de vida dos funcionários do partido. No meio daquilo tudo havia um ou outro operário de fábrica que a polícia metia lá, que caíam por acaso naquele meio de profissionais da política. Mas não havia distinções desse tipo, o tratamento era bastante igualitário. Repito, as verdadeiras distinções eram entre os responsáveis e os outros. E as decisões eram em geral acatadas; sob a pressão e a vigilância constante dos carcereiros, criava-se uma grande solidariedade.

— Finalmente tu afirmas o contrário do que diz o tal inspector da PIDE; que dentro da estrutura partidária havia uma maior contestação dos estatutos tradicionais, da forte hierarquia existente na sociedade portuguesa; que um operário comunista, pela sua actividade política, tinha tendência a ser mais crítico da imagem do doutor.

Não tenho a menor dúvida. Inversamente, os intelectuais faziam sempre afectação – por vezes sincera, outras vezes fingida – de dar um grande apoio à classe operária. Tentavam imitar atitudes proletárias, falavam que estavam ali para servir a classe operária, etc., enfim, toda aquela retórica que se tornou crónica nos partidos comunistas. O Guilherme de Carvalho, com quem estive preso (já morreu), era um exemplo extremo destas atitudes. Era oriundo da burguesia abastada mas em tudo o que dizia ou fazia havia sempre uma afectação de humildade e de simplicidade tão exagerada que era uma coisa postiça, que soava mal. Os outros dirigentes, o Cunhal em primeiro lugar, faziam questão de manter um igualitarismo pelo menos sobre as questões materiais, roupas, comida, etc. Nas discussões esforçavam‑se por se exprimir simplesmente a fim de não se colocarem numa posição mais elevada. A distância era em relação a democratas presos que não eram do partido, como foi o caso do capitão Henrique Galvão – que tinha desviado em Janeiro 1961 o paquete Santa Maria – e que esteve algum tempo em Peniche. O Galvão não queria ter contactos com os comunistas e não nos dirigia a palavra… O facto é que, desde que se tratasse presos republicanos passava‑se a respeitar o estatuto social, para não lhes ofender o amor próprio.

— Que relação tinham vocês com os presos sociais? Sobre essa questão os anarquistas tinham, no passado, sido muito sensíveis. Estou em particular a lembrar o interessante livro escrito pelo Emídio Santana, (????), onde ele faz uma série de esboços de vida de presos de direito comum que ele conheceu na prisão. Claro que, como tu explicavas, o regime fascista tinha separado totalmente os presos políticos da restante população carceral. Mas em que medida dentro do partido havia um reconhecimento do crime social, um apoio da delinquência provocada pelas condições sociais?

Isso vinha por vezes à conversa. Em Peniche havia um grupo de presos de direito comum que se ocupavam de fazer funcionar os serviços materiais da prisão, a cozinha, as limpezas e alguns trabalhos exteriores. Os presos políticos tinham‑se recusado a fazer tais tarefas, opondo‑se à ideologia prisional fascista que a certa altura quis impor o trabalho como “regeneração do crime”. Só aceitávamos fazer pequenos trabalhos que nos permitiam manter contactos entre nós (o regime era celular, um preso em cada cela o dia inteiro): carregar lenha, descascar batata, etc. Para o resto a prisão tinha recorrido aos presos comuns[5]… Os guardas não queriam que nós tivéssemos contactos com eles, para não os influenciar. Era assim “bom dia, boa tarde” quando nos cruzávamos, raramente. Claro, reconhecia‑se que eles eram vítimas da sociedade burguesa, mas não sentíamos nenhuma afinidade, porque, enquanto nós, comunistas, nos sacrificávamos para mudar a sociedade, os presos comuns queriam era desenrascar‑se individualmente e se pudessem ter os meios até estavam dispostos a juntar‑se à burguesia. E isto não ia fora da realidade.

— Curioso, os comunistas estavam prontos a sacrificar‑se pelo povo, mas aqueles elementos do povo que estavam na prisão aparentemente não podiam salvar‑se por eles próprios, estavam como condenados…

Os presos comunistas mais velhos, que nos anos trinta tinham estado ainda misturados com os comuns, por vezes tinham uma opinião mais aberta e falavam com apreço de figuras que tinham cruzado na prisão, indivíduos que consideravam válidos e que eles até tinham tentado doutrinar. Mas no período em que eu andei pelas prisões tudo isso eram coisas do passado e o regime prisional não permitia contactos.

— O salazarismo aperfeiçoou a estrutura prisional. O regime estava consciente que havia os políticos e os outros e que deviam estar separados. Sabia também que esta separação criava as condições da prisão como uma escola para os quadros políticos. E isto era aceite tacitamente dos dois lados.

Não sei o que queres dizer por essa “aceitação tácita dos dois lados”.[6] Havia fases em que a direcção prisional afrouxava o regime no interior da prisão e outras em que tudo era mais difícil. As orientações que vinham do governo dependiam da situação política e social no país. Em 1958, quando estive pela primeira vez em Caxias – a cadeia dependia directamente da Pide e era dirigida por um inspector – havia um relativo abandalhamento dos guardas. Isto proporcionava aos presos ocasiões de passar mensagens de umas salas para as outras, de conversar nos recreios com os guardas republicanos, etc. Enfim, nada de extraordinário, mas um certo afrouxamento. Por outro lado, em 1959, depois da campanha do general Delgado, eu estava em Peniche – e esta cadeia dependia directamente do Ministério da Justiça – quando o regime prisional endureceu muito. Puseram-nos num sistema estilo penitenciária americana, um por cela, em isolamento total a quase totalidade do dia. Só estávamos juntos às horas das refeições e funcionava tudo muito militarmente, apitos de guardas, marchas, obrigação de pedir autorização para falar à mesa com um companheiro, castigos pela mais pequena coisa, eu sei lá… Mas esta situação também não durou. As campanhas políticas lançadas no estrangeiro, os pedidos de amnistia, acabaram por fazer ceder o governo. Na altura estava lá o Cunhal, o que dava mais repercussão internacional aos protestos. Então mudaram a direcção da cadeia veio um secretário da direcção católico que começou a fazer umas aberturas. Enfim, quero com estes exemplos mostrar como flutuava o regime prisional. A primeira ideia do regime era de isolar os presos políticos. A segunda era que se falasse o menos possível deles, que o seu número fosse reduzido ao mínimo indispensável. Nos anos 50, fora dos períodos quentes, das épocas eleitorais, o número dos presos políticos não ultrapassava as duas centenas. O regime tentava reduzir aquilo aos funcionários, aos dirigentes. Tudo o que eram operários e assalariados rurais presos por reivindicações ou greves, eles tentavam despachá-los ao fim de uns meses. Justamente, eles estavam conscientes do tal aspecto “prisão‑universidade”. Na mentalidade do Salazar, os quadros políticos já não tinham emenda possível, mas os outros deviam ser preservados do “contágio”. Na realidade, a coisa estava um pouco circunscrita: os quadros conhecidos do partido, ou estavam na prisão ou estavam na clandestinidade. Não havia ilusões de um lado e do outro.

– Estiveste na prisão com o Cunhal, em Peniche, onde chegaste em 1958. Podes falar um pouco sobre a personalidade dele enquanto dirigente, os traços dominantes do carácter? Era um tipo que se punha em questão, que dava a impressão que podia ter dúvidas? A ideia do erro fazia parte da sua construção mental ou era um personagem rígido ?

 Não, eu diria até que os mais rígidos eram os dirigentes de uma outra geração, operários ou intelectuais: o Jaime Serra, o Joaquim Gomes, o Pedro Soares, por exemplo. O Cunhal era um tipo diferente e cativava os que o conheciam. Em questões pessoais ele não tinha problema nenhum de ser posto em questão, ouvir uma crítica. Reagia bem, tipo “és capaz de ter razão”. No campo das discussões políticas – e volto a lembrar que estas discussões eram extremamente limitadas dentro da prisão – mostrava abertura. Partia de uma posição, mas avançava sempre como hipótese as posições contrárias. Para dar peso à sua, claro está. Mais tarde eu percebi que ele tinha tido uma formação mais dialéctica, menos rígida. Ele tentava convencer pela discussão, coisa que os outros dirigentes mais velhos não faziam. A estes, a insegurança ideológica levava-os para a atitude do tipo “Está dito e arrumado, é assim!” e se alguém contestava levavam a mal. O Cunhal tinha perfeitamente percebido que era necessário convencer para que os militantes fossem eficientes. Na convivência pessoal era modesto. Recusava todo o tratamento particular, o que também lhe dava prestígio e carisma junto dos camaradas. Enfim, era uma pessoa à parte, sem dúvida. Na ala onde eu estive, éramos uns quinze presos, cada um na sua cela. Outra pessoa com grande carisma era o Chico Miguel, mas por um outro tipo de razões. Era um dirigente operário de grande prestígio, muito voluntarista, radical, com um grande espírito de revolta de classe. Não tinha a conversa política elaborada do Cunhal mas era alguém que se sentia muito autêntico. Um tipo de personagem raro no partido, um operário da base com um espírito revolucionário. Nas prisões tinha aprendido bastante, dava aulas de marxismo. Mas o traço que eu acho que lhe dava mais prestígio era de ser uma espécie de emblema operário na direcção do partido. O que o Cunhal evidentemente não podia pretender.

Sobre a questão do conteúdo do socialismo na União Soviética não havia a mínima discussão. Aí não se falava em posições contraditórias.

Não, claro que não. Se havia divergências entre os dirigentes nada transparecia. Claro que sobre a União Soviética surgiam perguntas. Quando eu estava na prisão foi em pleno período da coexistência pacífica com os americanos. Alguns levantavam perguntas muito cautelosas. O Chico Miguel era um deles: “Está bem que isso é só uma táctica para ganhar tempo. Mas será que isso não vai falhar, desacreditar o campo socialista?” A nova linha do 20º Congresso do PCUS era tão contrária a tudo o que se tinha defendido no tempo do Staline que causava dúvidas em alguns militantes. Mas a maioria submetia‑se às decisões dos dirigentes soviéticos: “Eles é que sabem, quem somos nós para criticar? O Krutchov é uma grande cabeça, eles sabem o que estão a fazer”. As acusações de Krutchov sobre os crimes de Estaline eram tomadas como falsificação da imprensa ocidental. Durante anos continuou‑se a dizer no partido que o “relatório secreto” de Krutchov não passava de uma fabricação do imperialismo. Também não se aceitava nenhuma crítica ao pacto germano-soviético, visto só como uma brilhante táctica do Staline, necessária para ganhar tempo. Sempre a ideia que o partido, enquanto instituição, tem uma inteligência sem falhas. “Pois claro, são guiados pelo marxismo‑leninismo que recolhe a experiência das massas, aquilo é uma máquina”. Mas, embora eu na altura não tenha feito grandes objecções, começaram a surgir‑me interrogações, certas dúvidas e receios sobre o resultado daquela nova política.

— No princípio dos anos sessenta começa a grande vaga de emigração para a Europa, para a França em particular. Como é que o partido via a questão da emigração? Afinal a emigração sapava a base operária do partido. Muitas vezes eram os operários mais autónomos, com mais iniciativa, que partiam. Li algures que a base do partido na Covilhã desapareceu nesses anos como consequência da emigração.

Sapar a base, não me parece. No início dos anos 60, a base do partido era reduzidíssima nas fábricas. Umas dezenas aqui e ali, mais uma dúzia além. O caso da Covilhã desconheço. Pode ter sido, se havia dois ou três operários ligados ao partido que emigraram. Em Lisboa os militantes que partiram na minha altura foram poucos. Pelo contrário, assiste‑se, paralelamente ao movimento de emigração, a uma reactivação das simpatias para com o partido nos meios operários, na região de Lisboa pelo menos. São anos de mudança no ambiente económico e político. Há uma industrialização, criam‑se os estaleiros navais da Lisnave e da Setenave. Nos anos 50 o partido tinha praticamente desaparecido do meio operário de Lisboa, a sua estrutura tinha sido desmantelada, esmagada pela repressão. Nos anos 60 começa a recuperar, assim como no meio da juventude. Quando eu regresso à clandestinidade, depois da fuga de Peniche, encontro um ambiente novo. O partido tinha feito a crítica do “desvio de direita”, seguido quando o Júlio Fogaça esteve à frente do partido. Esta linha tinha-se concretizado na ilusão de que o fascismo entrara em decomposição, na esperança de cavar dissidências no campo fascista, e daí os apelos aos salazaristas descontentes, o estabelecimento de laços com os militares putchistas da época e um esfriamento das relações com a oposição democrática. Falava-se numa “saída doce” do fascismo, no “afastamento pacífico de Salazar”, o que desacreditou bastante o partido. Com o regresso de Cunhal, quando foge da cadeia, e a crítica que ele faz a tudo isto, há a ideia de que o partido entrou na linha certa, os militantes reanimam-se e a base trabalhadora e jovem começa a desenvolver‑se. O rescaldo da campanha do Delgado trouxe também sangue novo ao partido. Como funcionário clandestino encontrei um ambiente mais positivo do que tinha conhecido no início dos anos 50.

— Isto é mais uma conversa entre duas pessoas que têm vivências e experiências políticas diferentes, a minha sendo obviamente mais limitada. Até porque fazemos parte de gerações diferentes também. Compreendo que, por vezes, podes sentir uma certa ambiguidade na conversa, uma certa tendência para julgar a tua responsabilidade como ex-­membro e ex‑quadro do partido comunista. Quando se é exterior à tua experiência – mesmo tendo consciência dos limites históricos do período que viveste e que descreves –, uma dúvida aparece: o que exprimes hoje era a linha do partido na altura ou era o que tu pensavas na altura? Ou, se calhar, é a mesma coisa!

Vamos a ver. Ao abandonar o Partido e a sua corrente de ideias, eu não me aproximei nem das posições social-democratas nem das posições libertárias. Portanto, não vejo que um balanço ao meu passado possa ser feito na perspectiva do que os libertários podem pensar dessa experiência. O balanço que eu faço é na perspectiva do leninismo. Se esta posição que      hoje defendo se afasta da minha experiência passada, ela também se distancia da tua corrente de ideias. Portanto, a conversa tem de jogar em função disso. Não faria sentido eu analisar a minha experiência no partido segundo o ponto de vista que os libertários podem ter a esse respeito. Eu analiso‑a segundo uma crítica que hoje faço a partir da corrente de ideias em que me encontro. Corrente que repudia o “marxismo‑leninismo” tradicional, fortemente contaminado de reformismo e dogmatismo, e que se reivindica de um marxismo e de um leninismo crítico. Ai está, a meu ver, a origem de algum mal-entendido.

Gostava no entanto de dizer algo sobre a questão das responsabilidades. Em 1962 e 1963, eu fui chamado, primeiro ao comité central do partido e, pouco de tempo depois, à comissão executiva do mesmo comité. Claro está, assumi responsabilidades dirigentes. Durante alguns meses, fui uma das três pessoas que, dentro do país, tinham responsabilidades políticas máximas dentro do partido, embora sempre submetidos às orientações que vinham do exterior, do secretariado onde estavam o Álvaro Cunhal, o Blanqui Teixeira e o Vilarigues. Não considero que essa experiência dirigente tenha representado da minha parte conciliações, responsabilidades com uma política reformista, ou revisionista, etc. Isto porque, bem antes de ter sido chamado ao comité central e depois ao longo dos meses em que ocupei essas posições dirigentes, eu estive sempre a levantar problemas e a reclamar uma discussão sobre a linha do partido, tendo isso culminado com a minha saída do Partido, quando essa discussão se realizou em Moscovo e acabou numa ruptura. Mais tarde poderemos voltar ao assunto.

Portanto, a minha experiência no partido não me deixa nenhum peso de ter sido cúmplice de uma política de subjugação do proletariado ou coisa parecida. Isto dito, é verdade que se tu fazes viver uma corrente política, tu fazes necessariamente funcionar a organização que a defende.

Quem diz fazer funcionar diz funcionário. A este propósito parece‑me importante descrever a experiência dos anos em que fui, justamente, funcionário do partido. Sinto essa experiência de uma maneira um pouco decepcionante. Mas também de maneira muito diferente da que ela pode ser vista e analisada por alguém como tu, do exterior e com distância.

O aparelho do partido seleccionava as pessoas que a este mesmo aparelho pareciam de confiança e seguras, capazes de aguentarem a clandestinidade, a perseguição da polícia e finalmente a prisão. Esta situação de clandestinidade era o factor determinante que marcava a actividade e as posições do partido comunista. Um outro critério era de escolher pessoas com suficiente boa vontade para que não levantassem problemas à orientação geral do partido. Acabava assim por se fazer uma espécie de selecção natural dos quadros. Os funcionários que conheci eram, em geral, pessoas politicamente dóceis, que não levantavam problemas, suficientemente devotadas ao partido para se poder ter total confiança nelas. Quer isto dizer que a participação de um funcionário, um quadro, nas orientações da organização, na actividade política, era extremamente restrita. Estava convencionado que o funcionário mais não era que um executor das orientações transmitidas pelo “controleiro”, que cada um tinha acima de si. O funcionário na clandestinidade não tinha nenhum papel criativo no sentido de estar a desenvolver, a desdobrar uma orientação política. Tinha um simples papel de executante das orientações vindas de cima. Penso que, se hoje me encontrasse de novo nessa situação, seria incapaz de desempenhar novamente essa função. Mas na situação vivida na época, para um indivíduo que queria opor‑se à ditadura fascista não me parece que houvesse alternativas práticas, concretas. Eu, pelo menos, nunca tive conhecimento que as houvesse. Mesmo hoje, com o que conheço daquela época, continuo a não as ver. O quadro autoritário e abafante do regime salazarista empurrava‑te inevitavelmente para esta opção. Quando digo alternativa prática, refiro‑me a uma intervenção política que se quer minimamente eficaz para lutar contra a ditadura.

Faz agora cinquenta anos que fui preso pela primeira vez. Qual era o espírito que me animava nos anos 50? Eu queria fazer algo de organizado contra a ditadura. A porta que se abriu foi a do partido, por pessoas que me contactaram e me recrutaram para trabalhar no MUD Juvenil, uma espécie de frente para a juventude onde o partido tinha um papel dominante. E fora deste meio o que havia? Havia os republicanos, meio onde na altura já se agitava o Mário Soares, que levavam um tipo de política oportunista. Os que queriam lutar contra o regime não os levavam a sério. Havia talvez outras pessoas com outras ideias. Mas não me parece que existissem outras actividades organizadas fora das que propunha o partido. O meio anarquista, como já disse, estava destruído, atomizado e silenciado. Um jovem da capital, vindo do meio popular, como era o meu caso, desconhecia mesmo a sua existência.

— Com o recuo crítico que podemos ter hoje, a tua reflexão sobre a tua experiência de funcionário leva a conclusões importantes. Partia‑se de uma situação de revolta contra uma situação política e social. A organização que propunha uma resposta organizativa a essa revolta pedia finalmente a docilidade do indivíduo. Pode‑se pensar que tal lógica seja intrínseca a sociedades e sistemas totalitários. Necessariamente, são as pessoas mais revoltadas que são atraídas para essas organizações. Ora, esse tipo de organização tenta instrumentalizar essa revolta e ao mesmo tempo domesticá‑la relativamente à organização. Como tu descreves bem, o elemento essencial para ser cooptado como funcionário era a docilidade relativamente à organização. Para chegar até ao partido comunista era preciso ser muito revoltado. Para ser um bom comunista era necessário ser dócil.          Ser eficaz era ser um bom executor. Todo um percurso de abafamento do espírito crítico, vivido no seio de um regime abafado.

Não me parece de estranhar. Em Portugal a longa e pesada situação de clandestinidade acabou por dar ao movimento de resistência características muito vincadas, provavelmente mais vincadas das que se podem observar noutros países. Não foram só alguns anos, foram gerações que viveram esta situação. A lógica da defesa clandestina acabava por fazer aceitar facilmente a necessidade destes critérios. O objectivo do partido acabava por ser de sobreviver. A propósito desta exigência de docilidade lembro‑me de ouvir um dirigente do partido, o Pires Jorge, que já morreu, referir‑se a um militante que era proposto para funcionário. Ele comentava: “Ele é bom; encosta bem.” Queria ele dizer, utilizando um dito camponês, que o tal tipo tinha a qualidade de um  cavalo que puxa um carro no bom sentido e que não o faz sair da estrada…

— O facto de este comentário te ter chocado era talvez prova de que tu já fazias parte de uma geração intermediária, que começava a achar esta exigência de submissão ao aparelho exagerada…

É possível. Mas a confiança e o culto pelos dirigentes clandestinos surgia naturalmente nesta situação. A juventude apreciava estas figuras, de maneira meio romântica: fulano já foi preso não sei quantas vezes, fugiu não sei quantas, passou não sei quantos anos nas prisões, suportou isto e aquilo, cicrano que esteve no Tarrafal, etc. Essa admiração pela direcção, pela equipa dirigente – que eram umas pessoas um bocado misteriosas – facilitava a criação de um ambiente de aceitação total da linha e das práticas. É um erro pensar que era pelo terror que a direcção mantinha esta situação. Não tem nada a ver, era muito mais o prestígio. E os jovens, como eu, que chegavam ao partido eram assim encaminhados nesta maneira de ver e de agir.

Os anos de prisão permitiram‑me reflectir muito e foi assim que comecei a levantar críticas e a escrever. Olhando para a minha actividade clandestina dos anos anteriores, aparecia‑me claramente que essa actividade tinha tido uma função de esterilização do meu pensamento crítico e que ela tinha criado, pouco a pouco, hábitos de executor. Ser um bom executor, não levantar problemas, era o que o partido pedia. Aí estava a eficiência do funcionário. Isto tudo levava a pessoa a perder as suas qualidades e faculdades intelectuais, o seu espírito crítico. E assim se perdia o espírito de revolta que tinha trazido a pessoa ao partido. Funcionário: a palavra é mesmo boa. Um funcionário tinha a sua carreira, uma carreira desgraçada que consistia em ser preso, levar porrada, ser condenado, voltar à clandestinidade, ser preso de novo e por aí adiante. Mas assim ia, pouco a pouco, ganhando a confiança dos dirigentes, sendo, pouco a pouco, chamado a tarefas mais responsáveis. Levantar problemas e criar dificuldades ao bom funcionamento do aparelho significava comprometer a sua aspiração de ser útil à resistência. Tratava‑se pois, de mentalizar as pessoas para se transformarem em peças de um aparelho que deve funcionar sem problemas internos para sobreviver num ambiente hostil.

— Nos estratos mais elevados do aparelho haveria uma visão cínica deste funcionamento e da utilização dos militantes, ou seria apenas a lógica inevitável deste tipo de organização, numa situação especifica como a da clandestinidade?

Partindo do que vivi, a minha impressão é que os quadros superiores estavam tão condicionados e tão manipulados pela situação e pelas circunstâncias como eu próprio estaria. O aparelho funcionava assim. Dizia‑se e repetia‑se: “Os nossos camaradas soviéticos têm uma longa experiência. São eles que nos aconselham e portanto devemos aplicar estes conselhos.” Além do mais, como se via pela prática, a coisa resultava. Era a prova dos nove. Então? Temos o partido a funcionar, a fazer coisas, e o resto da oposição não faz nada. Voltava‑se ao critério da eficácia. Assim se entrava naquele esquema e o aceitávamos e o fazíamos nosso.

— Não havia portanto nenhuma discussão sobre a relação entre os meios utilizados e os fins, os princípios de organização. A actividade nos sindicatos fascistas é um bom exemplo, utilizavam‑se os mesmos meios que o inimigo para chegar a fins diferentes.

Ah, as discussões! Tu perguntas sempre se havia discussões, porquê não as havia… Há que ter em conta as condições concretas em que esta actividade política se desenrolava. E o tipo de organização política que era um partido comunista naqueles anos. Eu tive discussões sobre questões de princípios e outras enquanto estive na legalidade, sobretudo quando da minha passagem pelas juventudes, onde havia possibilidades de contacto entre as pessoas. Quando passei a funcionário – de 1954 a 1963, foram dez anos de vida – essas possibilidades restringiram‑se e acabaram por desaparecer. Isto precisamente devido ao tipo de funcionamento do aparelho clandestino e às suas exigências, à falta de contacto absoluto entre os militantes. As razões sempre apresentadas eram as de segurança. Os contactos eram de tal maneira reduzidos e de tal maneira curtos que deixavam pouco tempo. Eu poderia ter contacto com uma dúzia de camaradas, entre “controleiros” e membros do mesmo sector mas estes contactos eram brevíssimos, consumiam‑se em reuniões sobrecarregadas com controle de tarefas de execução, e de segurança e de defesa, sei lá mais o quê, tudo aquilo levado um pormenor extraordinário. Portanto, na prática, a discussão, a especulação sobre problemas e situações políticas desaparecia. Era raríssimo haver uma situação em que se trocassem ideias. Além disso, a reflexão dos militantes era alimentada exclusivamente com os materiais considerados ortodoxos, textos do Staline, alguns do Lenine, até não muitos, resoluções do comité central do partido soviético. Tudo isto encaminhava a cabeça das pessoas para funcionar exclusivamente dentro da norma. Queria voltar ao exemplo que citaste do trabalho no âmbito dos sindicatos fascistas, sobre o qual sempre tive muitos desacordos. No entanto, não me parece que seja um bom exemplo para ilustrar o problema que levantas. Bem ou mal, os membros do partido entravam nesses sindicatos com a intenção de estabelecer contactos com os trabalhadores, com a intenção de subverter todo esse sistema sindical. Como já disse antes, parece‑me que não obtiveram esses resultados e mesmo que ajudaram a criar uma série de caciques sindicais que depois continuaram a funcionar na democracia. No entanto, a situação dos militantes comunistas – que disfarçadamente tentavam agir dentro desses sindicatos, participavam em assembleias, em reuniões e mesmo eleições – era muito diferente da dos fascistas que estavam lá para os vigiar, para descobrir quem eram os subversivos e metê‑los na prisão. Discordo da aproximação que fazes entre os dois tipos de militância.

— Tens razão de o precisar. Claro que há uma diferença de motivações, de perspectivas e de projectos. Obviamente, não coloco no mesmo plano a atitude e muito menos a ética de um militante comunista e a de um bufo fascista. Não se ia para o partido como se ia para a União Nacional. O que eu queria sublinhar é que a utilização de uma instituição determinada, neste caso os sindicatos de tipo corporativista fascista, com um tipo de funcionamento bem preciso, tem consequências políticas. Submeter‑se a este funcionamento implica necessariamente a assimilação e a integração de critérios e de princípios organizacionais que são próprios destas organizações. Parece‑me contraditório com a ideia original de subverter mais tarde a instituição. Finalmente a estrutura sindical fascista era reconhecida por estes militantes e legitimada aos olhos de outros que não estavam ao corrente da táctica comunista. A única coisa que poderiam pensar era que, mesmo nestes sindicatos, havia bons militantes… O que eu queria sublinhar era que nem esta problemática se levantava: o que significa militar numa estrutura que não corresponde minimamente aos fins que se procuram? Esta ausência de debate é confrangedora. De acordo, como tu insistes, tudo estava ligado às condições do trabalho clandestino. Mas isto não pode deixar de ter consequências sobre a evolução posterior do partido.

Sim. Só que, desse ponto de vista, não vejo que tenha havido nunca uma ruptura no funcionamento do partido, nos seus princípios. A ideia básica é que se podem utilizar as instituições do sistema capitalista para fazer avançar a corrente comunista; que, com o fim de acumular forças, é necessário saber utilizar todas as instituições criadas pela classe burguesa. Esta ideia existia na clandestinidade e continua a existir na democracia. O caso actual do parlamentarismo é exemplar.

— A questão da posição das mulheres dentro do partido durante o período da clandestinidade raramente é abordada. Em 1984, saiu um livro, que na altura passou despercebido, da autoria da Cândida Ventura, “O socialismo que eu vivi”(edições O Jornal). Esta mulher foi membro do comité central durante o fascismo, de 1949 a 1965, passou 17 anos na clandestinidade e acabou representante do PCP junto do partido checo. Aliás, o livro tinha um curto prefácio do Arthur London. Ela deixou o partido em 1976, acusada de desvio de direita. Parece‑me interessante o que a Cândida Ventura escreve sobre o papel das mulheres dentro do partido. Diz ela sobre as mulheres que viviam nas “casas do partido” durante a clandestinidade: “Viviam completamente isoladas da luta que os homens funcionários travavam dia a dia, do que se passava no país e no mundo. Ocupavam‑se exclusivamente dos trabalhos domésticos e da vigilância, não liam a imprensa nem sequer a do partido. Algumas eram quase analfabetas. Os camaradas que viviam nessas casas não lhes falavam da situação política e das tarefas do partido”. A Cândida Ventura afirma ter criticado esta separação entre o funcionário e a mulher, elemento logístico, esta separação sexual dos papéis militantes, o facto de que estas mulheres eram muitas vezes sacrificadas à polícia. Pretende que foi ela que propôs ao comité central a criação de um jornal onde as camaradas das “casas do partido” pudessem exprimir‑se.

É verdade que a Cândida Ventura saiu do partido muito pela direita. Nem pelas águas do PS ficou, alinhou‑se rapidamente pelo PPD e apoiou até a candidatura do ex‑salazarista Freitas do Amaral. Isto apesar de todos esses anos de clandestinidade. Foi no entanto uma mulher notável, que conheci pessoalmente. Era na atura uma militante comunista de destaque, independentemente do percurso que fez depois. O que ela diz sobre este problema é só em parte verdade. O tal jornal acabou por ser criado pela direcção do partido, talvez sob proposta dela, não sei. O que é facto é que várias mulheres intelectuais do partido reagiam a essa situação e o jornal existiu durante muitos anos. Era um simples folheto dactilografado, que circulava clandestinamente dentro das tais “casas do partido”, e no qual colaboravam várias mulheres funcionárias do partido com artigos políticos ou falando das suas experiências. Um dos temas tratados era a questão da firmeza face à polícia, posto que havia sempre essa perspectiva. Foi um órgão que servia para consciencializar e elevar a mentalidade dessas mulheres militantes.

Mas o problema é mais complicado, vai para além dessa denúncia de uma divisão sexual das tarefas. O que acontecia? Devido à situação social no país, quem se envolvia em lutas, quem aderia ao partido, quem acabava por ser preso e acabava por passar à clandestinidade como funcionário, eram essencialmente homens. Isto na grande maioria dos casos. Em muitos desses casos os homens arrastavam as suas companheiras para a clandestinidade. Em geral, essas mulheres eram pouco politizadas e só passavam à clandestinidade para continuarem a viver com eles. O próprio partido fomentava esta decisão, porque um homem que passava à clandestinidade sozinho encontrava mais dificuldades, inclusive para se defender. Havia a necessidade de criar uma aparência de vida normal, uma vida de casal. Muitas mulheres foram assim colocadas numa situação de clandestinidade, com exigências muito grandes, que não correspondia à opção delas mas à dos seus companheiros, o que elas aceitavam, como mulheres obedientes ou então como a única opção possível. Senão o homem desaparecia, ia encontrar outra mulher e elas ficavam penduradas com um filho ou dois ou três. Isto era a realidade. Dito isto, parece‑me exagerado dizer que, nas ditas casas, as mulheres não faziam senão varrer e cozinhar. Não era uma situação generalizada, dependia dos casos. No meu caso, por exemplo, a minha companheira tinha tido actividades no MUD Juvenil, já tinha sido presa como eu, e acompanhou‑me também na clandestinidade. No entanto, para ela também a passagem à clandestinidade foi forçada, teve de abandonar as suas perspectivas de vida e submeter‑se, mesmo se na altura ela não era membro do partido. Era isso ou a separação e não sabíamos quando nos voltaríamos a ver. Uma vez na clandestinidade ela manteve uma grande actividade; traduzia textos, dactilografava, imprimia, gravava emissões da rádio para depois transcrever, estudava, lia e discutíamos muito. Mas é verdade que ela não tinha nenhuma actividade organizativa. Considerava‑se que era um perigo acrescido ter na mesma casa do partido dois funcionários com uma actividade organizativa, com contactos. Por princípio a casa devia ser preservada e protegida, mesmo se o funcionário fosse apanhado pela polícia na rua. Caso contrário o desastre era ainda maior. Portanto, o que era violento e duríssimo para as mulheres era que estavam praticamente proibidas de sair e tinham de passar anos nessa situação. E mesmo quando tinham tarefas políticas, estas reduziam‑se essencialmente à manutenção e à defesa da casa do partido. Eu saía por uma semana e a minha companheira devia ficar em casa, a aparentar para os vizinhos uma grande normalidade, a dizer que o marido era caixeiro-viajante, etc. e tal e sempre a vigiar a rua, se havia algo suspeito. Esta divisão das tarefas criava um grande desgaste psicológico nas mulheres, mesmo naquelas que tinham um papel político mais declarado. Enfim, esta situação mais não era que um espelho que reflectia o estado de submissão e a condição da mulher na sociedade portuguesa da época. Nisto também, o partido apenas se adaptava ao estado da sociedade da época.

— Havia uma grande moralidade sobre questões sexuais dentro do partido? Suponho que era como a questão das mulheres. O partido reflectia os valores da sociedade portuguesa de então. Mas como vês o tratamento moral que o partido fez à exclusão do Júlio Fogaça, dirigente do partido que foi acusado também de ser homossexual ?

A esse respeito a mentalidade do partido reflectia a mentalidade corrente. O Fogaça era homossexual e a policia salazarista tinha sempre utilizado o facto junto dos militantes presos para degradar a imagem do partido: “Vocês têm lá um paneleiro no comité central, é uma bandalheira”. Mas nas fileiras do partido dizia-se, em segredo, que o camarada se “tinha emendado e fazia uma vida impecável”. O Fogaça foi preso com o seu amigo do momento que fez declarações à polícia sobre a sua vida pessoal e sexual. O partido ficou aterrado com a exploração que a polícia poderia fazer deste escândalo que iria desacreditar completamente um dirigente. E também receoso que o Fogaça, entalado nesta situação, quebrasse politicamente e fizesse declarações à policia, o que aliás não aconteceu. Então decidiram precipitar a sua expulsão antes que rebentasse o escândalo. Mas creio que a razão principal estava ligada ao desacordo político que ele tinha com o Cunhal e ao facto de tudo ter acontecido quando o desvio de direita estava ser criticado. À parte isso, a posição do partido em relação à homossexualidade era a do espírito corrente da época – uma anormalidade vergonhosa, portanto inadmissível num comunista. Não se ia mais longe.

– E sobre a prostituição, qual era a posição do partido na altura ?

Era vista como uma situação degradante, moralmente baixa e portanto inaceitável para um comunista frequentar prostitutas. Mas, claro está, a questão da sexualidade punha‑se na clandestinidade. Essa era uma das razões por que se fazia pressão para que o comunista que passava à clandestinidade trouxesse a sua companheira. Caso contrário o partido convidava uma rapariga militante que quisesse viver com ele. Como é que isso se fazia? Havia raparigas solteiras que eram militantes do partido. Eram abordadas: “Olha, queres ir para a clandestinidade, viver com um camarada? Se vocês se entenderem, pois ficam juntos, senão, pois tudo bem, separam‑se”. Havia mulheres que aceitavam e sei que em alguns casos até funcionou. Noutros casos, não funcionava, o partido tinha de unir e separar.

Eram situações difíceis. Mas, como digo, a prostituição era condenada, para além do mais por razões de segurança que era sempre a preocupação primordial do militante ilegal. Um funcionário que frequentasse prostitutas representava um risco. No caso do Fogaça havia, para além do elemento de segurança, o elemento de moralidade. Mas no que diz respeito à vida sexual dos militantes legais, o partido não se metia nisso. Eu conheci militantes operários que frequentavam abertamente as casas de prostituição e isso nunca era motivo para discussões. Fazia parte do ambiente geral no meio trabalhador.

– Voltemos ao período que vai de 1961 a 1965. Em 1961, houve as grandes manifestações contra o regime, em Lisboa e no Porto. A grande greve dos trabalhadores rurais no Alentejo para obter a jornada de 8 horas dá‑se em 1963. Como viveste esses movimentos? Foram movimentos que estalaram independentemente das palavras de ordem do partido e que este depois acompanhou e tentou dirigir, ou foram desde o início, acções sob o controle das organizações do partido?

Não se pode, obviamente dizer que estes movimentos fossem a obra exclusiva do partido. Eles foram sobretudo o resultado da situação social, mas a participação do partido nas manifestaçães de Lisboa (sobre o que se passou no Porto tenho menos conhecimento) é indiscutível. Na altura, o José Magro era o funcionário do comité local de Lisboa, que teve grande influência na manifestação, e durante a greve pelas oito horas no Alentejo era o António Gervásio que “controlava” a organização no Alentejo. Eu acompanhei esses movimentos e não tenho dúvida de que a organização do partido teve um papel impulsionador, que veio no desenvolvimento de toda uma actividade que o partido tinha sobretudo depois da candidatura de Humberto Delgado. Havia uma agitação social, não muito grande mas perceptível, e o partido tentou explorá-la ao máximo. Os militantes viveram esses acontecimentos, e era também o meu caso, como uma prova que o movimento de massas estava a entrar numa fase diferente, mais activa, e que tal era também o fruto do trabalho do partido.

– A critica do desvio de direita aparece na sequência destas mobilizações…

Não, de facto esta crítica aparece quase simultaneamente. A fuga de Peniche, do Álvaro Cunhal e outros dez militantes entre os quais eu, deu‑se em Janeiro de 1960. A mim meteram‑me quase um ano a trabalhar numa tipografia clandestina, onde fiquei separado da actividade por razões de segurança. Só mais tarde vim a saber que o Cunhal e outros tiveram um papel importante para submeter a direcção de então do partido a uma crítica forte. O Fogaça, que era na altura o dirigente máximo, tinha sido afastado. Ele era politicamente o único que tinha uma alternativa à linha de  Cunhal, mas péssima, como disse atrás. Em 1961, o Cunhal tinha portanto já toda direcção na mão, tinha substituído vários dirigentes principais. E os chefes do partido puderam assim apresentar a participação nas movimentações sociais de 1961 como fruto da rectificação da linha política do partido. Caiu tudo bem.

– No princípio dos anos 60, pela primeira vez depois da segunda guerra, via‑se como possível o fim do regime salazarista. Mas como seria? Como resultado de um golpe militar, na consequência de dissensões internas da classe dirigente, como o resultado de uma greve insurreccional? Havia alguma discussão sobre o tipo de regime político e social que poderia vir a substituir o fascismo salazarista?

 É ai que se entroncam as minhas divergências que acabam por me levar ao abandono do partido. Uma coisa era clara: a situação estava a mudar e havia necessidade de repensar, de sistematizar de novo as ideias. O fascismo estava em crise. Na tua lista de factores esqueces‑te de mencionar a guerra colonial, que tinha começado em 1961. Era um factor importantíssimo da crise do regime. Desde então, podia‑se sem muitas dúvidas prever que as condições se iam agravar. É também o momento em que Cunhal retoma e reelabora as teses que já tinha alinhavado depois do fim da guerra mundial, em 1946‑47. Trata‑se, resumindo, da ideia do “levantamento nacional”, que ele caracterizava como a conjugação do movimento de massas e da acção dos militares patriotas, capaz de arrastar outras forças democráticas e de instaurar um regime democrático clássico, isto é, burguês. Segundo ele, uma parte da burguesia estava afastada do poder pelo fascismo e Portugal encaminhava‑se para uma revolução democrática e nacional. À cabeça desta revolução deveria estar a classe operária, queria ele dizer, o partido comunista. Uma nova etapa viria mais tarde, a da revolução socialista.

Este tema abriu uma discussão no partido que muito me interessou e na qual eu participei. Esta concepção do “levantamento nacional” considerava que as acções populares de base deviam ser essencialmente pacíficas e que finalmente tudo dependeria da acção desses “militares patriotas”, uma parte do exército fascista que devia conduzir à queda do regime e garantir o que viria a seguir. Não se tratava de passar o poder à rua e aos trabalhadores, mas que um sector democrático da classe militar e política o tomasse. Reivindicava‑se portanto, numa primeira etapa, uma simples transição democrática e contra esta ideia começaram a levantar‑se vozes no seio do partido, entre as quais a minha. A opção com a qual me identifiquei no momento apostava no desenvolvimento da revolta dos trabalhadores. Para nós era essa a via por que o partido deveria optar, a fim de levar o mais longe possível os efeitos da queda do regime fascista. A ideia de uma transformação socialista da sociedade portuguesa, segundo o modelo soviético, estava na altura posta de lado, tendo em conta a situação do país e as relações de força internacionais entre os blocos. Mas a opção que eu e outros defendíamos era que a queda do regime podia fazer‑se de forma revolucionária e que algumas conquistas sociais importantes seriam assim impostas por essa acção. Caso contrário, seria uma transição controlada, e essa era a  opção partilhada pela burguesia liberal que já se ia manifestando na crise do regime e que queria tudo menos ver o poder cair na rua. A fórmula de Cunhal, eu comecei a vê‑la, e penso que não me enganava, como uma tentativa para satisfazer os dois lados: os trabalhadores, que estavam ansiosos para deitar abaixo o regime, e a burguesia liberal, os socialistas e os republicanos, que queriam garantias. O “levantamento nacional” era assim uma fórmula ambígua que deixava a porta aberta a toda a gente, num estilo muito próprio da forma de pensar de Cunhal. Nas discussões – que havia no quadro restrito e fechado do comité central ao qual eu já pertencia na altura – não senti que houvesse uma oposição à linha do Cunhal, que era vista como a única viável. A opção oposta era olhada com muita desconfiança. Invariavelmente, a resposta do aparelho às críticas que eu levantava era: “Se começamos a levantar os trabalhadores contra o regime e contra a guerra colonial (sabotando o esforço de guerra) afastamos de nós os militares patriotas e as forças democráticas.” Daí que as opiniões e mais alguns defendíamos começassem logo a ser catalogadas como aventureiristas e sectárias.

– Como te surgiram essas ideias ? Não foste com certeza o único a ter essas dúvidas e a levantar essas críticas. Seriam ideias que germinavam, que se exprimiam noutros níveis do partido e mesmo fora, em outras acções ? Penso em particular no ataque ao quartel de Beja, em 1962, realizado por uma frente larga de militantes onde havia também gente do partido, apesar do desacordo da direcção. Teria começado a manifestar‑se uma certa radicalização da base, um desejo e acções ilegais? Talvez tu exprimisses de maneira mais elaborada e construída, do interior do aparelho onde estavas nessa altura, uma crítica que era já mais geral.

É possível. Por outro lado, tendo em conta a falta de resposta que a minha crítica teve na altura dentro do partido, dá para ter dúvidas… Tenho de reconhecer que na altura eu pensava exprimir um sentimento difuso. Que existiria, mas que estaria tão difuso que nunca se materializou em nenhuma acção ou oposição interna. Quando eu saí, a maioria do partido nem sequer teve conhecimento da minha ruptura, muito menos das razões, dos argumentos e das discussões. O que é facto é que não aconteceu nada que mostrasse que havia um ambiente no partido, embora minoritário, que apontasse para esta crítica.

Como é que eu cheguei lá? Acho que a reflexão na prisão pesou bastante. Nesse tempo, a prisão era o melhor lugar para discutir política. Mesmo sendo em Peniche as condições muito repressivas havia condições para discutir. Havia uma liberdade de espírito que faltava cá fora, quando estávamos presos às tarefas do aparelho… Em particular as discussões com o Chico Miguel, que na altura ainda era considerado como o esquerdista do comité central, influenciaram‑me muito. Reflecti muito sobre os anos passados. Descobri com frustração que o trabalho de funcionário tinha‑me feito perder as ideias políticas radicais que tinha anteriormente. Também teve importância o reavivar, no isolamento da cela, de ideias, de contactos, de opiniões com antigos militantes do partido que tinha conhecido quando ainda vivia na legalidade. Gente que tinha estado no Tarrafal, que contava experiências antigas do partido. Toda uma série de coisas que tinham ficado soterradas na minha cabeça e que pouco a pouco se manifestaram. Após a saída de prisão, quando estive a trabalhar na tipografia clandestina, comecei a pedir com insistência ao controleiro livros que anteriormente não conseguia obter. Li Marx, Lenine sobretudo. Claro está, só leituras básicas, que às outras não podia ter acesso.

Devo também dizer que o começo da guerra colonial me deu uma pancada fortíssima na cabeça. A guerra colonial indicava de uma maneira muito crua o caminho para o qual se seguia: os trabalhadores portugueses a desempenhar a tarefa de carrascos dos povos que se queriam libertar do jugo colonialista. Pensava eu que quando se chega a este ponto de crise as tarefas que se põem aos comunistas passam a ser de outro nível. Já não lutávamos só contra um regime que oprimia o povo português mas também contra um regime que massacrava os que, noutras nações, lutavam contra o colonialismo. E achei intolerável que o partido não fizesse um apelo forte à classe operária, aos trabalhadores em geral, contra a guerra, que não se levantasse a questão da responsabilidade imensa que teríamos se não nos opuséssemos de todas as maneiras à guerra colonial. Na altura eu escrevi, por encargo do secretariado, um manifesto com esta orientação, que chegou a ser impresso mas foi logo censurado pela direcção e retirado. Isto ainda me abalou mais e me fez começar a compreender que não pertencia ali.

 – Para a minha geração parece‑me que este aspecto de o partido ser uma organização abafada começava a ser implicitamente conhecido. E parece‑me também evidente que a fraqueza da posição do partido sobre a guerra foi determinante para o marginalizar da juventude. Eu próprio lembro‑me de achar incompreensível e inaceitável a proposta do partido que aconselhava a ir para a guerra para lutar contra… Tanto mais que, na altura, por volta de 1965, eu estava dentro da instituição militar e via a impossibilidade prática de aplicar essa proposta. É curioso que alguém como o Lobo Antunes acabou por fazer suas estas parvoíces. No seu livro Os cus de Judas, o personagem, militar metido num buraco da selva angolana, refere a ideia segundo a qual “a revolução faz‑se cá dentro” (p.178 da edição francesa). No meio daquele horror ele tem umas dúvidas, o que não o impede de escarrar contra os que fugiam à guerra, uns sociais‑democratas que ia gozar a vida para os cafés de Paris e esperavam que o Zé Povinho fizesse o reviralho para depois regressarem e dar-lhe lições. Tanto para os fascistas como para o partido, e por razões diversas e opostas, os que fugiam à guerra, não “se portavam bem”. Isto para dizer que esta questão tornou‑se central na adesão ou não ao partido. A opção do exílio aparecia assim como alternativa, pois que aderir ao PC queria dizer também ir para a guerra. Mais tarde, a vossa dissidência também jogou um papel, mesmo para quem estava fora do partido como eu. Sabia‑se que havia desacordos, que havia comunistas que tinham saído. O que me parece estranho, e para voltar ao teu percurso, foi que te cooptaram para a direcção já depois dessa tua manifestação de desacordo e da censura do teu manifesto! Como explicas isso? Para utilizar a expressão do dirigente que citaste, tu não encostavas bem.

Eu na altura já estava na calha para ser chamado à direcção. O Cunhal, que me tinha conhecido em Peniche, tinha chegado à conclusão que eu podia ser um bom quadro. Não estava a encostar bem, é certo, mas são coisas de juventude. Talvez houvesse a ideia de que com a cooptação eu acabaria por entrar na onda e tomar as minhas responsabilidades. Fui cooptado numa reunião em que nem estive presente. O Carlos Costa veio dizer-me, aí por Abril de 1961: “Olha, já estás no comité central”. Membro suplente. Hoje isto dá para rir, mas era assim que funcionava o partido na clandestinidade…

O que é facto é que esta pequena luta para forçar o partido a tomar posição sobre a guerra colonial me deu um grande empurrão. Só depois o senti. Foi na altura que comecei a sentir‑me distanciado de todas aquelas pessoas que eu venerava e nas quais tinha uma total confiança. Percebi que politicamente éramos pessoas diferentes, que falávamos de coisas diferentes.

Mas gostava de voltar ao assalto ao quartel de Beja, que mencionaste antes, e que também teve um papel na minha evolução. O Varela Gomes, que tinha sido candidato às eleições legislativas (fantoches) de Novembro de 1961, tinha um discurso muito inflamado que chamava as atenções dos trabalhadores, uma linguagem muito nova que reacendeu o espírito da campanha do Delgado. Muitos militantes do partido diziam que ele tinha razão, que se tinha chegado a um momento em que era preciso fazer outra coisa contra a ditadura, que se tinha de avançar para uma acção violenta. Quando me pediram a posição do partido quanto à participação no golpe em preparação, eu transmiti convictamente a posição do partido: que aquilo era uma aventura, que só iria desgastar forças. Desde a prisão eu tinha dúvidas mas continuava a fazer passar a linha oficial. Nem me passava pela cabeça não a defender ! Era uma questão de fidelidade ao partido. A minha evolução política não estava ainda numa fase de me opor a linha oficial. Sobre o caso de Beja lembro‑me que tive discussões acesas com alguns militantes que não convenci e que acabaram alguns deles por participar na acção. Com o recuo do tempo, penso que a lógica daqueles militantes que argumentavam com convicção me influenciou muito.

Nestas condições vou portanto para membro suplente do comité central. Só participei numa reunião, no Verão de 1961. Que as havia poucas vezes, lá de seis em seis meses, uma parte dos membros do comité estava na prisão, outros no estrangeiro. Nessa reunião ainda tentei levantar alguns do meus problemas políticos mas a agenda estava sobrecarregada, e fizeram‑me perceber que os problemas tinham que esperar… Entretanto, no fim de 1961, a PIDE faz uma razia sobre os principais quadros do comité central. Foram presos o Américo de Sousa, o Pires Jorge, o Octávio Pato, o que provoca um grande desastre na direcção. Faz‑se uma reorganização precipitada dos organismos dirigentes e no princípio de 1962 eu sou avisado que tenho de ir para a comissão executiva do comité central que era composta de três pessoas. A justificação que me deu o Dias Lourenço foi a de sempre, “os camaradas acharam que…”. Eu protestei que não estava em condições, etc. Retorquiram‑me que não me preocupasse, que os “camaradas” me apoiariam, que tinha que ser. Estive nessa função um ano, junto com o Blanqui Teixeira e o Alexandre Castanheira. Fiquei ainda mais isolado de tudo, visto que o tempo era de recuo da direcção para evitar mais desastres. A defesa dessa estrutura vital para o partido obrigava a umas regras estritas de clandestinidade. Quanto mais subia no partido, mais me afastava da realidade… Mas comecei a levantar cada vez com mais insistência as minhas críticas à linha sobre o derrubamento do fascismo e as perspectivas, as alianças de classe, a questão da guerra colonial. A isto veio somar-se a crítica que o PC da China tinha começado a lançar contra os soviéticos e a linha do movimento comunista. Na clandestinidade quase nada se sabia, mas foi por esta altura que comecei a ouvir a rádio Pequim. Foi o rastilho que incendiou a pólvora. Enviei uma série de cartas dirigidas ao comité central, nunca soube quem a elas teve acesso. Finalmente obtive que se organizasse um debate de um dia, onde não se chegou a nenhum acordo, evidentemente. Isto entre as três pessoas do comité executivo. Disseram‑me que as minhas divergências e desacordos eram muito enraizadas e que eu tinha de as discutir com o camarada Cunhal. O Cunhal é que tinha a resposta. Para Agosto de 1963, foi combinada uma reunião do comité central em Moscovo e alguém da comissão executiva devia ir do país para informar sobre a actividade no interior. E escolheram‑me a mim. Assim aproveitava‑se para que Cunhal me esclarecesse sobre as minhas dúvidas…

No Verão de 1963, lá vou eu para Moscovo, com mais dois funcionários. Fomos levados pelo aparelho clandestino, passei a fronteira em Trás‑os‑Montes com um passador que trabalhava para o partido, do outro lado uns militantes legais conduziram‑nos de carro até França. De França fui até Praga e depois segui para Moscovo.

Na reunião de Moscovo deram‑me um tempo para eu expor os meus pontos de vista. Fiz uma crítica um pouco violenta ao Cunhal. Ele ficou chocado e os outros também. Creio que o que lhes doeu mais foi eu apoiar as críticas dos chineses, que eram vistas como um insulto para os camaradas soviéticos. Isto para lá dos nossos problemas internos, que já eram muitos. Eles decidiram que os meus argumentos eram esquerdistas, influenciados pelos chineses, que eu não tinha condições para continuar no comité executivo do partido e que havia o perigo que eu começasse a fazer trabalho de fracção e que, portanto, eu não deveria voltar a Portugal. A melhor solução era que ficasse no exterior. Alguns propuseram mesmo que ficasse em Moscovo, como secretário do Cunhal, que estava cheio de trabalho. O Cunhal, claro está, recusou, e felizmente…

– Foi a última coisa simpática que ele fez por ti…

Protestou logo : “Então o camarada está aqui a acusar‑me de oportunista e vou ficar a trabalhar com ele? Ninguém fica à vontade, não pode ser!” . E mandaram‑me para Paris. Mas antes disso, para me tirarem as teias de aranha e as confusões, resolveram oferecer‑me um passeio de dois meses na União Soviética, para que eu pudesse ver as grandes obras do comunismo. Fui à Georgia, mostraram‑me a barragem Volga-Don, depois Leninegrado, fui recebido em reuniões do partido. Sempre acompanhado pelo Chico Miguel, o meu “tutor”. O pobre estava já inteiramente convertido às teses do Cunhal e vivia em Moscovo. O Cunhal veio uma ou duas vezes ao hotel dos aparatchiks onde eu estava mas recusou terminantemente a minha tentativa de reabrir o debate: “Já discutimos colectivamente o que tínhamos a discutir, aqui não é local indicado, etc.”. Foi o fim. Assim que cheguei a Paris, abandonei o partido. Saí pela esquerda, nunca tive motivo para me arrepender.

[23 Outubro 1999].

[Outubro 2000]

[1] Tinhas um erro, davas-me dez anos mais do que eu tinha. Subdividi a resposta: primeiro, os anos trinta, depois os anos quarenta.

[2] A redacção que tu tinhas, “eram considerados até como mais duros que o sistema salazarista”, parece que põe em dúvida que o fossem.

[3] Quando escreves “tinha-me ficado a ideia de que uma só força se apresentava como alternativa”, dás a entender que hoje eu não pensaria o mesmo, mas penso. Por isso corrigi.

[4] Mais uma vez corrigi porque a redacção que estava dava a entender que eu hoje não concordaria com essa campanha, o que não é o caso.

[5] Suprimi a expressão o “proletariado preso”, que não é minha e com que não concordo, porque sugere a ideia de que os presos do partido eram privilegiados.

[6] Não concordo e não gosto nada desta sugestão que metes de que haveria uma aliança táctica entre presos e carcereiros para manter o regime prisional como era.


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