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democracia1Brasil - Le Monde Diplomatique - [Lincoln Secco] Confira a seguir os artigos da segunda etapa da série especial “Em defesa de direitos conquistados”, idealizada pelo Le Monde Diplomatique Brasil em parceria com o coletivo de mesmo nome organizado por um grupo de professores e pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


Em meio às manifestações pelo golpe de Estado iniciadas logo após o início do quarto mandato presidencial do PT em 2015, uma charge de Laerte exibia um homem de terno, infantil. Ele aprendia a andar numa bicicleta cujo desenho emulava a palavra “Golpe”. De mãos levantadas, dizia: “Olha, mãe! Sem os militares...”.

A ironia desvelava muitos sentidos: o aprendizado tardio do que não se fez na infância (afinal, nenhuma criança pode ser chamada de “infantil”); as críticas irracionais às ciclovias instaladas pela administração municipal do PT em São Paulo; as mudanças de forma do golpe de Estado na América Latina...

A maioria dos manifestantes de 2016 já não acredita verdadeiramente em Deus, pátria e família. As igrejas são muitas, a pátria só de chuteiras e seus cartazes na avenida são escritos em inglês. Desapareceu, ao menos por enquanto, a componente militar. E a família? Bem, ela não é mais a mesma!

Bastam agora a idealização de juízes formados no ódio à política e a disseminação da desinformação midiática. Os meios de comunicação funcionam assim como uma grande selfie para os que saem aos domingos e desfilam seus ressentimentos. É a journée des dupes.1E dela a direita tenta se apossar.

Direita, volver

Por formação teórica, a direita latino-americana oscila entre sua formação liberal e as recaídas autoritárias; por sua constituição social, teme qualquer ascensão dos pobres; e, por sua prática política, é sempre oligárquica.

No caso brasileiro ficou evidente que a incapacidade de vencer nas urnas fez que a direita convencional se visse ultrapassada pela direita moderna, capaz de usar redes sociais e distorcer as formas da esquerda. Assim, o MBL copia o MPL. Sua independência de siglas partidárias lhe permite a audácia das ruas. Como sua existência é virtual, até seu nome pode ser “revoltados on line”. Sua organização não é presencial, suas demandas não podem ser reais. Seu Leitmotiv não é posto de saúde, a creche do bairro ou o desemprego, mas uma abstração. Qual?

Corrupção

Problema secular no Brasil, a arte de furtar o bem público sempre foi tema mais dos textos jornalísticos de opositores do que de protestos públicos. Mesmo sob o discurso “ético” do PT em suas campanhas eleitorais, isso jamais mobilizou seus comícios nos anos 1980. A única campanha maciça contra a corrupção depois da democratização foi ironicamente a de outro impeachment, em 1992.

No governo, o PT enfrentou na crise política de 2005 antes um ataque midiático e parlamentar do que manifestações de rua. Isso mudou depois de 2013 não só porque a crise econômica e as mudanças na estrutura de classes se combinaram. Há também uma razão ideológica, que é estrutural.

A corrupção é um mal visível, especialmente a de governos de que a imprensa desgosta. Mas ela é inerente ao capitalismo tanto quanto o lucro. Obviamente nenhuma elite estabelecida questiona a “mais-valia”. Assim, os problemas sociais precisam ser derivados do nível de tributação do excedente econômico, da disputa do orçamento público, o que não significa tolerar o desvio de recursos públicos. Só que este não é uma anomalia, o ponto fora da curva de um capitalismo civilizado, momentaneamente turvado por corruptos e “populistas” de esquerda.

Acontece que os setores médios se julgam mais informados pela leitura de best-sellers sobre história do Brasil e por meio de telejornais e sites tendenciosos. Todavia, são deformados pela ausência de tradição organizativa e incapacidade de agir como classe.

Para eles, a corrupção deixa de ser um acontecimento concreto a ser apurado e condenado para se tornar uma abstração: o mal absoluto. Eles não podem desvendá-lo porque se o fizessem muitas pessoas sinceramente indignadas com a malversação de dinheiro público se veriam a si mesmas no papel do sonegador de impostos, do fornecedor de propinas, do contraventor, do pequeno traficante...

A indignação seletiva não se dirige contra a corrupção, e sim contra um partido, no sentido alargado do termo. Antes o comunismo, hoje o PT é só uma sinédoque. O homem médio, seja promotor ou juiz, não pensaria em engrossar uma passeata contra o governo do estado de São Paulo, afundado há decênios num lodo de suspeitas de corrupção.

Diante de uma indignação crescente e distorcida, o governo federal não imaginou que era preciso dar uma resposta ao tema da corrupção, expondo suas entranhas. O PT propôs tardiamente o financiamento público da política. Entretanto, manteve em sua campanha de 2014 o mesmo modus operandi que já havia levado dois presidentes do partido e vários dirigentes às barras dos tribunais.

Ao mesmo tempo, não confrontou um partido informal e policialesco que se formava no interior do próprio governo e do Judiciário. Prezou a autonomia de quem tomava partido dentro das instituições. Preso em seu republicanismo celestial, foi tragado pela terra movediça da pequena política. Quis ser republicano na planície em vez de sê-lo no Planalto. Devia ter sido antes socialista nas ruas.

Rumo ao impedimento

Em 2014, o governo, como sempre, fez seu discurso de esquerda no segundo turno e imaginou que voltaria em seguida ao pacto com as classes dominantes. Mas, dessa vez, com o fim do “ciclo das commodities”, os interesses de classes distintos não couberam num mesmo orçamento público.

No dia 15 de março de 2015, de acordo com o Instituto Datafolha, 210 mil pessoas saíram às ruas em São Paulo pela derrubada da presidenta Dilma Rousseff. Se o número caiu depois, no dia 13 de março do ano seguinte os manifestantes voltaram em dobro para parar o país de novo num... domingo. Atomizada em seu cotidiano, a classe média exibiu sua unidade, embora não uma união. Facilitou-o o mês de março, quando a declaração de imposto de renda unifica o ódio ao governo e aos seus gastos sociais.

Hipóteses

Vimos a natureza ideológica daquelas marchas insensatas. Seria exaustivo agora citar as inúmeras pesquisas sobre sua base social.2 Para entender sua dinâmica, sugiro três hipóteses.

A primeira é que as camadas médias urbanas desenvolveram historicamente características como a mobilização imediatista, organizações passageiras e desconforto perene com qualquer ascensão social dos trabalhadores.3

A segunda é que elas adquirem importância não por sua organização própria, mas como efeito demonstrativo de força social de outras classes. Elas não são capazes de formular um projeto político para si mesmas. Naturalmente, as “ideias” que defendem contrariam seus interesses materiais. Daí o discurso vazio, o baixo calão como única expressão em suas palavras de ordem e as noções infantilizadas sobre o Estado, a sociedade e a política.

A terceira é que, ao se mobilizarem, elas criaram como seu contrário a busca de conciliação permanente da esquerda governista, e não uma resposta mobilizadora. Trata-se de uma característica “estrutural” da esquerda institucional. Em 1950, Getúlio Vargas tinha formado o “ministério reacionário” que devia sustentar o “governo popular”. O resultado é que a esquerda se tornou pragmática e a direita, ideológica. Inversão de papéis?

Nem tanto. A recaída no extremo é mais sedutora para quem está na oposição. Mas a verdadeira inversão é outra: enquanto a extrema direita se impõe pelo baixo nível teórico e vulgariza os valores liberais da direita conservadora, na esquerda acontece o oposto. O reformismo empobrece a teoria na proporção de seu sucesso eleitoral, e é uma parte da extrema esquerda quem retoma a raiz crítica do pensamento radical.

Se a direita açodada saiu do armário, as jornadas de junho, as ocupações de escolas e o levante antifascista espontâneo de março e abril de 2016 mostraram para o Brasil inteiro que os golpes agora têm um custo político alto e os que, depois disso, persistirem em tenebrosas transações com a direita ficarão para trás.

A ausência de conflito não educa ninguém para conviver numa esfera pública de valores pluralistas. É por isso que um fascista tece seus comentários ao seu lado na fila do supermercado com a naturalidade de quem acredita que todos compartilham seus preconceitos. Para ele não existem contradições, apenas um punhado de pessoas malévolas: os anarquistas, os comunistas, os petistas... Preparem-se, jovens autonomistas.

Em tempo: o título deste artigo evidentemente evoca outra marcha, não menos ridícula: la Marcia su Roma. 


Lincoln Secco é Professor de História Contemporanêa na Universidade de São Paulo e autor do livro História do PT (Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2011)


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