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170416 albVenezuela - Brasil de Fato - Andrés Santillano explica como a burguesia da Venezuela explora fragilidades do modelo econômico bolivariano


A Venezuela está passando por uma grave crise política e econômica, que coloca em risco as transformações causadas pelo projeto político da Revolução Bolivariana. No âmbito econômico, a enorme dependência da renda petroleira fez com que, com queda do preço do barril do petróleo nos últimos anos (de US$ 115 para US$ 30), o país enfrentasse uma grave falta de recursos. A isso soma-se o boicote dos setores empresarias responsáveis pelas importações, que estão gerando um grave desabastecimento de produtos básicos nos mercados, como alimentos e produtos e higiene pessoal.

Na política, a oposição volta a ter força, explicitada no processo eleitoral da Assembleia Legislativa em dezembro do ano passado, quando alcançou 64% dos resultados eleitorais. Agora, no mês de abril, os mesmos opositores pretendem realizar um referendo revogatório para tirar o presidente venezuelano Nicolás Maduro do poder.

Para compreender essa conjuntura complexa, o Brasil de Fato entrevistou Andrés Santillano, do movimento social Pobladores, uma das principais organizações sociais do país. Para ele, a derrota do modelo neoliberal na Venezuela “não foi suficiente para que o país passasse a uma ordem pós-capitalista”. E foi isso que fez com que a burguesia interna fosse derrotada taticamente, mas não estrategicamente. Assim, ela conseguiu se reacomodar em um “novo equilíbrio de forças”.

Para Santillano, todos os cenários estão em aberto, e a única saída popular para a crise política e econômica seria o aprofundamento do processo revolucionário. Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato - Após mais de uma década de ascensão das forças populares na Venezuela, percebemos agora uma grande contraofensiva da direita, que vem tendo êxitos, como a vitória eleitoral na Assembleia Legislativa no final do ano passado. O que explica essa reviravolta?

Andrés Santillano - O resultado eleitoral de 6 de dezembro [de 2015] é um sintoma que não é exclusivo da Venezuela. É um desafio enfrentado por todos os países que passam por mudanças em relação ao projeto pós-neoliberal no continente. A situação é muito parecida na Argentina, no Brasil, na Bolívia, e nos outros países que buscam projetos diferentes à hegemonia neoliberal.

Por um lado, isso aponta a recuperação da ofensiva por parte da direita ligada ao imperialismo, que busca se submeter à Aliança do Pacífico [bloco comercial formado por Chile, Colômbia, México, Peru e Costa Rica, e está alinhado à Parceria Trans-Pacífica, lançada no ano passado sob a liderança dos Estados Unidos), isolar os países da Alba [Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América, formada por Venezuela, Cuba, Bolívia, Nicarágua, Dominica, Equador, Antigua e Barburda e São Vicente e Granadinas] e boicotar o Mercosul [bloco econômico formado por Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela]. São intervenções muito bem pensdas e ocorrem de diferentes maneiras em cada país, criando um cerco econômico e midiático baseado na sabotagem política e no isolamento internacional.

Ao mesmo tempo, isso ocorre por causa das próprias debilidades desses processos nacionais-populares. Encaramos um esgotamento desses projetos progressistas e sua incapacidade de superar o lastro do capital e de propor um cenário alternativo, que seja realmente emancipador e que não tenha a possibilidade de volta.

E a Venezuela também não conseguiu romper com o modelo capitalista?

O que se passou na Venezuela nos últimos 15 anos foi uma vitória tática frente ao neoliberalismo. Os governos nacionais populares permitiram a superação do neoliberalismo com a recuperação do papel do Estado, a regulação da economia, com mecanismos de redistribuição de renda, a recuperação das indústrias básicas e o desenvolvimento de formas alternativas de participação popular. Mas a derrota do neoliberalismo não foi suficiente para que a Venezuela passasse a uma ordem pós-capitalista.

Recordo-me de uma frase do Mao [TseTung] que dizia: “Para onde vão os burgueses durante um processo revolucionário? Desaparecem, se extiguem? Não, se metem no Partido Comunista”. E foi isso o que aconteceu: a burguesia se reacomodou em um novo equilíbrio de forças. Foi derrotada taticamente, mas não estrategicamente, e manteve importantes cotas de poder tanto na economia quanto na política.

Por isso, é muito sábia a análise de Chávez em 2004, quando ele entende as limitações do projeto nacional-popular e declara a necessidade de um passo adiante, assumindo o socialismo como bandeira e convertendo o projeto pós-neoliberal em um projeto pós-capitalista.

Esse é um dos elementos que explica essa tarefa inconclusa do avanço ao socialismo, a derrota tática da burguesia e a vulnerabilidade e o esgotamento deste processo. Na Venezuela, recupera-se o modelo rentista, extrativista e desenvolvimentista, que não é outra coisa senão uma nova cara do capital.

Deixar intacta essa força do capital implicou em uma crise econômica, política e social que se expressa nos resultados eleitorais de 6 de dezembro [do ano passado] e na situação econômica caracterizada pelo desabastecimento e pelo encarecimento dos produtos básicos, além de outras estratégias que a direita colocou em prática com absoluto êxito.

E a burguesia interna se readequou em quais setores da economia?

Em 2002, começou um processo de renacionalização da empresa petroleira. A Venezuela não rompeu com a dependência da renda petroleira, mas, naquele ano, a renda que antes era internacionalizada e controlada pela burguesia nacional (aliada ao capital transnacional) passa a ser nacionalizada e a contribuir com os programas de distribuição de renda.

Porém, o capital que controlava a indústria petroleira se reacomodou em outras esferas da atividade econômica, sobretudo nos setores financeiro, comercial, de importação e de distribuição. Esses setores ficaram encarregados de asfixiar a revolução bolivariana. Um dado que fala por si mesmo é que, durante esses anos, o setor que mais cresceu economicamente foi o financeiro.

Ou seja, a revolução conseguiu tirar milhões de venezuelanos da miséria, mas também ajudou a enriquecer as oligarquias financeiras. Não se desenvolveu, por exemplo, um setor econômico sob um domínio popular. Nunca houve o incentivo necessário para que os setores comunais fossem capazes de competir com a economia privada e com a economia estatal.

Essas contradições somadas às contradições políticas, como o superdimensionamento do Estado, que gerou algumas tentativas de cooptação da participação popular, foram o que conduziram à atual crise.

O que se esgotou não foi o socialismo, que ainda segue sendo um desafio, mas o capitalismo em sua versão rentista, desenvolvimentista e extrativista. A persistência do capital em áreas fundamentais da economia e o fato de não se avançar sobre novas economias e organizações políticas contribuíram com a crise que atualmente enfrentamos.

O que explica o alto grau de desabastecimento dos produtos básicos na Venezuela?

A Venezuela sempre teve uma profunda dependência das importações para o abastecimento interno. A renda petroleira fez com que fosse mais econômico comprar de fora do que produzir esses produtos aqui. A burguesia venezuelana atua como toda a burguesia, ou seja, de forma muito pragmática e portanto, pouco nacionalista,

Para ela, sempre foi muito mais rentável importar do que produzir localmente. Nossa dependência do mercado internacional de produtos fundamentais para a vida tem sido um quadro histórico, que não se transformou nos últimos anos, apesar das intenções do Governo de criar condições favoráveis para que a burguesia produzisse internamente.

A diferença cambial faz com que as importações sejam muito baratas. Com isso, o capital privado importa mercadorias com o dinheiro do Estado, mas não as coloca no mercado formal, desviando-as para o mercado informal e para o contrabando.

Na verdade, o que existe é um falso desabastecimento, porque não há nada que pudesse atrapalhar os negócios e as cadeias de distribuição. No entanto, no mercado informal ou em países vizinhos, você consegue todos os produtos.

Com a diferença de câmbio, o empresário adquire qualquer produto por um décimo do que ele consegue vender em outro país. Chega-se à grande ironia de uma empresa poder importar sapatos da Colômbia a dólar regulado, voltar à Colômbia e os revender muito mais baratos do que custariam, e ainda obter lucros exorbitantes. Eles importam e depois desviam as mercadorias para o mercado negro, e isso gera um lucro que não seria possível alcançar se produzissem no país.

Ou seja, foram criadas condições que favoreceram uma acumulação de capital criminosa. A burguesia venezuelana está acostumada a isso. A corrupção, mais do que um problema moral, é funcional ao desenvolvimento da burguesia venezuelana.

É possível concluir que um dos erros deste processo foi não ter desenvolvido um parque industrial?

Há erros que foram imperdoáveis e que são muito recentes. Erros de cálculo e de análise. Desde 2004, assume-se a tese de desenvolver uma economia industrial própria, uma certa substituição das importações, mas por meio da burguesia nacional. Para isso, foram geradas linhas de crédito em condições favoráveis para a inversão de capital e para o desenvolvimento da burguesia nacional. No entanto, a resposta foi uma fuga massiva de capital.

Agora, a direita argumenta que a situação econômica se deve ao fato de os empresários, que são os que produzem, não terem sido respeitados. Isso é uma grande mentira. Eles tiveram todas as condições para produzirem. O fato é que os empresários venezuelanos nunca produziram nada no país. A burguesia venezuelana nunca foi uma burguesia nacionalista, sempre foi uma burguesia absolutamente parasita.

O que fizeram foi se valer do dólar barato para alimentar o mercado negro e se capitalizar jogando com a especulação cambial. Com isso, criou-se o grande diferencial entre o dólar controlado pelo Estado e o dólar no mercado negro, que chega a superar 1000%.

O Estado acabou transferido dinheiro à burguesia. As experiências comunitárias de produção não tiveram o mesmo tratamento, e seguem sendo marginais na totalidade da economia da Venezuela.

No âmbito político, a oposição parece tentar de todas as maneiras voltar ao poder. Recentemente, anunciaram que irão propor o referendo revogatório do presidente Nicolás Maduro, que deve acontecer agora em abril. Como você analisa este cenário?

A burguesia conquistou o controle efetivo da economia. Agora, a burguesia está disposta a ter o controle político e desmantelar o conjunto das políticas sociais, que são um freio aos seus interesses.

Assim, a burguesia está tentando derrubar o governo revolucionário e instalar um governo que seja de seu agrado. Todos os cenários estão abertos neste momento, seja pela via constitucional, que na verdade são golpes encobertos, seja pela via da conspiração aberta.

E como o povo está se posicionando neste contexto?

Isso tem mais a ver com a falta de uma clareza política, um déficit que está muito vinculado à ausência de Hugo Chávez. Em outros momentos, o povo tinha maior clareza de que tinha que buscar uma superação da lógica capitalista para termos uma sociedade mais igualitária.

Não é simplesmente a fila [nos supermecados] que causa mal estar nas pessoas. Penso que é puramente um problema da política. Já vivemos situações parecidas como essa. Durante o golpe de 2002, tentaram liquidar com a revolução colocando a população em grandes dificuldades. Não havia nenhum produto. Haviam filas gigantescas como essas, mas havia também uma clara vocação de poder e uma grande liderança que permitiu que as pessoas permanecessem firmes e buscassem superar essa situação.

Sem dúvida, esta crise é mais prolongada, mas o que falta, sobretudo, é uma direção política, que vai além do presidente Nicolás Maduro. Há um conjunto de forças contraditórias no Governo que cercam as possibilidades de uma condução revolucionária.

De fato é uma situação muito dinâmica. O povo se caracteriza por ter muita paciência, mas agora está explodindo. Acredito que o povo é o terceiro ator que pode criar uma mudança importante nesta conjuntura. Todos os cenários estão em abertos.

E quais seriam as saídas para as crises sob uma perspectiva dos movimentos populares?

Esta não é a primeira vez que temos uma correlação de forças desfavorável. Em momentos de crise, Chávez sempre olhava adiante. Ele buscava uma solução pela esquerda, e é disso que precisamos agora. No caso da Venezuela, um processo de radicalização não passa pelo pacto nem por concessões ao capital, que é absolutamente oportunista e traidor. Toda negociação com o capital significará um aprofundamento da crise.

Neste cenário, temos que olhar adiante. Devemos entregar os meios de produção ao povo para que ele possa tomar as fábricas e as terras. Temos que colocar para funcionar as fábricas que estão paradas propositalmente para desestabilizar o Governo e para encarecer os produtos. Isso pressupõe que o povo tenha de fato os meios de produção em suas mãos.

O Governo deveria propor uma radicalização do processo revolucionário. Sem dúvida, é uma situação muito complexa, porque pressupõe a necessidade de uma liderança clara que convoque o povo a se mobilizar e a aprofundar a revolução.

Mas o cenário não está desfavorável para essa radicalização?

O que diria a racionalidade econômica e política neste momento? Temos 60% de votação contrária, há uma situação de crise econômica generalizada e uma direção política que não tem rumo. Ou seja, não teria mais nada a fazer a não ser negociar com a direita. Essa tese pode ser válida a partir de uma racionalidade pragmática, que pouco tem a ver com os interesses do povo.

Frente à essa ideia, acredito que temos que tentar o que Chávez fez. Tenho confiança na reserva revolucionária desse governo para liderar uma convocatória e aprofundar a revolução.

Continua sendo um governo comprometido com os pobres, ainda que seja um governo sem horizontes estratégicos e sem um plano econômico claro. Isso é uma grande vantagem e uma grande tragédia: porque é um governo que ainda está comprometido com os pobres, que decidiu postergar decisões da racionalidade política justamente para não afetar os setores populares, mas que, ao mesmo tempo, não tem um programa alternativo que lhe permita acabar com a crise.

Segue sendo um governo tímido para tomar medidas que representem os setores populares. Isso significa que, se não há uma saída pela esquerda, tão pouco haverá uma saída para os interesses do capital, o que cria uma situação instável que favorece a conspiração.

Eu vejo o Maduro como uma pessoa que está na corda frouxa sem rede de proteção em baixo, mas que decide manter uma posição e princípios, sem saber muito bem para onde ir.

Quais seriam os principais desafios, então?

Mais do que nunca, está em vigência as teses do internacionalismo popular e revolucionário a partir dos de baixo. Os governos nacionais-populares e desenvolvimentistas tiveram sérias dificuldades e limitações em relação a projetos emancipatórios. Um saldo negativo desses últimos anos é que a efervecência popular que acompanhou este processo desde o princípio passou a um lugar de retaguarda e de passividade.

A única esperança nos processos de transformação pós-capitalista está nos povos, não mais nos grandes líderes ou nos governos. E essas lutas não podem mais ficar isoladas; é preciso que as lutas dos povos da América Latina estejam articuladas. Assim como essa articulação foi crucial para derrotar a Alca [Área de Livre Comércio das Américas, lançada pelos Estados Unidos em 1994], este momento mostra que a luta conjunta entre os povos é uma tarefa inadiável.

Edição: Camila Rodrigues da Silva


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