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Miguel Urbano Rodrigues

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Em coluna

Meditação sem fronteiras

Miguel Urbano Rodrigues - Publicado: Quarta, 10 Fevereiro 2016 17:40

Há dois anos comecei a ler o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa.


Retomei-a agora, em vésperas de outro Natal. Durante três semanas dediquei diariamente algumas horas ao livro, sobretudo à noite. Chegar à página 100 não foi fácil. Não recordo lentidão comparável na leitura de qualquer livro, excetuado O Capital de Marx.

Pessoa fascina-me e cansa-me. Leio por dever.

Ao teimar na leitura tomo consciência de que o cansaço que ela provoca é compensado pela meditação que desencadeia.

Perco-me a cada página no esforço para compreender. Raramente consigo, mas insisto. Porquê?

Zenith informa que o Livro do Desassossego, por ele editado e reeditado*, é uma soma de textos que Pessoa escreveu ao longo de duas décadas em «papel timbrado de escritórios onde trabalhava ou dos cafés que frequentava, papel almaço, folhas soltas, envelopes, papel arrancado a agendas ou cadernos, cartões, folhas impressas com anúncios ou outros textos - a qualquer hora e em qualquer lugar».

Como editor reuniu e ordenou todo esse material no livro que o autor pensava (?) publicar, mas não publicou.

A transcrição acima, extraída do prefácio de abertura dá uma ideia da colossal desarrumação e desassossego do escritor.

«Acontece – escreve Zenith – que a mais deslumbrante obra em prosa de Fernando Pessoa, uma obra que perdurará como um dos monumentos literários do seculo XX, nasceu de uma palavra: desassossego».

O génio de Pessoa desemboca numa escrita caótica difícil de acompanhar por leitores como eu.

As primeiras dezenas de páginas, após o breve esclarecimento em que atribui o livro (futuro) a um ajudante de guarda-livros são desassossegadas, mas incluem trechos sobre paisagens de Lisboa e do quotidiano da cidade, alternando com estados de alma do guarda-livros semi-heterónimo, primeiro Victor Guedes e, anos depois, Bernardo Soares, também guarda-livros numa empresa da rua dos Douradores.

Avançando na leitura, percebi que o livro evoluía para um diário íntimo «não de coisas vistas e feitas – lembra Zenith – mas de coisas pensadas e sentidas, as Confissões do autor, autobiografia sem factos». Ele «gravava a alma no papel».

Não conheço outro escritor em cuja escrita o sonho intervenha, onipresente, em avalanche, como nestas Confissões de Pessoa, muito mais profundas do que as de Jean Jacques Rousseau, que ingénuo, admitia ter ido a autobiografar-se mais longe do que outrem.

Essa insistência e a importância em Pessoa do seu mundo onírico e do estado de transição entre o sonho e o despertar lançaram-me numa incómoda viagem por dentro.

Sonho quase diariamente e, após o primeiro sono, entro num estado de torpor, de transição. Tenho a sensação de haver acordado, mas é enganadora, porque o tempo corre lento.

Pessoa diminuía-se, recorre com frequência no seu desassossego a palavras duras, quase injuriosas para se qualificar e rebaixar.

Amava os clássicos, relia-os, sobretudo Vieira, nos antípodas como escritor, mas era inseguro e a sua insegurança atormentava-o.

Na sua famosa arca deixou 25.000 papéis (na Africa do Sul encontraram recentemente uma caixa com uma montanha de inéditos do poeta) , mas em vida publicou um único livro, A Mensagem. A divulgação de poemas seus, sobretudo na Revista Orpheu fez dele, porém, um escritor admirado, inovador, diferente.

Temia a morte. Ora nega, ora sugere o contrário. Mas prestes a findar a sua breve passagem pela vida (47 anos), se alguém ousasse dizer-lhe que, transcorridos poucos anos, ganharia a imortalidade como escritor e seria colocado pela crítica mundial ao lado de Camões ou acima dele, chamaria louco e irresponsável ao autor da previsão.

Sabia-se diferente, tinha consciência do seu valor, mas uma insegurança inultrapassável acompanhou-o desde a adolescência.

REVIVENDO O NÃO VIVIDO

O desassossego de Pessoa atua sobre mim contra a minha vontade, força-me a viagens interiores que, em alguns dias (ou noites), são dolorosas.

Navego não apenas nos sonhos e em estados de transição que precedem o despertar. Também em viagens pelos arquivos da memória.

É um desfile de imagens. Recordo o que fui, o que fiz e não fiz e queria fazer. Painéis de vida há muito fechados reabrem-se e passeio por eles. Contemplo¬-me criticamente e o juízo é quase sempre desfavorável.

Demoro-me nos anos da infância no monte alentejano. Foram nove anos, mas, olhados dos 90, sinto terem sido lentos, cheios, um tempo de felicidade.

Era feliz na minha relação com as vacas, as mulas, os burros, os porcos, as ovelhas. Distinguia-os uns dos outros, conhecia os nomes da maioria.

A descoberta do vasto mundo imaginado principiou nesses anos quando montei uma burra pela primeira vez, quando aprendi a conduzir um carro de parelha e a varejar oliveiras.

Reinvento conversas, não mantidas, com os meus pais. Sofro na certeza de que as reais foram pobres, insuficientes. Lamento o muito que não foi dito. Ele era muito mais inteligente, mas ela era a personalidade dominante. O pensamento dele movia-se em planetas impenetráveis. Pelos anos adiante, nunca o interroguei sobre o seu quotidiano em Lisboa quando ali se instalou aos 17 anos, vindo de Moura. Nunca falámos sobre o que sentiu ao ser eleito deputado, com pouco mais de vinte anos. Sei que assumiu então a defesa de causas progressistas que depois abandonou. Nunca abriu a porta da sua amargura quando a ditadura militar fechou o jornal que dirigia. Detestou Salazar para depois o admirar.

Dói-me o seu silêncio sobre o choque recebido quando o capitão do navio em que o seu pai, meu avô, deveria chegar do Brasil o informou que ele tinha desaparecido durante a viagem.

Dói-me muito a atenção insuficiente prestada, na infância e adolescência, a meus filhos Miguel e Maria da Paz. Pouco contribui para que ambos se construíssem rumo àquilo que são hoje e de que me orgulho. Ao Sérgio, nascido dez anos depois da irmã, acompanhei muito na infância e na adolescência.

Dói-me não ter visitado mais meu irmão Urbano quando ele doente, diminuído, me aparecia como alguém diferente do homem que fora.

Desfilam-me em tropel pela memória perguntas que não fiz e deveria ter feito a meus pais.

E perguntas que não fiz e deveria ter feito a Fleurette, minha primeira companheira, sobre a sua saída para a Alemanha, com o marido, um fascista francês, acompanhando a retirada da Wehrmach, em l944.

E perguntas que não fiz e deveria ter feito a Zillah, minha segunda companheira, sobre os seus anos no Chile onde se exilou durante o governo da Unidade Popular.

A lembrança da minha passagem pela Faculdade de Direito quase se apagou. Respirei feliz, quando abandonei o curso que abominava.

Caminhando contra o calendário da vida, creio que somente ao cumprir o serviço militar rompi o cordão umbilical que me fazia apêndice da família. Foi na cavalaria, em Elvas, que tardiamente entrei na idade adulta.

Invade-me uma frustração magoada por não ter começado a escrever ficção e ensaios vinte ou trinta anos mais cedo.

É desassossegada a minha passagem pelo jornalismo. Fui jornalista durante meio seculo, mas acompanhou-me sempre um sentimento de incomodidade. A exceção foi ter trabalhado durante mais de dez anos com Álvaro Cunhal, gigante comunista.

Sei que a confissão do meu distanciamento afetivo do jornalismo fere amigos e será muito criticada. António Valdemar e Manuel Sá Marques, amigos queridos e admirados, sugeriram que eliminasse estes parágrafos sobre a minha relação com o jornalismo (e a referencia final à minha companheira), e adiasse a publicação do artigo. Considerei então a sua publicação num livro póstumo que preparo, mas, consultados os meus filhos e netos, e o historiador Luis Fraga, outro grande amigo que muito admiro, decidi divulgá-lo.

Entrei no Diário de Noticias como repórter, por favor, empurrado pelo meu pai. Para ficar na profissão e exercê-la, sem com ela me identificar, em Portugal, no Brasil e em Cuba.

O facilitismo do jornalismo, no meu caso, retardou a busca de uma linguagem diferente, de um estilo que somente na velhice tentei criar.

Como jornalista escrevi predominantemente sobre temas que a circunstância me impunha. Cumpri como militante comunista, mas, com poucas exceções, apenas longe de Portugal consegui escrever textos que, relidos mais tarde, apreciava.

Da permanência durante seis anos no Parlamento e nas Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental-UEO guardo memória de um tempo de mal-estar. Somente nas viagens em serviço que me levavam à América, à Africa, a países ex-socialistas, à India e ao Médio Oriente – me reencontrava, em sossego, longe da atmosfera pesada do cretinismo parlamentar.

A palavra Deus surge com frequência na escrita de Pessoa. Mas para o recusar porque não era crente, embora atraído pelos mistérios do ocultismo e do espiritismo.

A religião nasce do medo da morte, e a relação desta com o poeta, complexa, era pagã. Não o angustiava.

A história das religiões fascinou-me desde menino, mas para refletir sobre as suas origens e os conflitos que desencadearam, sem que qualquer delas me atraísse. Quanto à morte não pensei muito nela, creio, antes dos 80 anos.

O sexo aparece raramente no desassossego de Pessoa. É tema quase ausente. O mesmo não acontece com o amor. Mas com a exceção de Ophélia Queirós não houve na sua vida aproximação ao amor.

Mesmo na segunda fase, mais prolongada, ele encarou o namoro com distanciamento. E em mais de uma centena de cartas que trocaram o que emerge para o leitor é uma relação doce, isenta de paixão, de desejo sexual.

Ao pôr-lhe fim, o poeta escreveu: «o amor passou...o meu destino pertence a outra lei cuja existência a Ophelinha ignora».

Que sentiu ela por Pessoa? Permitiu a publicação das cartas, mas sempre discreta, nunca abriu janelas para a compreensão do seu suave sentimento.

São muitas as referências do poeta à alma humana. Mas que era para ele a alma?

O Destino, com maiúscula, integra também o seu desassossego. Um Destino que o submete a tarefas que qualifica de humilhantes ou que o afunda no tédio.

Acreditaria no destino? Não esclarece a questão.

Amei intensamente, numa totalidade sem fronteiras, mulheres muito diferentes. Talvez por isso, é intransponível o muro que me separa da ideia e vivência do amor em Pessoa.

«Dos sonhadores do milénio -socialistas, anarquistas, humanitários de toda a espécie-tenho a náusea física, de estomago. Querem a superfície da vida por uma fatalidade de lixo, que boia à tona de água e se julga belo, porque as conchas dispersas boiam à tona de água também».

Pessoa, cujo pensamento estava aberto a todos os azimutes, nunca se interessou pelas ideologias. O parágrafo que transcrevo expressa bem a ambiguidade do seu posicionamento perante grandes questões do seu tempo.

Paradoxalmente, a filosofia, nomeadamente a metafisica, mereceu-lhe um interesse absorvente, identificável na sua obra.

Leio e releio páginas do Livro do Desassossego, fascinado mas fatigado, tamanho é o esforço exigido para tentar compreender, na certeza de não conseguir. Perco-me no labirinto criador da sua escrita, mais inextrincável do que o do Minotauro de Cnossos.

Sonhando, ou no torpor que anuncia o despertar, acabo sempre em meditação caótica sobre o que fiz e não fiz na travessia desassossegada de nove décadas de uma existência marcada por uma cadeia de frustrações.

Tocou-me uma felicidade não esperada quando envelhecia em Serpa. Amar e ser amado pela Ana Catarina.

Combati sempre como mítica a ideia do homem novo, surgida na União Soviética e retomada por Che Guevara.

A História demonstra que o homo sapiens pouco ou nada evoluiu desde as antigas civilizações do Mediterrâneo Oriental e da Mesopotâmia. N a sua capacidade de produzir coisas maravilhosas e de semear o mal e desencadear a violência é, no fundamental, o mesmo da época do Código de Hamurabi e da Menfis faraónica.

São raríssimas as exceções. Ana Catarina, a minha Katiuska, é uma delas, como aproximação da mulher nova.

Nota:

* Fernando Pessoa, Livro do desassossego, Assírio Alvim, 4ª edição, 477 páginas, Lisboa.


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