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030814 choroBrasil - Le Monde Diplomatique - [Marco Alexandre de Oliveira] Mas além, e apesar, do jogo político, econômico e social, podemos imaginar a Copa do Mundo como alegoria do cenário cultural, onde o drama humano realiza um espetáculo à parte, uma arte tanto teatral quanto cinematográfica, devido a presença de múltiplas câmeras que registram as imagens tão marcantes.


A frase se repetia nas mais diversas, embora relacionadas, situações: "Imagina na Copa!" Uma sentença que resumia todo um sentimento, de um fracasso antecipado, de uma tragédia anunciada, de um pessimismo generalizado no país do samba, futebol e Carnaval, que iria sediar a maior festa esportiva da Terra: a Copa do Mundo. 

Após enchentes, engarrafamentos, superfaturamento, greves, manifestações, arrastões, etc., se ouvia muito a frase "imagina na Copa" como uma crítica à desordem e ao atraso da nação cuja bandeira apresenta a mensagem de "Ordem e Progresso", um ideal que parece contradizer o real. Esse sentimento nacional, no entanto, se foi parcialmente compartilhado pela comunidade internacional, que percebia um certo mal-estar em jogo, não foi dividido nem pelo governo federal, nem pelas empresas multinacionais que patrocinaram o mundial e apostaram, como sempre, no seu "sucesso" e "legado". Pois apesar das várias preocupações e inúmeras reclamações, de que as coisas não estariam "funcionando" no Brasil, de que os brasileiros seriam "os piores organizadores" e de que a chamada “Copa das Copas” seria "o pior evento" da sua história, a FIFA não poderia senão acabar declarando que "A Copa do Mundo em 2014 foi de muito sucesso e certamente veremos um legado neste país".[1]

Qual, no final das contas, e após o apito final, será o "legado" desta Copa, não só para o Brasil, mas para o mundo? Foi um sucesso, ou foi um fracasso? Ou foi um sucesso na medida em que foi um fracasso, e vice-versa? Pois se, por um lado, "a Copa do Mundo da FIFA no Brasil apresentou uma mensagem muito especial – uma mensagem de união, conectando as pessoas, uma mensagem de paz e antidiscriminação”, por outro lado, esse mundial será igualmente marcado por divisão, alienação, violência e discriminação.[2]

Certamente haverá não apenas um, mas múltiplos legados, e serão necessariamente contraditórios. Haverá um legado econômico, o investimento dos R$ bilhões gastos em estádios e infraestrutura, o que resultou na Copa mais "cara" da história, seja pelo prejuízo previsto para os cofres públicos, seja pelo lucro destinado aos bolsos privados.[3]Haverá um legado político, a popularidade aumentada de uma presidente que no entanto foi vaiada e xingada repetidas vezes, tanto nos estádios quanto nas ruas, em ano de eleição. Haverá um legado social, a repressão de um Estado autoritário que viola os direitos humanos ao promover remoções de moradores, pacificações de pobres e prisões de ativistas em nome da segurança e do desenvolvimento. E, finalmente, haverá um legado cultural, um estilo de futebol derrotado, uma seleção de jogadores desvalorizados e uma população de torcedores decepcionados com a atuação irregular dos anfitriões, cuja evidente vergonha foi, de certo modo, superada por um inesperado orgulho nacional que se fez presente em quase todos os jogos e em quase todo o país, de forma vibrante e espetacular.

De fato, as pesquisas mostram que a maioria dos brasileiros, e dos estrangeiros, acabaram aprovando a Copa, que foi classificada como um "sucesso incrível".[4]Assim, a presidente Dilma pode, sim, estar “certa de que todos os que vieram ao Brasil, como os turistas e as delegações, levarão de volta as lembranças da nossa hospitalidade e alegria, e nós, brasileiros, também teremos memórias inesquecíveis”.[5]

Então, se o legado econômico será medido em números, o legado político em votos e o legado social em atos, o legado cultural da Copa do Mundo de 2014 terá que ser medido em imagens, seja na forma de "lembranças" e "memórias inesquecíveis", seja na forma de propagandas e fantasias inimagináveis que conquistaram o imaginário (inter)nacional.

Por falar em fantasias, no melhor espírito carnavalesco, imagine a Copa do Mundo de 2014 como alegoria do cenário global atual. Em campo estão seleções de jogadores que representam federações nacionais, através dos escudos e das cores nos uniformes, em jogos cujos resultados -- vitória, empate, derrota -- determinam a sua posição na hierarquia mundial. O grande prêmio para o campeão é um troféu de ouro, uma escultura emblemática de duas figuras humanas segurando o planeta, o que representa o domínio e a posse do título de "melhor do mundo". Para vencer, ou para não ser vencido, cada país investe no desenvolvimento dos seus potenciais, para ter vantagem sobre os seus oponentes. As partidas constituem uma competição bastante disputada, em que se espera um mínimo de "fair play", apesar de toda espécie de infração que faz (ou não) parte do jogo, que por sua vez é apitado por um juiz, representante da justiça, que assegura que os jogadores, e seus respectivos países, estão seguindo as regras e/ou as leis estabelecidas por uma organização internacional.

Se dentro de campo podemos imaginar uma alegoria do cenário político, fora de campo podemos imaginar uma alegoria dos cenários econômico e social. Como uma moldura, as placas dos patrocinadores, todas empresas multinacionais, cercam o campo e de certo modo enquadram o jogo, assim representando as forças econômicas que não só regem os países, mas criam as próprias condições de possibilidade para a realização da competição. Se as logomarcas não aparecem em campo estampadas nos uniformes, é para dar a ilusão de que o nacionalismo teria algum valor ideológico mais "caro" do que o capitalismo, mesmo quando todos os jogadores-trabalhadores são empregados contratados de clubes-empresas. Assim, cada seleção nacional tem o seu valor de mercado, soma dos valores dos seus jogadores enquanto recursos humanos, cuja utilidade e/ou produtividade é avaliada em estatísticas que servem tanto para o jogo em si quanto para os videogames.

E como se o jogo fosse público e não privado, os espectadores assistem aos eventos como consumidores, que por sua vez pagam caro pelos demais produtos e serviços que os tais "complexos esportivos" oferecem por preços inflacionados. Devido ao custo (sur)real dos ingressos, esses espectadores representam a elite da sociedade, e assim os ricos privilegiados se isolam dos pobres marginalizados e/ou excluídos, que tem que assistir aos jogos do lado de fora dos estádios, onde alguns bem intencionados (por crise de consciência?), embora mal preparados (por falta de inteligência?), entram em conflito com as forças do poder, que defendem o(s) jogo(s) com as suas palavras e armas duras. 

Mas além, e apesar, do jogo político, econômico e social, podemos imaginar a Copa do Mundo como alegoria do cenário cultural, onde o drama humano realiza um espetáculo à parte, uma arte tanto teatral quanto cinematográfica, devido a presença de múltiplas câmeras que registram as imagens tão marcantes quanto significativas. Assim, os estádios se tornam palcos e/ou cenários, os jogadores viram atores e/ou personagens e o jogo se transforma em trama e/ou história. Logo, as vitórias representam conquistas, as derrotas significam fracassos e os jogadores figuram como heróis e/ou vilões em seus respectivos jogos, sejam trágicos, cómicos ou simplesmente dramáticos. Eis o verdadeiro "futebol-arte", que transcende o jogo na medida em que é imanente do jogo. Quem diria que o político, econômico ou social determinasse o cultural não percebe que é justamente este campo que cria o sentido para tudo que está em jogo, através das imagens (res)guardadas no imaginário coletivo e fundamentalmente humano, que une jogador e espectador, dentro e fora do campo. 

Como, então, ver e/ou ler o "legado" da Copa do Mundo de 2014? Através das imagens, que não falam por si mas falam para nós, e que não dizem nada na medida em que dizem tudo. Dentro do campo, vimos um futebol praticamente ofensivo, com o maior número de gols da história da competição, apesar dos times serem tecnicamente mais defensivos. Vimos jogos bastante equilibrados, apesar das goleadas sofridas pelo ex-campeão e pelo anfitrião. Vimos a predominância da esportividade apesar das instâncias de barbaridade, como uma mordida no ombro e uma joelhada nas costas. Vimos o brilho da coletividade das equipes, apesar do apagão da individualidade dos astros. Fora de campo, vimos torcedores animados e coloridos trazendo as suas emoções variadas de alegria à tristeza, de euforia ao desespero, apesar das ofensas desmedidas e brigas violentas entre eventuais rivais. Vimos as danças coreografadas e ouvimos os cantos decorados das torcidas, às vezes mesmo após a música acabar, enquanto vimos a sua preocupação e ouvimos a sua decepção através dos gritos, das vaias e até do silêncio. Vimos sinais de apoio às seleções, na forma de bandeiras, camisas e mensagens de força, e de repúdio à FIFA e ao governo brasileiro. Vimos as cidades em festa e dando um "show de bola", apesar das confusões, como invasões, manifestações, agressões, etc.

Por serem instantes tão marcantes da Copa, estas imagens serão lembranças e/ou memórias "inesquecíveis", embora não se deve esquecer que foram, ao mesmo tempo, propagandas e/ou fantasias inimagináveis, por serem momentos manipulados ou até inventados pela mídia corporativa, que vende imagens ilusórias. Devemos, no entanto, virar este jogo, e re-imaginá-las como a "Copa das Copas" que não se apresentou, mas que se presenciou em 2014. Assim, poderíamos, então, imaginar uma outra Copa, um outro mundo e um outro Brasil, cujo "legado" seja essencialmente outro: um "sucesso" não para a FIFA, nem para o governo, mas para o povo. Para este fim, e para um final feliz ... imagina!

Notas:


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