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Paulo Marçaioli

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Batalha das Ideias

“Ateísmo e Revolta” – Paulo Jonas de Lima Piva

Paulo Marçaioli - Publicado: Sexta, 11 Dezembro 2015 00:40

Resenha do Livro - “Ateísmo e Revolta: os manuscritos do Padre Jean Meslier” – Paulo Jonas de Lima Piva – Ed. Alameda.


Quando pensamos no iluminismo certamente nos vêm à mente filósofos como Montesquieu com seu “O Espírito das Leis”, J. J. Rousseau e seu “Contrato Social”, os enciclopedistas como Diderot e D’alambert e o crítico aristocrata Voltaire, defensor incondicional da liberdade de expressão, o que lhe valeu em mais de uma ocasião a pena de prisão, em que pese sua condição de nobre.

Poucos devem ter ouvido falar do cura Jean Meslier, autor da famosa frase consignada pelos estudantes do maio de 1968 francês: “O homem só será livre quando o último rei ser enforcado pelas tripas do último padre”.

Jean Meslier foi um cura de uma pequena província francesa entre 1692 e 1729. Fazia parte do baixo clero francês e lidava cotidianamente com camponeses miseráveis, levando-se em consideração o contexto sócio-econômico da época. Vigorava-se então o Antigo Regime baseado no modo de produção feudal com a ampla penúria da esmagadora maioria da população pela fome e espoliação pelo tributo em pecúnia e em trabalho com a finalidade de sustentar as classes sociais que viviam do ócio, a nobreza e a Igreja. Ao longo de sua vida, Meslier revoltou-se com as condições sociais e iniquidades do povo, com a injusta desigualdade social e com a tirania do reinado absolutista de Luís XIV. Todavia, o cura de Étrépigny não poderia revoltar-se isoladamente desde sua longínqua província, caso contrário teria uma morte certa. Em vida, consta que apenas teve alguns atos de rebeldia, como recusar-se a celebrar uma missa a um senhor de terras particularmente injusto e perverso com os seus servos, o que lhe valeu uma dura reprimenda dos seus superiores. O fato é que a rebeldia do Padre Meslier não se reduziu às condições sociais e políticas, mas à religião e mesmo à existência de deus. Ateu, anticristão, apologista de tiranocidas, materialista/realista, o padre desenvolveu um verdadeiro ponto de vista filosófico que deveria ser apenas revelado após a sua morte, literalmente como um testamento.

Este estudo sobre Jean Meslier, de autoria de Paulo Jonas Piva, corresponde à tese de doutorado do filósofo brasileiro junto à Universidade de São Paulo. O intinerário da pesquisa parte de uma reflexão mais geral sobre ateísmo e revolta, para depois ir descendo lance a lance desde aspectos sobre as pesquisas acerca do cura Meslier até sua obra propriamente dita. Neste último ponto, digno de se tocar que Meslier foi inicialmente “decoberto” por Voltaire que teria modificado sensivelmente a obra do cura. Ocorre que obras como aquela, naquele contexto histórica, pertenciam a um gênero de manuscritos proibidos que circulavam clandestinamente e que, na certa, teriam sido modificados das versões originais.

As principais referências originais que temos em mãos são as “Memórias” de Meslier e as “Cartas aos Curas”, que têm um tom politicamente mais ameno. Outro dado importante é que os estudos mas específicos sobre Meslier em seu país natal datam dos anos 1960-70. Por outro lado, em 1950, a obra dos textos disponíveis de Meslier na URSS já estavam em sua 8ª edição. Do ponto de vista político, podemos situar Meslier como um adversário da propriedade privada e defensor de uma sociedade comunal baseada no trabalho. A intransigente defesa do padre junto aos camponeses e ao trabalho comunal, bem como sua crítica aos tiranos e à relação promíscua entre Igreja e Estado, fez com que em plena URSS fosse construída uma estátua do cura junto a Marx e Engels. Sobre este aspecto do pensamento de Meslier, coloca Paulo Jonas:

“O terceiro abuso de caráter político social consentido pelos cristãos – talvez o mais grave e primordial de todos – que Meslier denuncia com toda a veemência é a apropriação particular dos bens da natureza e das riquezas da terra, ou seja, a propriedade privada dos meios de produção. Para além da posse da terra deveria ser comum, todos os homens deveriam viver em torno do trabalho, repartindo fraternalmente os frutos deste, mas também os dissabores da vida em comunidade. Enfim, os camponeses deveriam viver como irmãos e irmãs, pacificamente, bem alimentados, bem vestidos e aquecidos, fazendo da sociedade uma grande e mesma família. Já a organização e a condução política dessa comunidade fundamentada na fraternidade e na união deveria ficar a cargo dos mais esclarecidos, dos mais sábios e dos mais bem intencionados no que concerne ao “bem público”, os quais, por suas virtudes, não exerceriam tiranicamente sobre os outros os seus poderes”.

Outros alvos da crítica do cura é a religião e especificamente o cristianismo. Neste ponto, é importante ressaltar como parte de suas cogitações estão bastante à frente do seu tempo, o que é particularmente importante considerando as condições em que viveu: isolado numa província distinta, sem acesso a livros e aos debates de ideias da capital Paris, sob a vigilância restrita dos superiores no contexto do Absolutismo e da censura. O Padre defende o fim da indissolubilidade do casamento de forma coerente com o seu pensamento materialista, considerando que casais podem não mais terem afinidade, ocasionando conflitos que repercutem especialmente nas crianças, realidade observada desde sua paróquia e constatada pela vontade individual. Quanto à Igreja, sua condição de padre provavelmente deve ter lhe causado grande sofrimento pessoal já que via em todo ritual das missas uma encenação de origem pagã a começar pela hóstia e vinho representando o corpo e sangue de cristo. Em suas memórias, a sua crítica à religião remonta à história da religião apontando incongruências e contradições:

“É nessa direção, portanto, que o pregador ateu e anticristo de Etrépigny procura reconstruir sucintamente a história do cristianismo valendo-se das declarações de historiadores e literatos célebres como Tácito e Luciano, entre outros. Para Luciano, por exemplo, os cristão seriam uns miseráveis que desprezam a vida terrena e a morte em função de uma esperança cega na imortalidade. Meslier lança mão de opiniões como essa para realizar o seu intento de desacreditar o cristianismo e, consequentemente a Igreja. Todos os historiadores citados por ele – ao que tudo indica via Montaigne, diga-se de passagem – são unânimes em sugerir que o cristianismo sempre foi um “vil e desprezível fanatismo” uma seita nociva e supersticiosa desde os seus primórdios. O ódio, a perseguição, a humilhação e sobretudo o sofrimento marcaram o destino desta religião desde os primeiros cristãos. Estes, aliás, de acordo com Meslier sempre acreditaram em loucuras e que suas ideias grotescas fossem sapiências, que elas representassem no fundo, uma sabedoria de fundo sobrenatural e portanto que fosse superior às demais crenças e doutrinas".

E qual tipo de verdade é sustentada pelo Padre? A perspectiva filosófica é de um materialismo do tipo realista e racionalista. Por meio dele, só se afere a existência daquilo que se constata por meio dos sentidos e por meio da razão. O ser confunde-se com a matéria – o que não há materialmente não existe, o que exclui o nada e o que não possibilita a existência de deus. Aliás, o ateísmo do padre não só é justificado como decorrência do seu ponto de vista filosófico mas por meio da razão:

“Ora, pondera Meslier, é absurdo e ridículo pensar que um deus sábio, benevolente e inacessível poderia ser afetado, seja ofendendo-se, seja entristecendo-se por erros triviais ou mesmo por erros mais graves cometidos por nós, ínfimos e imperfeitos seres. Ademais, um ser perfeito não teria paixões, uma vez que este deveria ser, segundo a reta razão, “invulnerável, inalterável e impassível”. Deus, portanto, não poderá jamais indignar-se com o que quer que seja. Estamos desse modo diante de um grandioso contra-senso. Se Deus é impassível, ou seja, se Deus não pode ter nenhuma espécie de paixão, pois do contrário, ele seria vulnerável e alterável, podemos perguntar o seguinte: como então o deus judaico-cristão e dos teólogos pode ser infinitamente misericordioso visto que a misericórdia é uma paixão?”

Em que pese toda a radicalidade política e metafísica do seu pensamento, Jean Meslier ainda não adquiriu a cidadania filosófica dos demais filósofos iluministas que em geral tiveram posições mais moderadas do que a do cura. Ao que tudo indica, nem mesmo Marx teve conhecimento das obras de Meslier e não o citou como parte do arcabouço de pensadores do materialismo francês. Da mesmo forma, Engels igualmente ignorou o cura e poderia o ter situado como um elemento radical dos socialismos utópicos em seu “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico” de Anti Duhring. De toda a forma, tal arcabouço teórico teria o condão de servir como elemento constitutivo de diversos movimentos que colocariam abaixo o Antigo Regime monárquico por toda a Europa, serviriam de inspiração para a elaboração de constituições e novos movimentos de cunho republicano e avançariam rumo a novas diretrizes socialistas. Meslier deve adquirir cidadania filosófica por seu pioneirismo e sua originalidade, além de ser tributário da tradição igualitarista. Seu horizonte político é a igualdade e a fraternidade, os comunistas devem reivindica-lo desde que se colocou ao lado dos oprimidos de seu tempo.


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