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guevara 2015Brasil - GGN - [Sebastião Geraldo Nunes] Enquanto estive entre eles, o Che me mostrou, a cada manhã, suas anotações do dia anterior. Eu havia lido, antes de sair do Brasil, seu primeiro livro divulgado entre nós: “Nossa luta na Sierra Maestra”. E certamente na Bolívia, no calor dos combates (que não presenciei) e nas cansativas jornadas a pé, ninguém melhor do que o próprio Che, com sua capacidade de síntese, para relatar o que de importante ocorria.


Haydée Santamaría me encarou com espanto e disse:

– Mas você veio procurar o Che aqui? Quem te disse que ele está em Cuba?

Tive vontade de dizer: “Ninguém”, pois supus que ele continuasse em Cuba, com muito trabalho pela frente. Em dois dias embarcara, desde o Rio de Janeiro, em três aviões até Havana, com a cara e a coragem de quem sonhava escrever um livro decente sobre um dos heróis máximos da Sierra Maestra. E ali estava eu, depois de errar o primeiro pulo, sem muita certeza do que fazer, diante de umas das lideranças mais famosas da revolução.

– Se não está na ilha, onde está? Na África?

Haydée me recebera de boa vontade em sua sala na direção da Casa de las Américas. Eu havia sido bem recomendado por colegas brasileiros, entre escritores e jornalistas, de modo que não havia motivo para os cubanos não me ajudarem.

– Acho que você deve procurar Celia Sánchez. Ela está mais informada do que eu sobre o paradeiro exato do Che.

Haydée rabiscou o endereço num pedaço de papel e me despediu, com um sorriso e forte aperto de mão, uma mão acostumada a pegar pesado, desejando-me boa sorte.

SALVO-CONDUTO

Nenhum problema. Celia Sánchez, morena, de rosto comprido e cabelos curtos, outra liderança famosa, me recebeu sem demora no Ministério da Educação.

– Desculpe se Haydée não te disse nada, mas esse tipo de assunto geralmente passa por mim. Sou eu quem decide o que fazer.

Expliquei a ideia do livro, falei de meu trabalho como escritor no Brasil e exibi as recomendações que tinha.

– Se procurasse se informar melhor antes de viajar, saberia que o Che está na Bolívia, em plena guerrilha. Seu interesse é legítimo e tudo o que puder ser feito em favor da revolução mundial será bem-vindo. Temos contato constante com ele e podemos levá-lo até lá. Você terá um guia e salvo-conduto para subir a montanha.

Suspirei aliviado. Minha viagem não fora em vão, pelo menos até ali.

BEM LÁ EM CIMA

Até meu primeiro encontro com o Che, nada de relevante aconteceu. Nem ao menos o óbvio: revistas, interrogatórios, mal-entendidos. Nada. É evidente que, diante dos fatos que se seguiram, eu não teria motivo algum para encher linguiça falando do que comi, bebi, da cultura, das conquistas sociais e econômicas ou da beleza das mulheres cubanas.

A rede revolucionária era tão bem montada que pudemos subir a montanha no mesmo dia. Não passamos por cidade alguma. Nem sequer vilarejos. Da lancha, pequena e veloz, direto para cima, lá fomos nós, eu e meu guia. Os problemas só começaram depois que subimos, bem no alto das montanhas bolivianas.

A TERCEIRA GUERRILHEIRA

Fui recebido por outra Haydée, menos famosa que as anteriores: Haydée Tamara Bunke Bider, nascida na Argentina como o Che, de codinome Tania, morta um ano depois numa das muitas emboscadas que liquidaram com o sonho internacionalista de Che Guevara. Quando Tania caiu com alguns outros, de arma nas mãos, ao vadear um rio, seus camaradas guerrilheiros, dos quais havia perdido a trilha, se encontravam a somente um quilômetro dali. Mas nas montanhas, entre árvores, abismos e corredeiras, é assim mesmo: tudo parece distante e inacessível, um mero quilômetro se transforma em légua e léguas.

Mal nos cumprimentamos e começou a correria diante de nós. Meu coração deu um salto, minhas pernas tremeram. “Puxa”, pensei, “nem cheguei e vai começar o tiroteio”.

Só que não era tiroteio algum, mas um acidente, que seria corriqueiro não fossem as consequências: um dos homens falseou o pé numa trilha difícil e caiu no rio. A correnteza era forte e o sujeito não sabia nadar. Vimos quando desapareceu num remanso, agitando os braços. Dois homens se despiram e caíram na água, mas procuraram em vão próximo às árvores da margem. Nem sinal. A correnteza continuava agitada. O remanso, tranquilo.

Fui então apresentado ao Che, que lamentou a morte absurda do companheiro:

– Você acaba de chegar e já presenciou nosso batismo de morte. Era um rapaz débil e completamente desajeitado, mas com grande vontade de vencer. Infelizmente a prova foi mais forte do que ele.

A tarde caía. Não era possível avançar entre pedras e arbustos, praticamente sem trilhas visíveis. Foi distribuída a última ração de feijão, que compartilhei, esfomeado.

O PRIMEIRO BANQUETE

O dia amanheceu chuvoso, com o rio mais grosso, sendo impossível atravessar. Saímos às 12 horas, marchando até 16h30min, parando apenas para fazer uma colheita de palmito, abundante na região. Os companheiros enviados para comprar mantimentos voltaram com um porco, pão, arroz, açúcar, milho e algumas latas de conservas. Não muito nem pouco, apenas o suficiente para alguns dias.

Em seu diário, o Che anotou: “Nos dimos un pequeño festín de café, pan y se autorizó a consumir la lata de leche condensada hecha dulce que traíamos en reserva”. Era o dia 26 de fevereiro de 1966.

Nos dias seguintes, nada de importante, além de caminhada em cima de caminhada. Era preciso estabelecer contatos – difíceis – e encontrar locais apropriados para guardar armas, munição, roupas e remédios. Esconderijos fáceis de localizar pelos guerrilheiros, mas impossíveis de serem percebidos pelos inimigos. Tudo isso cumprido com zelo, disciplina, boa vontade e – para meu espanto – com absoluta tranquilidade.

A PRIMEIRA VITÓRIA

Assim o Che noticiou os sucessos do dia 3 de março: “Día de acontecimientos guerreros. Pombo quería organizar una góndola hasta arriba para rescatar mercancía, pero yo me opuse hasta aclarar la sustitución de Marcos. A las 8 y pico llegó Coco a la carrera a informar que había caído una seccíon del ejército en la emboscada. El resultado final ha sido, hasta ahora, 3 morteros de 60 mm, 16 mausers, 2 Bz, 3 Usís 1.30, dos radios, botas etc. 7 muertos, 14 prisioneros sanos y 4 heridos, pero no logramos capturarles víveres”.

Mais adiante, continuou: “Mandé a Inti a hablar por última vez con los prisioneros y ponerlos en libertad, desnudándolos de toda prenda que sirva, menos a los dos oficiales com los que se habló aparte y salieron vestidos”.

Não vi nada, não ouvi nada, não participei de coisa alguma. Desânimo.

A DESISTÊNCIA

Enquanto estive entre eles, o Che me mostrou, a cada manhã, suas anotações do dia anterior. Eu havia lido, antes de sair do Brasil, seu primeiro livro divulgado entre nós: “Nossa luta na Sierra Maestra”. E certamente na Bolívia, no calor dos combates (que não presenciei) e nas cansativas jornadas a pé, ninguém melhor do que o próprio Che, com sua capacidade de síntese, para relatar o que de importante ocorria.

Foi quando passei a discutir comigo mesmo a aventura em que estava metido. Deveria eu, por mais liberdade que me dessem, revelar com minhas palavras de escritor estrangeiro o que se passava ali, oculto e secretamente no coração da montanha? Por outro lado, quando poderia eu publicar um livro desse tipo? Com a guerrilha em curso? Esperar seu desfecho? Com a guerrilha em curso, eu estaria revelando, talvez, segredos que deveriam permanecer secretos, até para a segurança dos guerrilheiros. Depois de tudo terminado, qualquer que fosse a consequência final, meu livro não mais faria sentido.

Assim, desisti. Comuniquei ao Che que desejava voltar a Cuba e de lá a meu país, explicando confusamente minhas razões. Com sua longa experiência no contato com os homens, em combate e fora dele, o Comandante me ouviu atentamente e disse:

– Eu desconfiava desde o segundo dia. Por isso te mostrei minhas anotações.

Nota:

As citações em espanhol foram extraídas de Diário em Bolivia, volume 3, in Ernesto Che Guevara – Escritos y discursos. La Habana: Instituto Cubano del Libro, 1972

Sebastião Geraldo Nunes é escritor, formado em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais/Brasil.


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