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portugaldemocracia1Portugal - Grazia Tanta - [António Pedro Dores e Vítor Lima] Porque é que o impacto das políticas anti-populares tem tão escasso relevo na transformação do quadro político em Portugal? Qual a natureza do regime democrático em Portugal? Qual a relação entre a corrupção e a revolução? Porque a esquerda social não se transforma em esquerda política?


A nossa contribuição menciona as causas da despolitização, da administração autoritária, da persistência das limitações educativas como fontes de constrangimentos de acção colectiva, no momento actual.
 
A uma democracia de controlo poderá suceder uma democracia de liberdade?
 
Numa revolução, como a de 1974/75 em Portugal, o espaço de democracia de liberdade, sobretudo desde o golpe de 25 de Novembro, tem evoluído para uma democracia formal, de controlo biopolítico. À semelhança do que é prática na Europa. Mas o grau de atonia social é ímpar. O que se observa comparando a reacção de repúdio pelas políticas de austeridade impostas pela troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) com o que ocorre na Grécia e em Espanha, e mesmo em Itália, onde a vontade das massas se manifesta nas ruas, nas greves.
 
Cabe perguntar:
 
Porque é que o impacto das políticas anti-populares tem tão escasso relevo na transformação do quadro político em Portugal? Ou, de outro modo, o que distingue e o que aproxima a situação política portuguesa das outras do sul da Europa?
 
Por que razão os quadros de opções partidárias nos países de Europa do Sul, sete anos após a declaração de crise financeira global e cinco anos após o estabelecimento do programa de transferência de responsabilidades do sector bancário para o sector estatal, estão em transformação e em Portugal estão estáveis, apesar de todos serem alvos das mesmas políticas extractivistas, violadoras do princípio da responsabilidade privada pela falência dos negócios privados?
 
Pretende-se aqui contribuir para o aprofundamento do debate sobre a natureza dos regimes democráticos no Sul da Europa, e em Portugal em particular. Esse debate, emergente em 2010, quando as apologias ofuscantes do modernismo europeu – de que a sociedade do conhecimento seria a gazua progressista – abriram fissuras e deixaram passar a necessidade, até aí reprimida, de compreender as histórias e as ideologias que aqui nos trouxeram. O 25 de Abril deixou de ser apenas uma data folclórica, com marchas e discursos institucionais, para ser motivo de curiosidade histórica e filosófica. Como a revolução democrática aderiu a sistema europeu que parecia democrático mas dá mostras de não o ser? A democracia implica necessariamente mais corrupção, como dizem os que afirmam que afinal sempre era Salazar que tinha razão (“ele ao menos não era corrupto” e “punha ordem nisto”)? Ou não houve senão uma encenação de revolução? Sem sangue as revoluções são farsas, sem sacrifícios revolucionários nada dura? Na distância da memória enfraquecida pela esperança na convergência com os países mais desenvolvidos da Europa, a especificidade do Processo Revolucionário em Curso (PREC), entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975, é revisitada nos debates actuais, como não era antes de 2010. Aquilo que aqui se tenta chamar a atenção é para a benevolência com que nos lembramos dos resultados práticos do PREC, na política. Não se lembram factos como a suspensão da actividade repressiva do estado no PREC, substituída por repressão directamente política, através de partidos políticos, da luta dos trabalhadores. O que explica como no 25 de Novembro não tenha havido uma reacção generalizada contra a normalização política imposta militarmente. A opção consensual pela democracia de tipo ocidental em Portugal foi realizada por partidos cuja luta contra as forças populares foi feita directamente, sem mediação das forças repressivas, durante o PREC. A normalização, financiada pelas potências mundiais através dos partidos, impôs-se através da reposição das forças repressivas do estado e da organização de privilégios para os partidos e os políticos de todos os quadrantes. É por isso que em Portugal os partidos não pagam impostos e as regalias dos políticos, comparados com os de outros países bem mais ricos, são nominalmente superiores. Essa distância criada entre a política e a população é singular em Portugal.
 
Cabe aqui perguntar:
 
  • Porque é que o 25 de Abril continua a ser comemorado e o 25 de Novembro de 1975 não tem direito a comemorações populares, mas apenas a discretas comemorações institucionais, reveladoras de algum desconforto dos vencedores de Novembro?
  • O que une num único regime político as suas diferentes partes, nomeadamente o arco da governação e partidos que jamais serão ou voltarão a ser governo neste regime? Sendo assim, o que divide o PS, enquanto esquerda dos partidos do poder e centro político do regime e os restantes partidos de esquerda, “proprietários do 25 de Abril”?
A resposta que ensaiamos gira em torno de:
 
  • a despolitização ser obra consensualizada entre todos os partidos no âmbito do processo de normalização política acordado no 25 de Novembro;
  • a crítica da administração do estado fascista se ter restringido à sucessão de vagas de ingressos na função pública de assessores políticos dos governos em funções;
  •  a pressão e disponibilidade das famílias para educar os filhos impôs a educação de massas mas não impediu a continuidade de um processo educativo virado para a submissão, e que tem produzido uma massa amorfa de professores e estudantes, concentrados na obtenção de credenciais e alheados da necessidade de produzir conhecimentos adequados às circunstâncias.
Pontos de partida são a coincidência entre a construção de um sistema partidário de cima para baixo, a partir de financiamentos externos e interessados, relatados, por exemplo, por Rui Mateus (1996); o desinteresse, o alheamento e mesmo a repugnância da população relativamente à política (os jornais mais lidos são o Correio da Manhã e a Bola) em contraste com a euforia revolucionária de 1974/75 que tornou Portugal conhecido no mundo inteiro; o reduzido valor social atribuído ao associativismo, apesar da liberdade (a participação cívica e a confiança interpessoal comparam persistentemente mal com qualquer outro país da Europa); as falências desastrosas do BPN (banco ligado ao PSD, falido no tempo do governo PS) e do BES (banco ligado sobretudo ao PS, falido no tempo do governo do PSD) depois do assalto politicamente conduzido através da Caixa Geral de Depósitos e no tempo do governo PS ao BCP, banco até então ligado a forças católicas.
 
A criação de uma democracia de controlo
 
Em 1974 culmina um processo de entropia das instituições autoritárias do antigo regime. Estas, porém, sobreviveram à custa da paulatina submissão popular ao paternalismo revolucionário que dominou o PREC. Paternalismo continuado, depois do 25 de Novembro, por uma classe política que se autopromoveu junto de financiadores internacionais, de forma clandestina, em troco da protecção pessoal dos seus dirigentes e do cumprimento das orientações internacionais sobre o modo de controlar um povo em estado revolucionário.
 
A classe política acordou entre si ensinar as populações que a dependência económica (das classes dominantes) da exploração das colónias poderia ser substituída por fundos europeus da “Europa connosco”. As democracias, finalmente, tinham reconhecido os méritos democráticos do povo português e, por isso, estavam dispostas a financiar amigavelmente a integração de Portugal numa carruagem do progresso. O financiamento soviético do Partido Comunista, como o usado na reforma agrária, serviria apenas o partido e não seria chamado a suportar o regime, qual Cuba da Península Ibérica. Porém, como disse Melo Antunes no dia 25 de Novembro, o PCP seria um dos pilares da democracia portuguesa. Membro de pleno direito da classe política, embora fora do arco do poder.
 
As estruturas partidárias criadas de novo foram protegidas do espírito revolucionário então vigente através do fechamento defensivo das listas de dirigentes, escolhidas entre grupos de influência com acesso centralizado aos recursos financeiros (Mateus, 1996). A própria Constituição sela a existência dos partidos do novo regime nesses precisos termos: um escol, uma casta (são cerca de 300000 os inscritos em partidos, a maioria dos quais sem atividade política efetiva) com funções monopolísticas de representação dos interesses da população, vincadas por privilégios e financiamentos públicos e estatuto legal especial (nomeadamente com tácita dispensa de prestação de contas e de pagamento de impostos, privilégios que fazem do financiamento político o centro da corrupção que mina o país).
 
Essa situação de empobrecimento democrático, de diabolização dos debates ideológicos, acompanhou e reforçou a tendência internacional para as desigualdades inter-regionais e sociais, presentes no contexto europeu sobretudo a partir dos anos 80. A tendência para uma mais desequilibrada distribuição de rendimentos a favor dos investidores tornou “as conquistas de Abril”, em termos salariais, uma saudade platónica para a esquerda do regime. As acções populares continuam a confrontar-se, como durante o PREC, com revolucionários profissionais que, na prática, boicotam a autonomia e a liberdade das iniciativas ao reclamarem protagonismo, conduzindo-as ao desanimo e à dispersão.
 
Uma das características da actual situação é a produção de um sentimento de normalidade, próprio das democracias ocidentais, que inclui uma sensação de segurança inscrita numa presunção de superioridade – que nos faz sentir distantes das fomes em África, das destruições no Iraque, Líbia ou Síria e, irresponsáveis perante o que passa alegoricamente nos noticiários como reforço da desqualificação da maioria dos seres vivos na Terra, aos nossos olhos. (Por isso é tão importante manter os refugiados longe das nossas casas: eles trazem notícias que os noticiários não noticiam). Produzem-se, assim e de muitos outros modos, mecanismos ideológicos que reforçam e confirmam as desigualdades sociais no seio das sociedades ocidentais, contra as genericamente chamadas minorias; produz-se a aceitação de cortes em rendimentos e direitos dos que menos rendimentos e direitos têm. “There is no alternative” senão castigar os desvalidos? Como é que a democracia que temos destruiu as alternativas? E sem alternativas ainda é democracia?
 
Antes do 25 de Abril de 1974, como se queixou Salgueiro Maia (1997), também se vivia uma normalidade. Embora com custos importantes para muitas famílias e a sociedade no seu todo, vivia-se um alheamento politicamente construído (nomeadamente pela censura) das realidades da guerra colonial, que durou 13 anos. Para os que tinham recursos para isso, colocava-se o dilema entre escapar a salto (clandestinamente) para a Europa, como então se dizia, ou ir à tropa, uma vez que era proibido aos mancebos sair do país sem autorização do Estado, que temia a fuga em massa. Para muitos camponeses ir à tropa era um risco compensador: aprendiam a ser homens, dizia-se. Pretendia-se dizer que o fim do tempo de tropa seria compensado para os sobreviventes, com uma vida urbana que anteriormente lhes era vedada.
 
O crescimento económico dos anos sessenta coincidiu com um apartheid informal que se expressava dizendo que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem. A partir dos anos 90, as melhorias nas condições de vida nesse “resto paisagístico” conseguidas, nas últimas décadas, pelos fundos comunitários, destruíram o tecido social no campo mas não evitou o aprofundamento das desigualdades nas cidades, transformando essa paisagem, agora desertificada, em oportunidades para o turismo rural e os fogos sazonais. Por seu turno, os números da emigração dos anos sessenta e setenta voltaram a repetir-se nos últimos anos, numa composição social e educacional diferente, mas igualmente nefasta para o futuro.
 
Fascismo e democracia, a mesma coisa?
 
Quarenta anos depois, uma parte dos que viveram a ditadura prefere esquecer as suas próprias experiências económicas e sociais. Só se lembra do ânimo próprio da juventude, que não volta mais. E do desânimo do desmoronar de expectativas de progresso actualmente comprometidas. Por isso convém ter presente, sobretudo os que não tenham experiência directa do fascismo, que era proibido os casais beijarem-se ou acariciarem-se, usar isqueiro sem licença, os descalços (havia muita gente que não tinha dinheiro para comprar sapatos) não se podiam aproximar dos espaços públicos onde passavam os calçados, as mulheres trabalhar ou viajar sem consentimento expresso dos maridos, os hotéis controlavam o estado civil dos seus hóspedes, as criadas de servir eram entregues pelos pais aos cuidados de famílias que as podiam alimentar, para que não passassem fome. Muitas eram usadas sexualmente pelas famílias de acolhimento. A fome era endémica e tolerada em muitas partes do país. Os cuidados de saúde não existiam e as escolas serviam para separar, aos 10 anos, os mais educados dos trabalhadores, que começavam logo a trabalhar (a maioria) ou iam para os cursos médios para se especializarem.
 
Aos que alegam, ignorantes, que a democracia é corrupta e a tirania impoluta, relembramos a propaganda do culto da personalidade e a corrupção moral, política e económica no tempo do fascismo com, por exemplo, o caso de abuso sexual de crianças Ballet Rose, o favorecimento das famílias do regime (de que o caso do bacalhau e o senhor Tenreiro seria um dos mais evidentes) e a megalomania dos elefantes brancos, como o caríssimo projecto de Sines (J. P. Pereira, 2014).
 
O isolamento político e social português não foi uma experiência que sirva de referência para melhorar a actual situação, embora os indicadores económicos fossem melhores. O que se revela em tais comparações é a miséria intelectual dos que insistem em fechar o debate político ao economicismo. Os serviços de educação e saúde não se comparam aos que então disponíveis, embora hoje estejam em fase de decadência. O mesmo no sector da habitação, do acesso à alimentação, transportes, sem prejuízo dos muitos problemas que existem nestes campos e que colocam a questão das continuidades e descontinuidades que hoje se observam face ao regime anterior. 
 
Algumas das continuidades são: os jovens não são informados do funcionamento do estado nem sobre a democracia, nem em família nem nas escolas. A política é sentida como alguma coisa incompreensível e mesmo repugnante, própria para oportunistas e manobristas sem escrúpulos, com ambições de poder abstractas dentro de máquinas partidárias dominadas por seitas secretas. Coisa própria de classes dominantes, gananciosas e prepotentes. A democracia é paternalisticamente reduzida à simples existência de eleições regulares, mesmo que a esmagadora maioria da população não se possa candidatar a função alguma perante o caráter iniciático das fechadas máquinas partidárias. Essa concepção enganadora da democracia desarma qualquer ensejo de envolvimento na política activa; nos partidos, nos sindicatos, nas associações de estudantes, nas áreas de residência, etc. Continuamos presos ao fado antigo, em que a política era uma porca e o zé-povinho seu antagonista institucionalmente impotente
 
Portugal existirá na geopolítica europeia?
 
As caraterísticas sociológicas de um povo são um sedimento do seu percurso histórico. Esse percurso histórico encontra-se inserido num território e numa matriz de relações económicas, políticas e culturais com outros povos, estabelecendo identidades e diferenciações, quer face ao exterior, quer no seu próprio seio.
 
O que torna diferente a situação dos portugueses de hoje face a outros povos submetidos a idênticas dificuldades e ameaças? Vamos limitar-nos a referir alguns aspetos da história recente, num cotejo com os povos do estado espanhol, da Grécia e da Itália.
 
Todos os quatro países conheceram ditaduras fascistas resultantes da tomada do poder pela força, embora o fascismo em Portugal tenha sido mais longo do que nos outros países e menos radical do que, por exemplo, o espanhol;
 
No último século, todos tiveram apetites territoriais sobre terras alheias: Espanha em Marrocos, Grécia na Ásia Menor, Itália no Corno de África, no Egeu, nos Balcãs, no vale de Aosta e na Líbia. Portugal, mantendo-se conservador nesse aspecto desde finais do século XIX, sofreu os primeiros revezes na década de sessenta (Goa), sendo forçado à descolonização em 1974/75, época em que Espanha também saiu, sem glória, da Guiné Equatorial e do Sahara Ocidental;
 
A guerra envolveu todos mas, Portugal não a sentiu no seu território, ao contrário dos outros, nomeadamente gregos e espanhóis. Itália e Grécia conheceram ocupações militares estrangeiras e Espanha uma crudelíssima guerra civil. A guerra colonial que envolveu Portugal era geralmente de baixa densidade, de desgaste, desenrolava-se longe, a censura não deixava circular informação sobre o que se passava e a sua duração enquadrou-a como mais uma contrariedade na vida dos portugueses, dada a incapacidade política dos portugueses em estarem a par dos custos humanos e financeiros da guerra;
 
Todos estes países do Sul da Europa vivem sob forte influência de instituições religiosas poderosas e ricas, geradoras tanto de apoios incondicionais como de radicais anticlericalismos, sendo Portugal onde essa influência será, apesar de tudo, menor, embora crescentemente favorecida pela atuação do actual governo;
Portugal adoptou, em 1910, a forma republicana de estado, primeiro que os outros (Itália, 1946, Grécia, 1974), continuando a Espanha a ser uma monarquia e a sofrer as suas consequências em fortes clivagens políticas;
 
Grécia e Portugal são países sem tensões nacionalistas internas, em contraste sobretudo com a Espanha (Catalunha, Euzcadi…) mas, também da Itália (Padânia e Tirol do Sul). No capítulo do desenvolvimento económico, todos apresentam grandes desigualdades regionais, todos foram vítimas de fortes processos emigratórios que se reativaram nos últimos anos, excepto na Itália;
 
Em Portugal e após a instauração do fascismo, os períodos de tensões políticas e sociais foram muito curtos, sendo mais duradouro o que se seguiu a 25 de Abril de 1974 (18 meses). Na Grécia houve fortes movimentos de deslocados após a guerra com a Turquia, a guerra civil seguiu-se à guerrilha contra a ocupação alemã e, em 1967, surgiu um golpe de estado de militares fascistas. Em Espanha, à guerra civil sucedeu um duro regime fascista mas, com a morte de Franco, a transição do fascismo para o regime actual foi tranquila, ainda que tenha prosseguido a atividade militar da ETA e a base de apoio franquista se tenha mantido agrupada num dos partidos do regime, o PP. Na Itália, após o fim da II guerra, viveram-se períodos críticos nos anos oitenta com o ativismo de esquerda e o seu contraponto fascista, este, como produto de conivências entre a Mafia, o Vaticano e a NATO. A instabilidade política produziu o processo Mãos Limpas, uma reacção de magistrados contra a corrupção, que fez implodir o sistema partidário, para logo renascer sem aparentes diferenças, liderado por Berlusconi.
 
Todos os países estão integrados na NATO, com bases permanentes norte-americanas no seu solo, assim como todos são membros da UE e da zona euro. Até tempos recentes, todos apresentavam sistemas políticos polarizados na alternância de dois grupos partidários, uma mais à direita outro, menos à direita. Porém, a austeridade tem colocado esse modelo em causa. Na Grécia, foi mesmo demolido esse sistema partidário e surgiu uma nova formação – Syriza – com pendor social-democrata em paralelo com o crescimento de um partido nazi. Em Espanha, as movimentações populares e autonomistas enfraqueceram o duo PP/PSOE, com o surgimento de duas novas formações, o Podemos e o Ciudadanos, as quatro, agora com pesos próximos junto da população. Na Itália, os partidos herdeiros do pós-guerra desapareceram, incluindo os poderosos DC e PCI para darem lugar a duas coligações típicas recentemente perturbadas pelo Cinque Stelle. Em Portugal, o sistema político mostra-se imune aos efeitos da austeridade, mantendo-se o bipartidarismo de alternância;
 
Há circunstâncias sociais e históricas que fazem parte da memória recente dos povos. Na Grécia é grande o interesse pela conjuntura externa, dado o seu enquadramento geográfico nos Balcãs, isolada territorialmente da União Europeia, e as desconfianças face à Turquia, acentuadas pela partição de Chipre; por outro lado, há uma miríade de grupos políticos de esquerda e anarquistas, em contraponto a um movimento sindical relativamente pulverizado, todos com uma memória viva dos tempos da II Guerra Mundial, que custaram aos gregos um milhão de mortos. Em Espanha, o movimento sindical que se manteve clandestino durante o franquismo, comporta hoje quatro centrais sindicais – duas das quais anarquistas. O sistema político é extremamente diversificado, opondo-se fiéis à monarquia e republicanos, espanholistas, autonomistas, independentistas e ecologistas, para além das formações com pendor ideológico tradicional. Na Itália, há três grandes centrais sindicais mas a capacidade de atuação autónoma dos trabalhadores e da população em geral é grande e capaz de grande radicalismo. O sistema político bipolariza um grande número de partidos, nacionais, regionais ou autonomistas/independentistas, de todos os matizes.
 
Em Portugal, não se fez o julgamento do regime fascista nem da polícia política, nem dos militares protagonistas de crimes de guerra; procedeu-se, pelo contrário a uma amálgama no olvido, facilitadora de todos os oportunismos. O movimento sindical, muito partidarizado, tem vindo a refluir à medida que avançam as privatizações, o desemprego, a emigração e a precariedade laboral. Fora do parlamento existem poucas e são pequenas as formações políticas, sem implantação nem projetos conhecidos ou credíveis. Por outro lado, não há, na prática, organizações anarquistas.
 
Neste quadro, os quatro países, com pesos demográficos e políticos distintos, inserem-se numa periferia Sul, mediterrânica, em paralelo com uma periferia Leste, ambas geridas de modo estandardizado a partir do eixo Berlim-Frankfurt-Bruxelas, com estratégia dominantemente alemã e financeira. Nessa estratégia, a produção de altas tecnologias são concentradas na Alemanha, que as exporta para o mercado mundial, integrando as periferias nas suas redes de negócio, como fornecedoras de mão-de-obra barata, de bens primários, de tecnologias intermédias e mercados protegidos. Cada país da periferia, cada vez mais orientados a partir de Bruxelas, funciona como território colonizado, sem preocupações políticas de solidariedade, de coerência e de estabelecimento de sinergias mutuamente benéficas. Essas sinergias apenas funcionam, como é típico dos regimes coloniais, acima das classes políticas nacionais da periferia, que funcionam como delegados do eixo Berlim-Frankfurt-Bruxelas na aplicação da sua estratégia global, como grandes autarcas.
 
Da política
 
Em vésperas do 25 de Abril, assistia-se a alguma atividade sindical, em parte resultante de alguma abertura do regime fascista que, no entanto, mantinha uma repressão mitigada, materializada na existência de poucas dezenas de presos políticos em cumprimento de pena. Em termos políticos, a radicalização marcava as universidades e algumas áreas operárias. Surgiram movimentos radicais ou de luta armada, enquanto a situação internacional isolava o regime – Portugal era o único país a manter colónias pela força. Ao contrário do acontecido em 1969, a oposição recusou participar nas eleições de 1973 para a Assembleia Nacional por as considerar falsas. A “ala liberal”, onde pontificavam os futuros criadores do PPD/PSD, tinha abandonado os seus lugares parlamentares de 1969. O PS era fundado na Alemanha, com apoio do SPD. O PCP encontrava-se na defensiva face à radicalização vigente, fruto da popularidade das ideias maoistas e terceiro-mundistas contra a hegemonia das superpotências e do estrito alinhamento do partido com Moscovo.
 
A revolução dos 18 meses, iniciados em 25 de Abril de 1974, seguiu-se a um golpe militar que quase não encontrou resistência do último governo do fascismo. Esse golpe caraterizou-se pela moderação, consubstanciada pelo caráter conservador da Junta de Salvação Nacional,  onde alguns viriam a radicalizar durante o processo (Rosa Coutinho), ou a demonstrar alguma compreensão com o PREC (Costa Gomes e Pinheiro de Azevedo) enquanto os outros quatro membros, um género de fascistas descontentes, foram rapidamente afastados (Spínola, Galvão de Melo, Silvério Marques e Diogo Neto). Esse conservadorismo era refletido no programa do governo Palma Carlos que também, na senda do programa inicial do Movimento das Forças Armadas (MFA), não se refere a colónias ou descolonização e somente a ultramar, embora se reconhecesse que a “solução das guerras no ultramar é política e não militar” (Programa do MFA). No capítulo da Comunidade Económica Europeia, o programa do governo referia a vontade de “Intensificação das relações comerciais e políticas”, a seguir a uma prioritária afirmação de fidelidade à NATO. Não se pensava em revolução. Desejava-se uma passagem para um regime pluripartidário de tipo europeu, com a destruição dos aparelhos repressivo e corporativo do fascismo. Para que a transição fosse tranquila contava-se no governo com Mário Soares para assegurar a ligação com a Europa e os partidos sociais-democratas e, mais tarde, para garantir um apoio popular aos interesses que vieram a dominar em 25 de novembro. O PCP foi encarregue do ministério do Trabalho e Cunhal, seu secretário-geral desde os anos 40, ministro sem pasta no governo para garantirem o controlo das múltiplas reivindicações e atuações populares entretanto em crescendo: dos saneamentos de fascistas e elementos repressores nas empresas, à condenação de greves que “faziam o jogo da reação” e protagonizando assaltos a sindicatos, uma vez que o Estado estava, de facto, sem aparelho de repressão. O isolamento e a repressão dos grupos de extrema-esquerda ou das lutas mais radicalizadas foram tarefas que o PCP desempenhou com zelo até ao golpe de novembro, nas fábricas, nos sindicatos, nos quartéis. O poder crescente do PCP nos sucessivos governos provisórios continuou até ao último e assegurou a sua tutela do movimento sindical, a sua representação na Concertação Social e maiorias em dezenas de câmaras municipais.
 
As divergências provocadas pelo PREC fizeram-se sentir também nas forças armadas e obrigaram o MFA que organizou o golpe de estado a sair do seu apagamento inicial e adiar a entrega do poder aos civis, profundamente desorganizados. Os confrontos opuseram, sobretudo, as sensibilidades social-democratas e terceiro-mundistas aos defensores do poder popular. Os primeiros preferiram aliar-se aos sectores mais reacionários do que acompanhar as movimentações populares. Foi o PS que liderou o processo contra-revolucionário, com vista a ganhar a respeitabilidade e a confiança necessária dos regimes europeus e norte-americano, opondo-se ao mesmo tempo ao PCP, estigmatizado pelo seu alinhamento com Moscovo e pelos desígnios da Guerra Fria, que colocavam Portugal no âmbito geográfico de influência ocidental. Esta disputa teve também o efeito de dividir ideologicamente o país entre Norte, anti-comunista e de direita, e Sul, revolucionário e de esquerda.
 
O golpe de 25 de Novembro abortou os preparativos de guerra civil, dado o isolamento dos oficiais radicalizados e o papel dúbio do PCP – Brejnev, então líder da União Soviética, já tinha dado sinais de que Portugal não lhe merecia confrontos com os EUA e que a política do Kremlin se centraria no aumento da influência no Terceiro Mundo (Vietnam, Etiópia, Angola). Mário Soares, por seu lado, ofereceu uma caução socialista aos vencedores.
 
Após o 25 de Novembro, com os militares radicais na cadeia, as responsabilidades coloniais terminadas (incluindo Timor-Leste, ocupada pela Indonésia), a prioridade passou a ser consolidar o sossego nas empresas, ocupar dos lugares deixados vagos pelos militantes do PCP no aparelho de estado, recuperar as terras nacionalizadas no Alentejo e a preparação da adesão à CEE. Organizou-se um retorno à tranquilidade obediente da população, separada da possibilidade de intervenção política, tal como acontecia durante o fascismo. Mas com fachada democrática. A pretexto, verdadeiro, de os partidos políticos estarem pouco implantados e pouco aptos a enquadrar das vontades populares. O principal elemento de legitimação da desmobilização, brandido pelo PS (“A Europa connosco”) foi a ideia de adesão à CEE (Comunidade Económica Europeia) onde o nível de vida dos trabalhadores eram bem conhecidos pela presença de centenas de milhar de emigrantes portugueses, sobretudo em França e na Alemanha.
 
Os portugueses passaram a posicionar-se politicamente através dos quatro partidos “úteis”, dois à direita e dois à esquerda. Os mais jovens, os que não viveram a instalação do regime, simplesmente assistiram aos programas políticos de despolitização da vida pública, à centralização das decisões nos governos, por sua vez dominados pelos diretórios dos partidos e, em particular, pelos respetivos chefes, sistematicamente candidatos a primeiro-ministro e livres de escolherem os seus ministros mesmo entre pessoas amigas que nunca fizeram política. O Estado continuou a ser um estranho, explorador das populações. O acesso à vida política continuou a ser uma questão de cunhas. A sacralização de uma Constituição com fortes marcas de proteção da oligarquia, apresentada como conquista de Abril e lei quase perfeita (embora ignorada na prática jurídica quotidiana) constitui outro elemento de estandardização pantanosa do regime. A população foi colocada sob os efeitos hipnóticos dos media. O modelo das “conversas em família” utilizado por Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar, multiplicou-se em comentadores televisivos promotores dos respetivos partidos e futuros ou antigos primeiros-ministros.
 
portugaldemocracia1
 
 
O gráfico 1 mostra o resultado: mancha de cima são as abstenções, acrescidas dos votos em branco e nulos. As novas gerações praticamente não votam. Se lhes perguntamos, a esmagadora maioria não sabe nem quer falar de política. E pouca ou nenhuma ideia tem do que possa estar em jogo, em democracia. (O que não quer dizer que as gerações mais velhas estejam em melhor posição, mas votam mais. Como quem vota num clube de coração, mesmo a contragosto. Porque sempre é melhor do que deixar “os outros” ganharem, segundo a lógica do voto útil).
 
Esta situação permitiu o surgimento, em 1999, de um quinto partido, de jovens urbanos e de quadros intermédios, o Bloco de Esquerda, que aumentou votos nessa área mas, contraditoriamente, não conseguiu afirmar nenhuma influência ao nível executivo, nem enraizar social ou localmente nova atividade política.
 
O projeto europeu de segmentação territorial e social
 
Quando surge a crise financeira, em 2008, nenhuma alternativa política estava disponível para organizar uma reação política construtiva, a não ser o regresso ao passado, à solidariedade entre países e entre classes e entre gerações, através de uma política keynesiana que tinha acabado de ser derrotada. Em Portugal, a solidariedade da União Europeia (UE), reencarnação da CEE alargada e transformada, era tomada por certa e a política normalizada uma coisa para especialistas. Tudo se resolveria no seio das instituições europeias, usando a experiência dos partidos conservadores/liberais (que enformam o PPE) ou, dos sociais-democratas/socialistas (no seio do S&D), cujas delegações portuguesas também dominam a situação no país. A derrocada da URSS e o fim da Guerra Fria, em 1989, abrira um período histórico caracterizado pela vitória do neoliberalismo, negligente com a democracia e o estado de direito, nomeadamente a nível da corrupção, mas com influência crescente nos partidos dominantes. E, dada a falta de credibilidade das oposições, nada preparara os europeus para o impacto da crise na sua vida de todos os dias.
 
Numa primeira fase, entre 2008 e 2010, esperou-se por uma decisão do regime emanada da UE. Disputavam o terreno a solução keynesiana e uma catadupa de grandes projetos – aeroporto internacional Ota/Alcochete, Poceirão, nova ponte sobre o Tejo –, protagonizada pelo PS, contra a contenção nos investimentos, defendida pelo PSD (Dores, 2009). A primeira ganhou eleitoralmente, com o PS, em 2009. Na prática, porém, ainda com Sócrates em primeiro-ministro, vingou a desvalorização interna, pela austeridade, vincada pela interrupção da legislatura por parte do PSD, em 2011, com a conivência de amplos sectores do PS. O vencedor das novas eleições acompanhou, com vontade próprias (“Queremos ir além da troika!”) as decisões tomadas em 2010 a nível do topo da administração da UE. Acelerou-se a transferência para os trabalhadores das despesas da falência do sistema financeiro global, através da criação da dívida pública; politicamente justificada pelo fim da solidariedade entre os países europeus e pelas exigências subscritas por Sócrates, como último acto político, no memorando da troika relativo a Portugal. O país estava vulnerabilizado pela desindustrialização, pela desafetação de camponeses e pescadores das suas tarefas tradicionais e pela falta de soberania financeira, no quadro do Euro.
 
Paulatinamente, as populações de classe média foram-se apercebendo que a propaganda que tinha gerado a despolitização normalizadora anterior – uma versão revisionista da velha máxima de Salazar “a minha política é o trabalho” – não assegurava que os estudos e o mérito garantissem uma vida tranquila e justificadamente acima da vida dos pobres (ao tempo do começo da crise, os pobres foram calculados em 25% da população europeia e cerca de 40% em Portugal, antes das transferências sociais do Estado).
 
A prioridade assumida pelo regime vigente na Europa pela competitividade e pela exportação anunciou que deveremos passar a viver como os trabalhadores chineses, que bem conhecemos das suas lojas entretanto instaladas em Portugal. Em vez de beneficiarmos apenas dos preços baixos (correspondentes aos salários de alta exploração na China), por solidariedade internacionalista, os portugueses e os povos do Sul da Europa (tratados como PIIGS – acrónimo lançado para iniciar um processo de humilhação política de Portugal, Itália e Irlanda, Grécia e Espanha, comparados com porcos: preguiçosos, corruptos, sem qualificações, oportunistas, alimentados pelo trabalho dos outros, indisciplinados, etc.) passariam a experimentar o nível de vida dos chineses. Essa prioridade instilada como uma dívida dos países pobres aos países ricos, aprofundando a desigualdade entre eles, tornou-se um horizonte sacrificial inescapável, mesmo para a “geração mais bem formada de sempre”.
 
Sem dúvida que a situação de partida dos níveis de instrução dos portugueses antes do 25 de Abril eram muito baixos e houve uma natural e significativa melhoria desde então. Porém, a situação actual continua a colocar Portugal no fundo da escala europeia. Na cauda da Europa também e sobretudo em temos das qualificações escolares.
 
Tabela 1. População com 25 ou mais anos (%) com o 2º ciclo do secundário, o post-secundário não  superior e o superior (níveis 3-8)
 
 
 
1992
2002
2014
 
1992
2002
2014
 
UE (28)
nd
58,7
68,8
Hungria
nd
64,5
74,1
 
Zona euro (18)
nd
54,3
64,7
Irlanda
37
53,1
70,8
 
Alemanha
75,1
77,9
83
Islândia
nd
56,3
70,7
 
Áustria
nd
72,1
78,1
Itália
27,6
36,1
48,6
 
Bélgica
42,8
52
65
Letónia
nd
76,6
87,6
 
Bulgária
nd
61,8
73,8
Lituânia
nd
72,3
83,3
 
Chipre
nd
56,7
69,5
Luxemburgo
31,1
55,8
77,7
 
Croácia
nd
59,7
73,4
Malta
nd
16,4
35,8
 
Dinamarca
67,7
75,6
73,9
Noruega
nd
82,6
81,6
 
Eslováquia
nd
76,9
85,3
Polónia
nd
72
83,5
 
Eslovénia
nd
70,3
79,9
Portugal
16,9
16,7
34,2
 
Espanha
20
34,5
47,2
Reino Unido
49,2
66,1
77,6
 
Estónia
nd
81,9
89,8
Rep. Checa
nd
82
89,6
 
Finlândia
nd
64,7
76,4
Roménia
nd
60,7
63
 
França
nd
54,5
68,6
Suécia
nd
77,5
80,2
 
Grécia
30,9
44,4
56,3
Suiça
nd
77,3
84,6
 
Holanda
nd
62,5
69,5
Turquia
nd
nd
29.4
 
                                                                                             Fonte: Eurostat
 
Reações perante a re-hierarquização da Europa
 
A aplicação da austeridade teve momentos de reação espetaculares. Mega manifestações foram a reação a um activismo de convocatórias pela internet. Foi o período em que os sociólogos descobriram “novíssimos movimentos sociais”, isto é, falsos movimentos sociais (segundo as definições cunhadas nos anos 70) porque não havia nenhuma relação entre os manifestantes e os grupos que convocaram as manifestações. Estes últimos, em regra, dominados por quadros partidários de esquerda com objetivos circunscritos às conveniências conservadoras dos partidos, eivados de ideias messiânicas de condutores das massas e acesso aos media, fascinados com a ideia de as redes sociais poderem estar a substituir a acção política de massas. Por exemplo, a 15 de Setembro de 2012, a maior dessas manifestações, saiu à rua um milhão de pessoas em todo o país; 10% da população, incluindo cidades que nunca tinham visto qualquer manifestação política para dizer do descontentamento generalizado. O conservadorismo do momento revelou-se pela desorientação dos manifestantes em Lisboa, que encheram a Praça de Espanha e se perguntavam “o que fazer com isto”? Ninguém, na véspera, poderia dizer se essa manifestação seria mais um flop – como muitas anteriores – em que poucas dezenas de pessoas caminhariam juntas. As adesões declaradas à convocatória na internet eram muitas. Mas isso pouco quer dizer para a prática da mobilização física das pessoas. Meia hora antes da hora marcada para a manifestação, no pequeno largo José Fontana, a manifestação arrancou porque já não cabia tanta gente.
 
O presidente da república tinha acabado de conduzir, discretamente, um processo de transferência de poder de um dos partidos do arco da governação para o outro – não por acaso, o seu partido. O governo recém-eleito, mais uma vez, cumpria a tradição em prática desde o início do século: dava o dito, na campanha eleitoral, por não dito e preparava-se para legislar a descapitalização da segurança social, depois de diagnosticar as dificuldades de financiamento da mesma e de aumentar impostos; perdia de vista qualquer noção de garantias para o futuro das gerações a entrar na vida activa, quando as taxas de desemprego nesta faixa etária eram altíssimas e as oportunidades de emprego pagas com salários cada vez mais baixas; e, em simultâneo, decidiu fustigar os reformados, com cortes nas pensões e nos direitos à saída da vida activa, ao mesmo tempo que os encarregava de sustentar filhos e netos, desempregados, despejados. O governo envolvia, assim todas as gerações numa lógica de precariedade de vida e de lento genocídio, em que se tornava claro que o objectivo de convergência com os países mais ricos fora substituído pela convergência com os países mais pobres de outros continentes. Evidenciava também, como se havia observado com os imigrantes, sobretudo de Leste da Europa, que os estudos deixaram de assegurar compensações de estabilidade.
 
Foram mega manifestações de classe média, muito diferentes das da classe operária dos anos 70. Contrariamente ao observado naquele tempo, não há um desejo de poder próprio, de fazer greves ou uma contestação organizada. Bastavam reivindicações conservadoras, como a manutenção do status-quo, de salários e reformas. Ou exigir ingenuamente a antecipação da rotatividade dos partidos do arco da governação, sem discernimento para reconhecer que o poder residia na troika. Uma postura defensiva de manutenção de um estado social em desmantelamento surge mascarada de desejo revolucionário, para ocultar que de facto se procedia a um peditório. Simbolicamente, a persistente convergência das manifestações para a Assembleia da República revelava a ausência de contestação do poder e a crença na sua benevolência para com o povo; ao mesmo tempo que mostrava a condução política e logística dos partidos da esquerda do hemiciclo nas acções de rua.
 
Perante essa estratégia politicamente frouxa e sem resultados, houve esboços de tentativas de radicalização. Recordamos anúncios de uma marcha pela ponte 25 de Abril, uma ocupação do porto de Lisboa ou uma decisão de ocupar aquela mesma ponte na presença da polícia de choque. Tudo culminou sem glória nem responsabilidades. O ano de 2013 não voltou a manifestar-se.
 
Um dos resultados dessas manifestações, além de algum revigoramento da discussão de ideias repescadas do passado ou novas, sobre o que fazer, foram as retóricas sobre os alegados movimentos sociais – afinal simples respostas desorganizadas e fugazes ao activismo das convocatórias por internet, activismo que levou a sério a conversa tecno-vanguardista de ter sido o facebook o instrumento decisivo para a mobilização da Primavera Árabe. Faltou em Portugal a dimensão e a maturidade das movimentações sociais em Espanha e que vieram a justificar a Ley Mordaza: sintoma do medo a mudar de campo. Lei desnecessária em Portugal se se recordar a confraternização entre a polícia e os manifestantes na derradeira manifestação de outubro de 2013 do grupo “Que Se Lixe a Troika”, dos mais bem sucedidos nas suas convocatórias. Em Portugal não houve a diversificação de temáticas, nem criação de grupos locais, nem capacidade para alavancar algo como o Podemos em Espanha ou a chegada de Ada Colau à alcaidaria de Barcelona.
 
Ficou claro o desamparo popular face ao sistema político comandado a partir da União Europeia e, em particular, pelo governo alemão. Em breve, a luta das instituições contra a coesão social conheceria um novo patamar. A divisão de gerações e de sectores, estimulada pelo governo do Partido Socialista, foi continuada pela luta dentro do regime, com o ex-primeiro-ministro Sócrates e o seu aliado nacional, a família Espírito Santo, a serem mostrados em praça pública como criminosos, para sua humilhação e sinal de que o poder deixara, definitivamente, de estar com aqueles a quem chamavam “os donos disto tudo”. A banca nacionalizada no PREC e reentregue aos seus anteriores donos portugueses, durante o período de normalização, passou a estar em mãos estrangeiras, sinal da queda do poder do estado português no quadro europeu e global.
 
Os temores dos analistas que insistiam em interpretações nacionalistas das decisões de Bruxelas, nomeadamente em como os jogos de sombras por detrás da solidariedade pan-europeia eram substituições das tradicionais guerras entre a França e a Alemanha, a política como continuação da guerra, concretizaram-se de forma evidente e pública. Deixaram de ser apenas normativas comunitárias (capazes de atacar vinhos ou azeites portugueses, por exemplo) a preocupar especialistas de assuntos europeus.
 
A humilhação política dos povos do Sul da Europa, passou a ser o desporto favorito dos políticos europeus, bem representada pela expressão PIIGS. A dívida pública serviu de pretexto para inculcar nos povos uma culpa conhecida culturalmente como pecado original, sinal de decadência irremediável e justa, inerente a putativos defeitos congénitos a expiar com uma espiral de mais dívida, mais juros, mais reformas estruturais, sem fim à vista, sem objectivos práticos. Para evitar a falência dos bancos, fieis depositários da confiança no sistema (falido) acentuaram-se as clivagens no seio da UE, dentro e fora de fronteiras, arriscando derivas perigosas e inimagináveis.
 
No caso do governo de Passos Coelho, de que se vaticinava a queda eminente, não só chegaria ao fim da legislatura, como superou a célebre e bárbara recomendação aos jovens para que emigrassem. A retirada de apoios sociais, revelou a nudez da pobreza de 40% dos residentes e a magreza de um incipiente estado social. Todos os membros do governo usaram uma discreta mas visível bandeira nacional na lapela (provavelmente feita para turistas); embora ninguém se tenha atrevido a comentar a inversão de sentidos que tal prática estava a representar: o seu contraste com a postura subserviente face aos interesses estrangeiros representados pela troika.
 
Quando o governo do Syrisa, na Grécia, clamou por dignidade para o seu povo e fez reconhecer à UE a crise humanitária que se vive naquele país, essas foram vitórias de muita gente na Europa. Mas foram caladas por todos os governos europeus. Incluindo o governo protagonista desses vitórias na Grécia, depois do referendo ao povo grego ter manifestado a disponibilidade nacional de se opor aos diktat da UE. A continuidade das políticas de austeridade, apesar dos votos populares na Grécia, por serem repetições de outros votos igualmente impotentes em referendos e em eleições parlamentares, marcam o fim da ideia de democracia como vontade popular, na União Europeia; aliás já bem expressa no tratado de Lisboa e no tratado orçamental, como antes se verificara no desrespeito dos referendos que não aprovaram a proposta de constituição europeia. Esta situação de afirmação oligárquica autoritária europeia reproduz a experiência, em Portugal, dos mais velhos: “afinal sempre são iguais ao Salazar!”
 
Estado de espírito em Portugal
 
João Ferreira de Almeida (2013) elaborou contribuições para uma teoria das transformações bruscas, comparando a semelhança das condições sociais existentes em Portugal com as dos países do Leste Europeu, por terem indicadores socio-emocionais semelhantes entre si, apesar de poucas relações culturais existentes entre os extremos leste e oeste da Europa. “Única exceção da arrumação nos últimos lugares é, curiosamente, a satisfação com o trabalho (…) [ainda que] operários (…) reconheçam (…) os obstáculos que enfrentam para tomar posições políticas, por escasso conhecimento próprio desse campo” (op.cit.:240). As transformações bruscas, aponta o autor, criam ressacas sociais sucessivas. No caso português, o desajustamento entre as expectativas e as realidades apanharam a sociedade como aquelas pessoas ansiosas a quem os vigaristas contam o que elas precisam de ouvir e que, por isso, entram na síndrome de adoração da causa dos seus próprios sofrimentos (Mateus, 1996).
 
Almeida (2013:226-232) contabiliza quatro ressacas sucessivas: a) a das promessas automáticas de transformação, ou o trabalho de desmobilização política organizada pelas vanguardas revolucionárias, de que Salgueiro Maia (1997) faz menção no seu livro: b) a da normalização, em que o campo europeísta apresentou a ideia de passarmos a ser europeus, como prémio futuro da passividade favorável aos protagonistas políticos alinhados com o ocidente; c) a esperança incumprida de ser possível passar a viver em Portugal com o mesmo nível de vida dos países de acolhimento dos emigrantes; d) a alienação das relações com os novos países saídos das antigas colónias, por razões de acantonamento político dos então chamados terceiro mundistas, ao lado dos partidários da aliança com os soviéticos. 
 
Alvo de promessas e desilusões de um lado e do outro da Guerra Fria, Portugal foi campo cruzado de acolhimento de emigrantes que pensaram poder realizar o seu sonho de voltar a viver no seu país e de retornados à força, a quem as vidas africanas foram espoliadas, como diziam. O Portugal eufórico e revolucionário, que mobilizou o Sul da Europa e a América Latina para a democratização, afogou-se paulatinamente na incapacidade de acção: “(…) Portugal, em termos comparativos europeus, [está] mais do lado da conservação do que da abertura à mudança, e mais do lado da autopromoção do que do lado da autotranscendência” (Almeida, 2013:239). Foi como a história do pecado original: ao trincar o fruto da sabedoria – afinal o mundo podia transformar-se – confrontadas as esperanças com os constrangimentos, tornou-se aparente a complexidade da vida social e internacional. Entre os paraísos e os infernos imaginados e vividos por cada um, confrontado com o cenário de guerra civil, o país reconciliou-se abolindo as discussões ideológicas e a capacidade de decisão colectiva.
 
Os estudos da União Europeia (European Values Study — ESS) para este século mostram níveis de confiança interpessoal em Portugal muito baixos. Em 2013, o indicador “confiança nas pessoas” cifrou-se em 3,6, numa escala de 1 a 10, enquanto a Dinamarca atinge 7. A “percepção de honestidade” em Portugal ficou em 4,8; na Dinamarca em 7,3. Na “percepção da prestatividade das pessoas” Portugal teve 3,8; na Dinamarca 6,2. Jorge Vala, responsável pelos estudos da ESS em Portugal desde 2002, informa da permanência dos baixos índices de confiança em Portugal. Recorda ter estudado a possibilidade de haver erros metodológicos, a pedido da equipa internacional com quem trabalha nesses inquéritos. Mas o padrão tem-se mantido “sempre mais baixo do que o da maioria dos países da Comunidade Europeia, ficando Portugal próximo da Polónia e da Eslovénia” (Almeida, 2015). Um estudo realizado nos anos oitenta, em organizações formalmente cooperativas, revelou uma ansiedade que se transformava numa incapacidade de assumir responsabilidades, transferindo-as para um dirigente (Baptista, Kovács, & Antunes, 1985).
 
Durante décadas, portanto, os portugueses viveram da fama de revolucionários, quando na prática eram outra coisa. Mário Soares pode bem ser quem melhor encarnou essa dualidade brusca, traumática e difícil de compreender entre o “caminho do socialismo”, a que a própria direita parlamentar anuiu, e o “socialismo na gaveta” (Mateus, 1996). A prática neurótica de não chegar a horas a nenhuma reunião, típica do nosso país, merecedora de referência nos guias de negócios para estrangeiros (AAVV, 2014), poderá ser psicanaliticamente estudada como marca emocional da incapacidade de ser europeu, no sentido da pontualidade britânica, e da necessidade majestática de sinalização da superioridade das classes dominantes em Portugal.
 
Este trabalho quotidiano de marcação da hierarquia social pelo direito ao desrespeito não é apenas um tique cultural. É também um traço económico e político: “não se paga a horas, mas não há nenhuma penalização, nem jurídica, nem social, ninguém é ostracizado por isso”, disse Alexandre Relvas, empresário. Acrescentou: “não há uma valorização das obrigações sociais que resultam de compromissos assumidos com os trabalhadores” (Almeida, 2015). O comportamento de patrões e do aparelho da Segurança Social é disso revelador; muitos não pagam e quem são perseguidos são os que não podem pagar.[1] Depois o governo usa o dinheiro dos trabalhadores ali acumulado para despesas do estado. Misturando, como fazem muitos empresários, as contas pessoais com o dinheiro alheio de que é fiel depositário. Outro exemplo é o do fisco: chama-se Autoridade Tributária e é conhecida por tratar os contribuintes como delinquentes, a menos que sejam capazes de provar cumpriram as suas obrigações. Mas nem por isso a corrupção é um fenómeno controlado. E há quem tenha razões para afirmar que nem sequer foi combatido durante as últimas décadas.
 
No que o poder de estado está focado não é servir os contribuintes, correspondendo aos interesses comuns que haja. Foca-se em afastar o mais possível qualquer controlo democrático sobre a sua actividade, judicial ou executiva. Qualquer avaliação independente é sistematicamente ostracizada e controlada pelas “autoridades” avaliadas. De um modo geral, toda e qualquer iniciativa cívica, em vez de incentivada, ou é controlada por alguma das organizações secretas, geralmente com ligações partidárias, ou é pressionada para fins de controlo por parte dos poderes fácticos. É verdade que as regras europeias de relacionamento entre as ONG e o estado vão introduzindo alguma mudança neste aspecto e que há serviços de estado com uma cultura de serviço. Mas andorinhas não fazem a primavera. E os efeitos opressivos das autoridades portugueses sobre as populações faz-se inequivocamente sentir (Gil, 2004).
 
Na mudança de século, Manuel Villaverde Cabral registou que “dois terços dos portugueses dizem que temos medo de exprimir as nossas opiniões em voz alta acerca do Governo”. Segundo Lídia Jorge, há “medo de ir para a rua” e não há capacidade para erguer “organizações cívicas credíveis e com continuidade” (Almeida, 2015).
 
Serão os portugueses geneticamente diferentes dos espanhóis e dos gregos? Ou haverá uma estrutura social organizada que, apesar do grande combate à misoginia levado a cabo no país nas últimas décadas, tem conseguido manter – por exemplo, através da influência de organizações discretas e eminentemente patriarcais, como a Opus Dei ou as Maçonarias – o prestígio social da hierarquização (por mérito, mas sobretudo por nascimento e condição)?
 
De uma maneira ao mesmo tempo radical e realista, Manuel Villaverde Cabral afirma: "O grande drama da democracia — o catching up educativo ter totalmente falhado” (Almeida, 2015). O valor do mérito pelo esforço ou pelos resultados continua a não ser contemplado e reconhecido em Portugal, como tradicionalmente não o foi. Apesar de as famílias portuguesas serem, consistentemente, daquelas que na Europa mais investem (relativamente às suas possibilidades) na educação dos mais jovens, as políticas do estado têm sido recorrentemente reféns das preocupações de distinção de classe. Distinções que se espelham na separação e diferenças de tratamento entre ensino público e privado, ensino universitário e politécnico, e na ansiedade com que políticos de topo, como os Sócrates ou os Relvas, procuram credenciais universitárias para se sentirem melhor entre as elites a quem prestam serviços.
 
A credenciação é, em Portugal, muito mais importante do que a aquisição do gosto por cultivar conhecimentos, sensibilidades e princípios éticos. É comum a referência a leituras em diagonal de um texto considerado mais longo ou a requerer algum esforço interpretativo; e daí o papel “educativo” das muitas horas de televisão e dos comentadores encartados, credenciados pelos partidos. Para as famílias, os estudantes continuam a “perder anos” e a entrada ou a saída das universidades são vividos como actos heróicos, que a popularidade das praxes académicas marca e ridiculariza. Onde os valores da hierarquização, do patriarcalismo, da dissimulação em sociedades secretas e o medo da autoridade são precocemente cultivados, afirmados, legitimados, com naturalidade. Essas formas de inculcação ideológica é apoiada pelas forças políticas dominantes, nomeadamente através das universidades e das associações de estudantes.
 
Referências bibliográficas:
Almeida, J. F. (2013). Desigualdades e Perspectivas dos Cidadãos – Portugal e a Europa. Lisboa: CIES – IUL - Mundos Sociais.
Almeida, S. J. (2015, June 14). Portugal, um país de tectos baixos. Público. Lisboa. Retrieved from http://www.publico.pt/portugal/noticia/retrato-da-desconfianca-portuguesa-1698719
Baptista, J., Kovács, I., & Antunes, C. L. (1985). Uma gestão alternativa: para uma sociologia da participação nas organizações, a partir de uma experiência portuguesa. Lisboa: Relógio d´Água.
Dores, A. P. (2009, November). Avançar ou Travar. Revista Autor. Retrieved from https://sociologia.hypotheses.org/237
Gil, J. (2004). Portugal, Hoje: O Medo de Existir. Lisboa: Relógio de Água.
Maia, S. (1997). Capitão de Abril - Histórias de guerra do ultramar e do 25 de Abril. Lisboa: Diário de Notícias.
Mateus, R. (1996). Contos Proibidos - memórias de um PS desconhecido. Lisboa: D. Quixote.
Pereira, J. P. (2014). A CORRUPÇÃO POLÍTICA E OS MEDIA – UMA PERSPETIVA COMPARADA. Retrieved from http://www.cimj.org/revista/26/josepacheco.pdf
Pereira, R. V. (2015). IGFSS - a extorsão organizada a nível estatal. Retrieved September 4, 2015, from http://youtu.be/leMbI6SG4q0
Wilkinson, R., & Pickett, K. (2009). The Spirit Level – why more equal societies almost always do better. London: Penguin Books.
 

[1] A dívida para com a Segurança Social é de € 11574 M e corresponde a 12 meses de pensões. Desse valor somente uns € 500 M cabem a beneficiários e pequenos trabalhadores independentes mas são estes que se acumulam aos balcões das secções executivas da instituição (R. V. Pereira, 2015).

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