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EstelaEntrevistaArgentina - Opera Mundi - [Vanessa Martina Silva] Desde a recuperação de Ignacio Montoya Carlotto, em agosto de 2014, oito netos foram encontrados pelas Avós da Praça de Maio.


O trabalho de identificação e cruzamento de DNA para verificar se uma pessoa é uma das cerca de 500 crianças sequestradas, filha de uma das militantes desaparecidas e/ ou mortas durante a última ditadura militar, é lento e complexo. A comoção e mobilização em torno do encontro do neto da presidente e fundadora da associação, Estela de Carlotto, funcionou como impulsionador da causa e desde então a média de reencontros quase duplicou nos últimos 16 meses.

As Avós da Praça de Maio buscam pessoas que hoje tenham entre 35 e 40 anos e alguma dúvida com relação ao passado, à sua filiação. São cerca de quatro décadas de atuação para tentar encontrar as crianças desaparecidas. Em entrevista concedida a Opera Mundi, Estela conta que cada neto recuperado tem sua própria forma para lidar com esse processo. "Uns rechaçam, outros aceitam. Uns demoram dias, outros, anos", diz. A instituição, no entanto, oferece todo apoio necessário para que a recuperação da identidade seja concluída de forma não traumática.

“Os netos que duvidam da sua identidade e que realmente são os netos procurados têm uma necessidade da qual não podem se esquivar de buscar [a verdade] porque há algo dentro deles que não encaixa”, diz a presidente da associação.

Primeiros anos

Considerada uma das maiores expoentes na luta em defesa dos direitos humanos na Argentina, Estela começou a militância por um desmando do destino. Professora, com quatro filhos, casada e com uma vida estável, classificada por ela mesma como “uma vida platense, burguesinha e tranquila”, viu tudo desmoronar com o começo da ditadura militar no país em 1976. O posterior sequestro de seu marido, Guido Carlotto, no ano seguinte, a fez entender o que era o terrorismo de Estado.

Laura, sua filha mais velha, militava na juventude peronista e, após o sequestro do pai, decidiu entrar na clandestinidade. Meses depois, no entanto, foi presa quando estava grávida de dois meses. Ela deu à luz em 26 de junho de 1978 a um bebê que só viu por cinco horas. Dois meses depois e após uma longa busca, o corpo de Laura foi entregue à família.

Estela não sabia que a filha estava grávida. A notícia foi dada por uma companheira de cela que foi libertada. Ao tomar conhecimento do fato, outra mulher nasceu. "Aí nasceu outra Estela. Uma Estela diferente. Sim, uma Estela feita da mesma massa, mas que toma posições, que tem atitudes diferentes”, disse, em entrevista concedida à jornalista Martina Noailles em 2005.

Assim, uniu-se às outras mães que se mobilizavam para encontrar os filhos desaparecidos por ação dos militares e resolveu empreender uma luta para reencontrar o neto que acreditava estar vivo. Pelo levantamento que fizeram junto às outras mães e com base em depoimentos de sobreviventes, cerca de 500 crianças foram separadas de suas mães logo após o parto e entregues, em sua maioria, para famílias de militares.

Identidade

Desde 1987 a Argentina conta com um Banco Nacional de Dados Genéticos, que contém dados de todas as avós e familiares que acreditam ter netos desaparecidos e vivos.

Em 1980, a médica psiquiátrica e psicanalista Paulina Redler cunhou o termo "avoengo" [similar à paternidade, se refere ao vínculo e função do avô com respeito ao neto e os efeitos psicológicos do vínculo] e, três anos depois, a pedido das avós, a geneticista norte-americana Mary-Claire King criou o "índice de avoengo" para determinar a identidade dos netos, uma vez que era impossível obter o material genético dos pais desaparecidos.

A visibilidade da organização é fundamental nesse processo, conta Estela. "Cada encontro que divulgamos, que publicamos, motiva outros a buscarem suas histórias porque têm dúvidas. Fazemos tudo o que temos que fazer até que o sangue diga a verdade", diz.

“Ainda falta muito’’

Apesar de reconhecer os avanços que a Argentina conseguiu ter com relação ao tema, Estela destaca que “ainda falta muito”. "Falta autorizar a realização de exumações em todo o país, a condenação de civis e militares”, afirma, e ressalta que “apesar de a Justiça ser independente, a vontade do [poder] Executivo conta”.

Com relação ao que pode ocorrer com esse processo durante o governo do presidente recém-eleito Mauricio Macri, que, em declarações durante a campanha eleitoral, disse que acabaria com o "curro" [termo perjorativo para designar trabalhos realizados sem esforço e com o qual se ganha muito dinheiro] dos direitos humanos, Estela ressaltou que espera ser recebida por ele. "Queremos que ele explique que projeto tem sobre os direitos humanos em seu mandato de quatro anos porque não o conhecemos, não disse uma palavra sobre isso, apenas essa expressão infeliz de ‘curro’, que é muito ofensiva e não diz nada”.

Ainda com relação ao futuro durante a gestão de Macri, Estela destacou que seguir com os julgamentos, como o mandatário afirmou que fará, “é importante, mas não é somente isso. Temos muitas coisas ainda para resolver”.

Quanto às expectativas para o recém-iniciado governo, ela diz que, quando Macri foi prefeito de Buenos Aires (2007-2015), "nunca fez nada". "Nos custou muito o pouco que conseguimos na cidade. Foi muito difícil conseguir recursos para o Fundo da Memória. Penso que é preciso obrigá-lo e vamos fazer. Seremos encarregadas disso", afirma.

Direitos humanos

“A Argentina tem um mérito internacional por ser o país que mais fez no tema da 'Verdade, Justiça e Memória'. Nenhum país da América Latina conseguiu isso, nem mesmo o Brasil, que instalou a Comissão da Verdade”, ressalta. Mesmo assim, nos últimos tempos um movimento contrário à luta pela reparação e condenação dos militares e civis, que atuaram durante o regime de exceção, começou a aflorar no país.

O ápice desse movimento ganhou forma no editorial do jornal La Nación, que chamou de “vergonhosa” a prisão de militares que agiram durante a ditadura. “Por estarem muito velhos para estar presos”, a medida representaria uma “vergonha nacional” e os novos tempos são propícios para “terminar com as mentiras sobre os anos 1970”, diz o jornal.

Sobre o posicionamento do periódico, Estela comenta que não fica assustada. "Não nos assusta que o La Nación faça esse artigo porque é um diário opositor aos direitos humanos. Eu gostaria de acrescentar a ele o slogan do Clarín. Antes dizíamos Clarín mente. Agora temos que acrescentar que o La Nación mente porque aproveita a oportunidade de um novo presidente para semear a discórdia porque se elabora a teoria dos dois demônios."

Tal teoria se refere à defesa de que, durante a ditadura, houve dois terrorismos: o terrorismo de Estado, praticado pelos militares, e o terrorismo da militância. Estela é taxativa sobre a questão. "Nossos filhos não eram terroristas. Eram conscientes de que era preciso mudar as coisas nesse país”. E acrescenta: “Claro que não os convém [ao jornal] que isso siga sendo investigado porque terão que prestar contas de algo à história. Isso é assim. Em um país democrático não se pode jogar o lixo para debaixo do tapete."


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