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270216 merendaBrasil - Outras Palavras - [Irlan Simões] Em meio à decadência técnica e à corrupção dos dirigentes, ressurge o protesto plebeu das torcidas organizadas. Por que se calaram antes. Como velha mídia tenta demonizá-las.


Os recentes protestos da Gaviões da Fiel foram fundamentais para retomar um debate necessário para o futebol brasileiro: a participação política dos torcedores dentro e fora dos estádios e dos clubes. A partir de pautas diversas, a principal torcida organizada do Corinthians, uma das maiores e mais antigas do Brasil, possibilitou novamente vislumbrar e entender o potencial de mobilização e contestação dessas agremiações.

Numa das bandeiras levantadas na recente onda de protestos, a Gaviões da Fiel atacou de forma direta a figura de Fernando Capez (PSDB). O deputado se notabilizou, desde os anos 1990, em perseguir as torcidas organizadas paulistas, e agora é acusado de cobrr propina para fechar contratos de empresas terceirizadas de alimentação para escolas públicas de São Paulo. A frase “quem vai punir o ladrão de merenda”, presente em uma das faixas da torcida, inverte a lógica e coloca em xeque o papel do promotor Roberto Senise Lisboa, histórico perseguidor e responsável por diversos pedido de proibições das “organizadas”.

Outra faixa dos protestos dos Corinthians recorria à necessária e indispensável crítica à alta absurda dos preços dos ingressos no Brasil, que se tornaram insustentáveis ao torcedor comum e que, tal e qual os espaços “revitalizados” das grandes cidades brasileiras, têm servido para expulsar dos estádios seus usuários originais com vistas a atrair um público consumidor de passagem, alheio ao futebol. Por terem acordos de cessão ou subsídios de ingressos com as diretorias dos clubes — totalmente justificáveis pelo investimento de tempo e recursos na preparação das belas festas nos estádios — a grande maioria das torcidas praticamente não sentiu a alta dos preços, abstendo-se desse debate por um longo tempo.

Por fim, a crítica feita aos horários dos jogos vem somar numa luta recente, também impulsionada pelo Coletivo Futebol, Mídia e Democracia. Contesta-se a obrigação da realização de algumas partidas às 22h das quarta-feiras, para adequar o futebol à grade de programação da Rede Globo, detentora do direitos televisivos desse jogo no país. A questão do horário é apontada como uma das principais causas do esvaziamento dos estádios, principalmente nas grandes cidades, onde o serviço de transporte público se encerra à meia-noite, horário em que o jogo acaba. Além disso, óbvio, o horário é totalmente inadequado para trabalhadores que levantam mais cedo.

Em suma, parece que, finalmente, depois de vinte anos de ataques e criminalização, as torcidas organizadas estão dispostas a ir pra cima, e o momento é extremamente favorável diante da desmoralização dos seus principais detratores e da crise da própria CBF, cuja serie de denuncias de corrupção também foi uma das pautas dos protestos da Gaviões. A articulação de cerca de 70 torcidas em torno da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg) pode impulsionar esse movimento de uma forma sem precedentes e dar uma nova cara ao futebol brasileiro.

O complexo mundo das Torcidas Organizadas

Para pensar e debater esse possível levante das “organizadas”, é preciso ir além do trivial discurso de demonização dessas agremiações, esforço que sempre foi feito nessa coluna1. Aqui a análise que será feita refuta qualquer tipo de discurso criminalizador, ainda que se reconheça o papel negativo que os conflitos violentos dentro dos estádios causam não só às organizações e ao seus próprios membros, mas aos torcedores como um todo. Pensar e debater as torcidas exige abrir mão de preconceitos e superar a recorrente visão maniqueísta da realidade.

A verdade é que fazia, e fez, muita falta o engajamento dessas agremiações para todos os amantes do futebol. Os retrocessos quanto à produção da Copa do Mundo – e também os que a antecederam e a sucederam – significando uma série de agressões e retiradas de direitos dos torcedores de futebol, poderia ter sido muito reduzidos se as torcidas estivessem atuantes nas ruas e estádios.

Infelizmente passamos por um período muito nebuloso. Para sobreviver à criminalização dos órgãos de segurança pública, de promotores exibicionistas do Ministério Público e parlamentares carentes de pautas no executivo; as torcidas precisaram adotar uma postura mais defensiva. Por um lado, evitavam demasiada exposição e confronto direto com tais órgãos, aceitando medidas baseadas em contrapartidas, como o bom comportamento resultar em maiores permissões de uso de materiais como percussão e faixas e bandeiras.

Por outro lado as “organizadas” viram-se necessitadas de suporte interno dentro dos clubes, conquistando (e nunca se submetendo, frise-se) a aliança de cartolas e outros nome fortes. Essas relações, repletas de contradições, são justificáveis se analisado o histórico que marcou os anos 1990 e 2000, evitando uma leitura superficial e viciada como a utilizada nos principais jornais esportivos do país.

As torcidas da virada dos anos 1960/70 surgiram para pressionar e contestar os dirigentes do futebol (“cartolas”), mas são raros os casos em que se prontificam a interferir de forma mais incisiva na gestão do clube. Desde aqueles tempos há registros de protestos contra o aumento do preço dos ingressos, o favorecimento de figuras públicas às custas do clube, de jogadores indesejados etc.

Em seu livro O clube como vontade e representação: O jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol no Rio de Janeiro (1967-1988), o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda faz um profundo levantamento dessa militância torcedora em outros períodos. Registra-se o canto “A torcida organizada / Derruba a cachorrada!”, partindo do grupo Poder Jovem do Flamengo, ainda no remoto ano de 1968.

Na primeira quadra dos anos 1980 foram promovidas diversos boicotes, organizados pela Associação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (Astorj) pela diminuição do preço dos ingressos nas arquibancadas. Fizeram-se piquetes, barraram-se bilheterias, ocupou-se as antigas “gerais” (setor de ingressos mais baratos, hoje extinto) para protestar com faixas e palavras de ordem. É nesse período em que se nota o principio da postura criminalizadora da grande imprensa, quando passa a dar visibilidade apenas aos eventos de vandalismo e confronto físico, ocultando as pautas das torcidas e suas ações de protesto.

Portanto, ao pensar a relação com base em interesses econômicos das diretorias dos clubes para com as torcidas organizadas, é preciso compreender que não foi nada dado de mão beijada. As torcidas sempre engrandeceram os clubes, inclusive em momentos de fraqueza, e isso deve ser levado em conta a todo instante. Trata-se de um processo muito longo de conquista de força e relevância política, coisa que falta à maioria dos críticos ferrenhos das agremiações. E é preciso, antes de tudo, pensar no estrato social que compõe essas entidades e no certo ineditismo de protagonismo político que isso representa numa sociedade excludente como a brasileira.

Para além das “organizadas”

O mais interessante desse momento atual é que essa militância também está sendo praticada por outros agrupamentos, certamente menores e menos influentes que as torcidas, mas igualmente importantes na construção de um futebol mais democrático do ponto de vista dos torcedores2.

Diversos movimentos, coletivos e grupos estão surgindo relacionados aos seus clubes, reeditando os esforços recentes feitos pela Associação Nacional dos Torcedores e da Frente Nacional dos Torcedores. São movimentos autônomos, independentes e formados por torcedores comuns que não estão relacionados com os tradicionais grupos políticos dos clubes que pertencem.

No Rio Grande do Sul, o grupo Povo do Clube, ligado ao Internacional, tem se posicionado desde 2012 com firmeza contra a elitização do Beira-Rio, estádio próprio transformado em Arena para a Copa. O grupo, aproveitando o espaço político na instituição, elegeu 16 conselheiros com uma plataforma que defendia o acesso dos torcedores mais pobres, além da ampliação da democracia no Internacional.

Em Belo Horizonte, o grupo Resistência Azul Popular, do Cruzeiro, tem travado uma luta contra os gestores do Mineirão, antigo estádio público que também virou Arena para a Copa. O grupo questiona a concessão feita à iniciativa privada, além dos altos valores praticados nos ingressos.

Já em São Paulo, o grupo Dissidenti vem questionando a política dos preços praticada pela diretoria do Palmeiras, clube que também reformou o seu estádio, gerando grande animação na sua torcida. Ainda que não relacionada à Copa do Mundo, a nova casa do clube alviverde é baseada no mesmo modelo de arena multiuso. O Dissidenti tem um perfil diferente dos outros dois citados, por não se reivindicar enquanto “grupo político”, tendo um caráter mais heterogêneo. No entanto, tem como consenso entre seus membros a defesa da democratização do Palmeiras e a crítica ao alto custo para acessar o novo estádio.

Em Salvador o grupo Frente 1899 protagonizou a reunião de diversos agrupamentos que lutavam pela democratização do Vitória, resultando num processo intenso de embate que hoje divide o conselho do clube e tende a avançar. Os torcedores reivindicam o direito de voto e de elegibilidade de sócios-torcedores, algo prometido pela diretoria há cerca de 5 anos.

Tantos outros exemplos podem ser achados em cada clube, potencializados pela facilidade de troca de informações e de circulação de conhecimento que as redes sociais tem proporcionados até então. Movimentos de resistência torcedora estrangeiros também têm sido importantes e inspiradores nesses processos, antecipando uma serie de contradições e conflitos que podem acontecer com o avanço da mercantilização excessiva do futebol brasileiro.

O direito ao estádio e ao clube

Se a esquerda brasileira ainda tem alguma contribuição a dar sobre o tema do futebol (se é que ainda lembra que ele existe apesar do fim da Copa do Mundo), é com relação ao direito ao estádio e direito ao clube, inseridos na luta mais ampla e já consolidada de Direito à Cidade.

No futebol, as demandas transformadoras partem dos torcedores, muito mais do que os próprios atletas. Ainda que se elogie e se reconheça a importância da luta empreendida pelo movimento Bom Senso FC, que vem buscando defender os direitos dos atletas (ainda que tenha limites de apenas atentar para o topo da pirâmide), é preciso entender que suas conquistas quase não dizem respeito aos torcedores. São apenas referentes aos direitos trabalhistas dos jogadores e, quando muito, à busca por transparência e lisura na gestão do esporte-negócio, sem qualquer tipo de influencia ou contestação à ultra-mercantilização do jogo.

Por isso, é tão necessário distinguir o papel da organização torcedora e do movimento dos jogadores. São elementos do comum cultural que estão em jogo, e é a partir deles que devemos enxergar a luta que deve ser empreendida.

Se o direito ao estádio – critica ao alto preço dos ingressos, ao cerceamento da festas e imposição de um modelo de estádio – acabou ganhando notoriedade com a construção dessas arenas higienistas e elitizantes; o momento agora é avançar a pauta para a questão do direito ao clube, que é mais urgente ainda. Estamos falando da democratização das instâncias diretivas de instituições civis centenárias que seguem extremamente restritas e autoritárias; afastando os torcedores mais comuns de qualquer possibilidade de tomada de decisões.

A conjuntura dessa militância torcedora plural, nacionalizada e um tanto quanto dispersa nos leva a crer que uma é necessária e urgente uma organização supraclubística e ampla, com um formato que permita a autonomia de ação de cada organização, ao mesmo tempo que congregue as forças e dê maior vazão às ações de protesto. Eis um desafio para atuação geração de torcedores de futebol.


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