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David HarveyO Diário - [Vicente Medel, Herijan Fernandez, Nicolas Slachevsky, CARCAJ - 15/12/14] Que o capitalismo se apresenta hoje não apenas como um sistema de desenvolvimento económico, mas também como uma forma de organização do território e do nosso modo de o habitar, é algo que, cada vez mais, se torna visível na acelerada transformação das nossas cidades.


A lógica da maximização do rendimento do solo, finalmente reduzido à condição de uma mera mercadoria, mobiliza constantemente a forma destas, submetidas ao vaivém dos fluxos de capital no mercado das imobiliárias. E a expulsão paulatina das famílias de baixos ou moderados recursos para as margens de uma cidade afastada é apenas uma das maneiras em que esta condição do nosso tempo se traduz numa paisagem vital concreta. A realidade material deste capitalismo internacional brutalmente neoliberalizador está e manifesta-se numa crise agónica da vida na cidade. Desse modo, a necessidade de interpretar o capital a partir do seu aspecto mais material e quotidiano torna-se evidente, e assim, a reflexão tem que abandonar o seu terreno puramente teórico para possibilitar um regresso ao comum. Ou seja, deve olhar-se à volta, para o crescimento explosivo dos edifícios, para o terramoto macroeconómico de uma utilização cada vez mais rentável do solo de uma cidade cada vez mais díspar.

Se no terreno do pensamento marxista alguém já colocou a questão da cidade, abrindo-se ao problema vital da geografia como forma de organização do território, esse é David Harvey. Nos seus 79 anos, este teórico social e pensador marxista inglês continua a ser uma referência viva dentro do pensamento anticapitalista, dedicado a estudar o movimento global dos fluxos de capital e a determinação geográfica que estes operam, sendo como tal considerado um dos principais expositores da corrente da geografia crítica.

Em princípios de Novembro Harvey, convidado pela Academia de Humanismo Cristão, esteve no Chile para trabalhar com grupos locais de geografia crítica e dar uma série de conferências muito concorridas. Neste contexto, e graças à equipe do Departamento de Geografia da mesma universidade, tivemos a oportunidade de colocar ao geógrafo inglês algumas perguntas sobre a possibilidade de contestar o controlo hoje quase absoluto dos interesses capitalistas na organização da realidade urbana, assim como sobre a condição geográfica do pensamento dos nossos dias.

Carcaj: Diferenciando-se de um pensamento marxista por vezes excessivamente sujeito às possibilidades explicativas de sistemas puramente conceptuais, há no seu trabalho uma consideração permanente das condições históricas concretas, por exemplo no rastreio dos movimentos materiais de capital. Em relação a esta ideia gostaríamos de saber as suas perspectivas sobre o trabalho académico, particularmente tomando em consideração a existência de uma certa divisão internacional do trabalho de investigação, que deu numa espécie de obrigação de pensar a periferia a alargar-se a conceitos importados a partir do centro. A pergunta está principalmente pensada a partir das condições das humanidades, na academia chilena pelo menos, em que na realidade não estudamos o nosso pensamento ou a nossa história apenas na medida em que somos capazes de mediar a sua análise pelo uso de conceitos europeus importados... Ou seja, não podemos fazer uma análise concreta da nossa existência política, pois optamos principalmente por importar conceitos políticos e centrarmo-nos em comentários de textos.

Harvey: Correcto, correcto... Bom, que a geografia da produção do conhecimento seja desigual é algo que deve ser reconhecido: os senhores devem estudar conceitos europeus, mas isto é algo que acontece hoje por todo o lado... E há que decidir que frequentemente é bom. No sentido de que as pessoas numa parte do mundo chegam a algumas conclusões, trabalham conclusões que pessoas de outros lados encaram de maneira muito diferente, e o que acontece então é que se abre a possibilidade de um diálogo entre essas perspectivas diversas que é, em minha opinião, muito, muito útil.

Penso que obviamente nas humanidades houve uma longa luta, mesmo nos Estados Unidos, sobre em que medida deveria a gente das humanidades estudar a literatura africana, por exemplo, ou a chinesa, a latino-americana, etc.,... e nesse sentido houve uma intenção de alcançar uma concepção mais multicultural, de modo que hoje não apenas se estudam autores europeus, como autores de muitos outros países, o que me parece importante. Mas para além disso, há que reconhecer também que o capital é capital, para onde quer que vá. Há uma certa universalidade no que faz o capitalismo. E isso implica uma monotonia particular. Por exemplo eu viajei para muitas cidades e em Santiago, por vezes penso, estou em Santiago ou em São Paulo? E em São Paulo penso que estou em Xangai, ou quando estou em Xangai pergunto-me se estou em Nova Iorque, etc... Ou seja, o capitalismo está homogeneizado, em muitos sentidos. No estilo dos edifícios por exemplo, o estilo arquitectónico, de modo que as cidades chinesas se parecem com as cidades norte-americanas, só que mais rápidas e maiores, e têm bairros privados onde vivem as pessoas influentes, como também têm esses grandes bairros nos arredores de Santiago. Então perguntamo-nos em que medida aqui é diferente de lá, ou do que há na Califórnia, e por aí fora...

Ou seja, o que acontece nesta era de globalização é uma marcada homogeneização no estilo do desenvolvimento urbano: as cidades tendem a parecer-se umas com as outras. E esta é a realidade da vida urbana... Eu gosto disso. Mas penso que é importante conservar a máxima diversidade viva possível, a nível cultural, mas não se pense que de algum modo vamos estar fora da dinâmica capitalista, sem pelo menos conseguirmos estabelecer um verdadeiro grau de autonomia. Por isso parece-me muito interessante, por exemplo, que pelo mundo fora existam hoje esses movimentos de autonomia, como na Catalunha, Escócia, ou mesmo na Baviera, dizendo coisas como «queremos ter a nossa própria maneira de viver» ou «queremos ser diferentes» ... porque aquilo que não reconhecem é que não se pode ser tão diferente sempre, não quando temos o capitalismo... Mas há aí algo interessante, algo politicamente significativo. Inicialmente não apoiei a independência escocesa, por exemplo, mas quando percebi que não era um movimento nacionalista, mas sim um movimento que apresentava o desejo de criar um Estado alternativo muito mais orientado para satisfazer as necessidades das pessoas, e que queria abandonar as políticas de austeridade impostas pela Inglaterra, por Londres, então pensei, «OK, vou apoiar». Com a Catalunha é diferente, porque é a parte mais rica de Espanha. É como se os bairros privados decidissem abandonar o resto da cidade para não pagar imposto.

Carcaj: Nós pensávamos em Santiago como um exemplo da regulamentação descentralizada do espaço propriamente capitalista, exercida principalmente a partir do interesse económico, que tende a reproduzir padrões de desigualdade crescente e segregação. Essas tendências parecem hoje radicalizar-se a um ritmo importante, por exemplo na eliminação dos espaços públicos abertos e no aumento do planeamento privado da cidade, dirigindo tudo para a produção de valor capitalista, ou até para a mesma falta de uma consideração explícita do problema urbano no movimento social. Como resistir a este processo em marcha e como pensar a cidade a partir de um lugar alternativo ao dos interesses do capital?

Harvey: Para mim, a única resposta é conseguir movimentos sociais fortes que consigam articular uma visão radicalmente distinta do que a via urbana deveria ser. Uma das razões por que apoio a ideia do direito à cidade é porque me parece uma alternativa que permite uma grande diversidade de pessoas que trabalham em temas diversos, como a luta contra a elitização dos bairros, o direito à habitação, o problema dos sem-abrigo, e que podem aparecer unidas para dizer que juntos podemos criar uma perspectiva de urbanização alternativa que não esteja dominada pelo poder do dinheiro e seus mecanismos crescentes de vigilância, os mecanismos de controlo efectivo e até repressão policial quase instantânea que vemos hoje em dia. Porque o que vemos é uma militarização crescente da vida urbana, uma sofisticação cada vez maior das forças policiais e do seu armamento, o qual é utilizado contra a população. Nesse sentido também me parece importante achar que tem de haver um desarmamento das forças policiais. Não podemos deixar que haja uma força que está ali simplesmente para reprimir os protestos. O que deve existir é uma força ao lado da população, em oposição às forças que actuam contra a população, e a conquista deste direito depende completamente do equilíbrio do poder político. Assim, quanto mais governos progressistas existirem que comecem a controlar a violência policial, mais capazes seremos de começar a responder a tais problemas.

Carcaj: Claro, a questão do governo e do Estado em geral não deixa de ser importante neste caso, no sentido de que, embora falemos de uma espécie de planeamento privado da cidade, o que afirmamos indica também a preocupação pelo facto de haver figuras públicas envolvidas nessa ideia de promover mais espaço de especulação urbana, de modo a que o mesmo Estado pareça fortalecer esta vontade de deixar todo o controle desses temas, que antes correspondiam ao que tratava da política de um governo, em mãos exclusivas dos interesses capitalistas.

Harvey: Sim, é um facto que o Estado está cada vez mais controlado pelos interesses capitalistas de classe e já há muito tempo Marx afirmou que o estado é o comité executivo da burguesia... E com efeito, provavelmente mais do que nunca, mais do que antes na história ele é um comité executivo dos interesses da classe capitalista. E enquanto esta puder controlar os processos eleitorais através do poder do dinheiro, mais ainda, este tipo de pessoas que se tornam figuras públicas, podem fazê-lo porque estão inteiramente apoiadas pelo dinheiro da classe capitalista, que lhes permite realizar os seus programas, fundar os seus partidos, etc...

Há uma frase sarcástica que Marx Twain pronunciou uma vez, que o congresso dos Estrados Unidos é o melhor congresso que o dinheiro pode comprar. E não só é verdade, mas até o governo é o melhor governo que o dinheiro pode comprar. E é o grande dinheiro que o compra. Assim, mesmo nos Estados Unidos, por exemplo, é nojento como o governo cedeu o controlo ao dinheiro. A classe capitalista não só controla o estado e os políticos, como também controla os meios de comunicação, e a seguir outros níveis de poder e da sociedade e por aí fora. Aqui, em minha opinião, só um movimento de massas que se oponha firmemente pode conseguir mudanças, e na verdade já existe um grande descontentamento para com esta situação. Quando vemos o que aconteceu no Brasil no ano passado, centenas de cidades, milhares de pessoas nas ruas, o que aconteceu na Turquia, de modo bastante surpreendente considerando que em Istambul há um poder muito autoritário, podemos verificar que nos últimos quinze anos tem havido uma série de explosões urbanas de descontentamento.

É verdade que estas explosões até agora têm sido apenas explosões, sem continuidade, mas se conseguirem ter continuidade, vamos começar a ver essas políticas alternativas a emergir, e as coisas a ficarem literalmente diversas. Em todo o caso, enquanto este descontentamento não conseguir articular-se num movimento sólido, vai ser difícil e há que considerar também que hoje, uma boa parte deste descontentamento na Europa está a ir para a extrema-direita. Podemos ver assim o aparecimento de um movimento fascista na França, na Hungria, na Grécia e noutros países. E se o descontentamento se inclinar para lá, o que a esquerda tem de dizer é: Venham para cá!

Tradução: Manuela Antunes.


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