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150210_sustentabilidade.jpgGalizalivre - Diversas matrizes discursivas têm sido associadas à noção de sustentabilidade desde que o Relatório Brundtland a lançou no debate público internacional em 1987.

 


 

Entre elas, podem-se destacar a matriz da eficiência, que pretende combater o desperdício da base material do desenvolvimento, estendendo a racionalidade econômica ao “espaço nãomercantil planetário”; da escala, que propugna um limite quantitativo ao crescimento econômico e à pressão que ele exerce sobre os “recursos ambientais”; da eqüidade, que articula analiticamente princípios de justiça e ecologia; da autosuficiência, que prega a desvinculação de economias nacionais e sociedades tradicionais dos fluxos do mercado mundial como estratégia apropriada a assegurar a capacidade de auto-regulação comunitária das condições de reprodução da base material do desenvolvimento; da ética, que inscreve a apropriação social do mundo material em um debate sobre os valores de Bem e de Mal, evidenciando as interações da base material do desenvolvimento com as condições de continuidade da vida no planeta.
 
Desde a United Nations Conference on Environment and Development – Unced (1992), a noção de sustentabilidade vem ocupando espaço crescente nos debates sobre desenvolvimento.

De um lado, no interior do discurso desenvolvimentista – produzido por agências multilaterais, consultores técnicos e ideólogos do desenvolvimento –, verificouse um investimento na correção de rumos, no esverdeamento dos projetos, na readequação dos processos decisórios. Com ajustes – acreditam estes atores – a proposta do desenvolvimento poderia ser resgatada, suas dimensões autofágicas, superadas, sua durabilidade, assegurada, sua vigência, sustentada. Por outro lado, no campo das ONGs, em meio à crítica dos limites do conteúdo que governos e instituições oficiais vêm atribuindo ao desenvolvimento, que pretendem, sustentável, alguns vêem na sustentabilidade uma nova crença destinada a substituir a idéia de progresso, constituir “um novo princípio organizador de um desenvolvimento centrado no povo”, e ser capaz de “tornar-se a visão mobilizadora da sociedade civil e o princípio guia da transformação das instituições da sociedade dominante”.

O que prevalece são, porém, expressões interrogativas recorrentes, nas quais a sustentabilidade é vista como “um princípio em evolução”, “um conceito infinito”, “que poucos sabem o que é” e “que requer muita pesquisa adicional”, manifestações de um positivismo frustrado: o desenvolvimento sustentável seria um dado objetivo que, no entanto, não se conseguiu ainda apreender. Mas, como definir algo que não existe? E que, ao existir, será, sem dúvida, uma construção social? E que, como tal, poderá também compreender diferentes conteúdos e práticas a reivindicar seu nome. Isto nos esclarece por que distintas representações e valores vêm sendo associados à noção de sustentabilidade: são discursos em disputa pela expressão mais legítima. Pois a sustentabilidade é uma noção a que se pode recorrer para tornar objetivas diferentes representações e idéias.

A suposta imprecisão do conceito de sustentabilidade sugere que não há ainda hegemonia estabelecida entre os diferentes discursos. Os ecólogos parecem mal posicionados para a disputa em um terreno enraizado pelos valores do produtivismo fordista e do progresso material. A visão sociopolítica tem se restringido ao esforço de ONGs, mais especificamente na atribuição de precedência ao discurso da eqüidade, com ênfase ao âmbito das relações internacionais. O discurso econômico foi o que, sem dúvida, melhor se apropriou da noção até aqui, até mesmo por considerar sua preexistência na teoria do capital e da renda de Hicks. Mas, ao contrário dos conceitos analíticos voltados para a explicação do real, a noção de sustentabilidade está submetida à lógica das práticas: articula-se a efeitos sociais desejados, a funções práticas que o discurso pretende tornar realidade objetiva. Tal consideração nos remete a processos de legitimação/deslegitimação de práticas e atores sociais. Por um lado, se a sustentabilidade é vista como algo bom, desejável, consensual, a definição que prevalecer vai construir autoridade para que se discriminem, em seu nome, as boas práticas das ruins. Abre-se, portanto, uma luta simbólica pelo reconhecimento da autoridade para falar em sustentabilidade. E para isso faz-se necessário constituir uma audiência apropriada, um campo de interlocução eficiente onde se possa encontrar aprovação. Poder-se-á falar, assim, em nome dos (e para os) que querem a sobrevivência do planeta, das comunidades sustentáveis, da diversidade cultural etc.

Em síntese: a luta em torno a tal representação exprime a disputa entre diferentes práticas e formas sociais que se pretendem compatíveis ou portadoras da sustentabilidade. Para se afirmar, porém, que algo – uma coisa ou uma prática social – é sustentável, será preciso recorrer a uma comparação de atributos entre dois momentos situados no tempo: entre passado e presente, entre presente e futuro.

Como a comparação passadopresente, no horizonte do atual modelo de desenvolvimento, é expressiva do que se pretende insustentável, parte-se para a comparação presente-futuro. Dir-se-ão então sustentáveis as práticas que se pretendam compatíveis com a qualidade futura postulada como desejável. E esta relação entre um presente conhecido e um futuro desconhecido e desejável  coloca a noção de sustentabilidade no campo do que alguns chamam de “causalidade teleológica” – “que tem, como causa suficiente de um comportamento, um acontecimento que contém em sua descrição a exigência de que um outro acontecimento, chamado seu fim, aconteça”.

Ou seja, a causa é definida pelo fim; a ordem de seqüência dos acontecimentos está embutida na condição antecedente definida como causa. É sustentável hoje aquele conjunto de práticas portadoras da sustentabilidade no futuro. O recurso a esta “causalidade teleológica” é particularmente questionável quando ela implica reconstruir o presente à luz de supostas exigências do futuro.

A experiência histórica registra exemplos no mínimo discutíveis desta atualização política do futuro: “é preciso crescer para depois distribuir”, “estabilizar a economia para depois crescer”, “sacrificar o presente para conquistar o futuro” etc. Os riscos são tanto maiores quanto se sabe que os que ocupam posições dominantes no espaço social também estão em posições dominantes no campo da produção das representações e idéias. Se o Estado e o empresariado – forças hegemônicas no projeto desenvolvimentista – incorporam a crítica à insustentabilidade do modelo de desenvolvimento, passam a ocupar também posição privilegiada para dar conteúdo à própria noção de sustentabilidade.
 
Tirado de:
 
REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS
Publicação semestral da Anpur (maio/novembro)
Número 1, maio de 1999
 


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