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Miguel Urbano Rodrigues

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Em coluna

Reencontro com Florestan Fernandes

Miguel Urbano Rodrigues - Publicado: Sexta, 12 Fevereiro 2016 17:26

Florestan Fernandes foi no Brasil o meu melhor e mais íntimo amigo.


Sobre ele escrevi em livros e artigos muitas páginas. Afirmei e repito que vi nele, como no francês Henri Alleg, a personificação da pureza e da autenticidade revolucionarias. Ao longo de muitos anos atingi com ambos um nível de identificação irrepetível.

Florestan emerge simultaneamente como o mais criador e talentoso sociólogo da América Latina.

Foi com surpresa e admiração que li, tardiamente, muito vagarosamente, o seu livro A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá.*

Esta edição (da Revista do Museu Paulista) da sua tese de doutoramento, que fora publicada em 1951, foi-me oferecida em 1968 com uma dedicatória carinhosa. Limitei-me então a folhear o livro. O tema não me atraiu na época. Estávamos em vésperas do devastador Ato Institucional nº5, que destruiu a Universidade de São Paulo e o afastou da sua cátedra. As polícias políticas brasileiras intensificavam a repressão aos exilados portugueses, um livro meu fora proibido e apreendido pelo governo de Costa e Silva, e a embaixada de Portugal negava-me passaporte (exceto para Portugal).

Encontrei há semanas o livro, esquecido num canto da minha biblioteca de Serpa.

Li-o com um sentimento de culpa.

De culpa, porquê?

Pelo atraso. Florestan morreu há mais 20 anos. E eu só agora tomo conhecimento da importância de uma obra que, se lida na época, me teria ajudado a avaliar a dimensão do saber acumulado em plena juventude pelo cientista social e facetas da sua personalidade que tardei a identificar no amigo e companheiro de lutas.

Para muitos leitores A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá é um trabalho académico hermético, pesado. E não é. Encontrei nesse livro fascinante e o humanista, o sábio, o pensador politico, o apaixonado pela história profunda com fome de descida às raízes da condição humana, o brasileiro destruidor de mitos forjados pela burguesia, o investigador empenhado na compreensão difícil do índio- alguém que só muito lentamente fui descobrindo no revolucionário, amigo fraterno.

Ao desembarcar no Brasil eu tinha do índio a ideia formada por filmes racistas e romances de aventuras que apresentam os aborígenes ora como selvagens pacíficos ora como canibais sanguinários, sempre como seres primitivos, quase irracionais, tal como os viu Colombo.

Com exceção dos povos da Mesoamérica e do Incário, criadores de importantes civilizações, os ameríndios do Brasil, tal com o os papuas, os maoris e os demais polinésios apareciam-me como indígenas ferozes, animalescos.

Sabia que na época da chegada de Cabral os tupinambás eram cerca de 100.000, concentrados no litoral do Brasil. Sabia também que tinham sido aliados dos franceses quando Villegagnon fundou a França Antárctica na Baia da Guanabara, destruída cinco anos depois pelos portugueses. Sabia igualmente que o governador Mem de Sá exterminara praticamente os últimos tupinambás em massacres implacáveis.

Mas ignorava o que pensavam, como viviam, como combatiam e se matavam em guerras tribais esses índios antropófagos.

Florestan é tao minucioso, tao exaustivo, tão profundo na reconstituição da vida quotidiana dos tupinambás que transmite ao leitor a sensação absurda de se encontrar numa aldeia desse povo e contemplar como espectador aquela gente e acompanhar o seu quefazer. Descreve com minucia e rigor as técnicas e táticas de guerra dos tupinambás, o sistema de abastecimento em campanha, o papel das mulheres e dos jovens na vida comunitária.

Os tupinambás eram antropófagos. Matavam os prisioneiros, assavam-nos, e devoravam os seus corpos em festins tribais em que participava toda a comunidade embriagada pelo cauim.

Essa realidade é suficiente para provocar reações de repulsa e de condenação inapelável nos cidadãos de qualquer sociedade evoluída contemporânea.

Mas Florestan consegue o prodígio de nos introduzir num mundo tribal cuja mundividência ele ilumina e explica, permitindo compreender a motivação do comportamento da sociedade tupinambá.

O título da sua tese de doutoramento abre a porta a essa compreensão. Para a escrever, recorreu a uma bibliografia colossal. Utiliza sobretudo textos de cronistas e sacerdotes do século XVI que conheceram com maior ou menor intimidade a sociedade tupinambá: os portugueses Gondavo de Magalhães e Ambrósio Brandão, os franceses Jean de Lery e André Thevet, o alemão Hans Staden, os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta entre muitos outros.

Os tupinambás viviam envolvidos em guerras ininterruptas.

Porquê?

Encaravam a guerra como ato de sobrevivência. Para eles, o conflito mortal com outras tribos era um dever moral com fundamentos sagrados. Identificavam uma correlação funcional da guerra com a religião, a magia, a moral, a educação, a política, e cultura. A poligamia inseria-se na sua organização social.

Aos 30 anos, Florestan acumulara já uma erudição e um saber de uma diversidade impressionantes.

Na reflexão sobre a escravatura, a guerra e o parentesco na sociedade tupinambá – apenas três exemplos – dedica páginas ao desenvolvimento dos temas, extrapola-os e cita Aristóteles, Marx, Montesquieu, Levy Strauss, Durkheim, Levy Bruhl, entre outros autores, movido pela exigência de aprofundar essas temáticas.

O mesmo ocorre no tocante à antropofagia, tema fulcral e recorrente.

O canibalismo dos tupinambás era ritual. A carne dos inimigos mortos tinha um significado simbólico. O objetivo da guerra era fazer prisioneiros para os sacrificar e lhes devorar os corpos para vingar parentes e antepassados mortos pelo inimigo na interminável cadeia de conflitos tribais.

A necessidade da vingança nascia para os guerreiros de obrigações dos vivos para com os mortos que desembocavam na guerra como ponte entre os vivos e o mundo dos mortos.

Para ser tão claro quanto possível, descreve com pormenores macabros o cerimonial do sacrifício das vítimas, prólogo do banquete coletivo.

A tese de doutoramento, de enorme ambição científica, tem mais de 400 páginas, incluindo o apêndice, as notas e a bibliografia.

O leitor apercebe-se gradualmente da enorme complexidade das relações humanas numa sociedade primitiva – quase sem administração nem chefes – na guerra como na organização da vida.

Ao contrário do que seria de esperar, os prisioneiros, cujo destino era serem abatidos e devorados, raramente eram mortos logo após o regresso da guerra.

As futuras vítimas podiam permanecer meses, até anos, como escravos dos senhores que os tinham aprisionado em combate.

Os escravos eram bem alimentados, recebidos quase como membros da família até ao dia da sua execução. O senhor oferecia-lhe com frequência filhas como companheiras. Não tentavam fugir. Encaravam a morte com alegria, como uma honraria, felizes por serem sacrificados pelos inimigos.

Os tupinambás acreditavam na imortalidade da alma. Segundo a sua complexa cosmogonia, a alma, separada do corpo após a morte voava para as montanhas, rumo ao convívio com o espirito dos antepassados, tendo acesso ao paraíso para uma felicidade eterna. Mas para que isso acontecesse era indispensável matar e devorar o máximo de inimigos.

O poder mágico religioso era exercido pelos pagés (feiticeiros), intermediários entre os guerreiros e os espíritos dos ancestrais e pelos anciãos, que conheciam as genealogias das famílias e gozavam de grande respeito.

Florestan Fernandes, insisto, escreveu um livro importantíssimo para a ciência, obra que o revelou como um sociólogo diferente, inovador.

Na Escola do Movimento dos Sem Terra, em São Paulo, que tem o seu nome, é recordado por sucessivas gerações como o último dos grandes humanistas do século XX e um maravilhoso revolucionário.

Nota:

* Florestan Fernandes era marxista, um comunista sem partido após breve passagem pelo trotsquismo . Mas neste trabalho optou pelo método funcionalista, sobretudo porque essa metodologia facilita a explicação descritiva da «guerra primitiva».

Vila Nova de Gaia, Fevereiro de 2016.


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