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Miguel Urbano Rodrigues

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Em coluna

Pepetela, um grande escritor imprevisivel

Miguel Urbano Rodrigues - Publicado: Quinta, 10 Dezembro 2015 23:15

Entre “Mayombe”, “A Geração da Utopia”, “O Planalto e a Estepe”, “O Tímido e as Mulheres” e outras obras Pepetela construiu uma fulgurante carreira literária e alcançou um justo renome internacional. As personagens do ficcionista, forjadas pelo seu talento, estimulam o leitor a meditar sobre a complexidade das contradições da condição humana. Na Angola que recria literariamente e na própria atitude do escritor em relação à sociedade em que se insere identifica-se um trajecto pessoal que vai da utopia ao desencanto.


O chileno Volodia Teitelboim casou três vezes. Amou intensamente as suas três companheiras. Delas se separou com amargura.

Não conheço outro escritor que tenha retratado tão primorosamente mulheres do seu tempo (incluindo as quatro esposas de Pablo Neruda).

Recordei essas figuras femininas ao ler O Tímido e as Mulheres, de Pepetela. Ele cria personagens femininas fascinantes.

Marisa tem algo de extraterrestre. Terá existido alguma angolana sequer parecida com ela, como fonte de inspiração? Difícil.

Descobri Pepetela nos anos 80 quando li Mayombe. Fez-me sentir a guerra colonial num cenário onde o homem é esmagado por uma natureza hostil. Ao acompanhar em esforço de imaginação os combatentes do MPLA pelas selvas de Cabinda, recordei a guerrilha do Che nas matas e chapadões bolivianos e a de Hugo Blanco na Amazónia peruana. Tudo em Angola fora muito diferente.

A admiração por Pepetela cresceu quando li A Geração da Utopia. Mas o romance perturbou-me tanto que ao visitar Angola em 1994 pedi a uma amiga comum que me levasse a casa do escritor.

Luanda vivia dias caóticos. A UNITA tentava tomar o poder na capital e estava a ser derrotada.

O romance é muito belo, mas destila deceção. Compreendi que Pepetela atravessara a fronteira que o separava da grande literatura, mas encarava o futuro com pessimismo. A personagem principal, um combatente da geração da utopia que havia lutado pela independência com coragem espartana, perdera a esperança. Refugiara-se numa praia deserta de Benguela onde vivia como um eremita.

Porquê?- perguntei a Pepetela. O que o motivara a esboçar um panorama tão sombrio de uma Angola ainda em guerra, acossada pelo imperialismo, um país onde o sonho revolucionário fora enterrado?

Ele não se alargou na resposta. No seu romance, disse, apresentara a contradição brutal entre o romantismo revolucionário da geração que se batera numa entrega total pela independência e a fisionomia humana da Luanda dos anos 90, uma cidade onde as novas elites vindas do mato estavam a ser modeladas pela ambição, o egoísmo, os vícios do sistema capitalista. Nela a realidade do quotidiano era a negação do projeto revolucionário.

Não voltei a encontrar Pepetela e acompanhei mal a sua fulgurante carreira literária. Quando foi distinguido com o Premio Camões em 1997 já era um escritor de prestígio internacional, traduzido em muitas línguas.

Soube que o ex-guerrilheiro, que fora vice-ministro durante sete anos e deputado, se distanciara do Poder. Não voltou a exercer cargos políticos.
Mas não foi sem surpresa que li recentemente O Planalto e a Estepe.

Publicada pela Dom Quixote em 2009, é um estranho romance. Na capa a editora informa que é «a história real de um amor impossível».

Nos primeiros capítulos reencontrei o Pepetela conhecido e admirado.

As páginas em que o narrador evoca a infância e a adolescência no Planalto do Lubango são belíssimas, de um lirismo comovedor. A relação entre a terra e os que nela vivem e o culto da amizade conduz-nos ao telurismo de Pepetela, facilita a compreensão do seu itinerário de revolucionário.

Depois, quando o cenário muda e o narrador vai estudar para a União Soviética não consigo mais atravessar as pontes ombro a ombro com o escritor.

Redigindo na primeira pessoa, para ser mais convincente, Pepetela mergulha o leitor na complexa relação amorosa entre um angolano e uma mongol quando estudavam em Moscovo nos anos 60. Ele é filho de colonos portugueses de poucos recursos; ela de uma família influente, ligada ao poder; o pai é ministro da Defesa, um grande do Partido.

O amor, proibido, é golpeado. Ela, grávida, é sequestrada, levada para o seu país e durante mais de trinta anos o contacto entre ambos rompe-se. O desfecho é um inesperado happy end.

O que choca não é a trama fantástica da estória nem a transformação do jovem num percurso que o conduziu ao generalato.

A surpresa vem do anti-sovietismo do romance. Pepetela foi amigo do general que amou a bela mongol, mas não estudou como ele na URSS.

Daí a minha estranheza pela veemência do anticomunismo que o par amoroso transmite.

Pepetela afirma que, distanciado da política, continua a identificar-se com muitas análises de Marx. Mas isso não transparece no livro. Tendo um conhecimento muito superficial da realidade soviética e da vida quotidiana em Moscovo, seria de esperar que se abstivesse de afirmações categóricas comuns em manuais de anticomunismo, mas agressivas e inesperadas vindas de um grande escritor progressista.

Que impulso o terá levado a condenar com tanta dureza, através dos dois amantes perseguidos, os mecanismos de poder de uma sociedade para ele desconhecida?

O chamado socialismo real não concretizou o projeto de Lenin. Dele se afastou para o deformar.

Mas, apesar dos desvios, erros e deformações, cometidos por um Partido que se perverteu e acabou por apodrecer, na URSS fora possível construir uma sociedade menos cruel, menos desigual, do que a de quaisquer país do Ocidente autoproclamado democrático. A humanidade pagou um alto preço pela desagregação da URSS; a reimplantação do capitalismo na Rússia foi um acontecimento trágico.

Pepetela, pelo que escreveu, demonstra não ter assimilado essa evidência. Esqueceu que a própria descolonização teria sido muitíssimo mais lenta sem a solidariedade da URSS aos povos que se batiam na Africa pela independência contra as potências imperiais que aliás voltam a recolonizar.

OUTRO PEPETELA

O Tímido e as Mulheres também me surpreendeu. Mas por motivos muito diferentes.

Visitei Angola pela primeira vez na época colonial, em 1953. Voltei em 80. Falei então com o presidente José Eduardo dos Santos; reencontrei dirigentes do MPLA que haviam lutado desde a juventude pela independência; estive em Kifangondo, cenário da derrota da ofensiva da FNLA, da UNITA e dos congoleses de Mobutu, desci a Cuíto Cuanavale, Mavinga, e a Mpupa, na fronteira da Namíbia, onde convivi com oficiais e soldados das FAPLA.

O futuro imediato apresentava-se nevoento, carregado de incógnitas, com a Africa do Sul e os EUA a apoiarem Savimbi. A guerra continuava, a escassez de bens essenciais pesava muito no quotidiano, mas o MPLA assumia-se ainda como um partido marcado pelo marxismo; o vento da revolução não desaparecera da terra angolana.

Muito diferente era a atmosfera em Luanda quando ali acompanhei as eleições legislativas em 1992.

Nos breves dias que passei na capital senti mais do que compreendi que a cidade acusava o choque de um terremoto social que anunciava um futuro imprevisível. Um capitalismo selvagem era já identificável como agente de transformações no tecido humano. O comportamento de uma burguesia em formação impressionou-me por incompatível com o sonho ingénuo da geração da utopia.

Mais de vinte anos transcorreram sobre essa visita. A História caminhou no sentido oposto às aspirações dos pioneiros da revolução libertadora.

É a Luanda de hoje que Pepetela nos ajuda a ver e tentar compreender em O Tímido e as Mulheres.

Tudo foi inesperado para mim nesse romance revelação. As tendências e contradições que havia observado agigantaram-se. O livro ilumina uma sociedade cuja evolução galopante a tornou irreconhecível.

Luanda cresceu desmesuradamente. É hoje uma megalópolis povoada por 6 milhões de habitantes. Mais de um terço dos angolanos vive nessa gigantesca metrópole de subúrbios misérrimos onde as classes sociais se estratificaram extraordinariamente em tempo mínimo.

Talvez haja poucas no mundo onde a desigualdade social seja tão grande e chocante.

O petróleo, os diamantes, os minérios, a bolha imobiliária e negócios ilícitos foram determinantes para a inimaginável transformação da Luanda cujo quotidiano Pepetela esboça no seu romance.

Devastado por quarenta anos de guerras, o país deu um salto prodigioso no tempo.

Nele, o seculo XXI coexiste com comunidades tribais arcaicas. As personagens do ficcionista, forjadas pelo seu talento, estimulam o leitor a meditar sobre a complexidade das contradições da condição humana. Porque a Luanda do começo deste século é um laboratório alucinante da mudança do homem, para o melhor e para o pior, quando engrenagens económicas e políticas que não controla e conquistas da técnica e da ciência atuam sobre ele. Dessa Luanda olhando para o futuro, mas com ancoras num passado doloroso, Pepetela traça com magia o painel de uma sociedade jovem onde colidem e convivem o egoísmo, a corrupção desenfreada, a hipocrisia, a solidariedade, a ambição, a violência, a procura do amor, uma sexualidade frenética, a arrogância dos novos-ricos, o humor, a alegria de viver, a recusa do presente e a luta pelo saber das vítimas da desigualdade.

Para onde caminha Angola?

O Tímido e as Mulheres não pretende responder à pergunta. Mas confirma que os escritores, como qualquer homem, não são seres estáticos.

Pepetela, permanecendo o mesmo, mudou.


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