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Gustavo Henrique Lopes Machado

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Alétheia

Trabalho produtivo e improdutivo: o cerne da questão - Parte 3

Gustavo Henrique Lopes Machado - Publicado: Terça, 08 Dezembro 2015 22:20

Vimos nos dois artigos iniciais desta série o conceito preciso de mercadoria, assim como dos ditos “serviços”. Sendo que, estes últimos, considerados unicamente no caso em que são trocados diretamente por renda. Pretendemos, agora, examinar como as atividades produtoras de mercadorias e as atividades não produtoras de mercadorias se identificam e se diferenciam quando são ambas simultaneamente empregadas por um capitalista.


Trata-se de uma tarefa fundamental, com implicações político-programáticas. Afinal, o marxismo surge no século XIX tentando vincular a luta pelo socialismo ao proletariado e, particularmente, ao proletariado industrial, o “produto mais genuíno” da sociedade capitalista. Na atualidade, contudo, é comum entre as organizações marxistas dissolver a especificidade do proletariado industrial no conjunto dos assalariados. Para tal, toda a complexa teia de relações entre os diversos tipos particulares de capital são dissolvidas na abstrata noção de trabalho produtor de mais-valia. No entanto, a realidade não se transforma segundo a vontade dos intérpretes. De nada adianta dissolver artificialmente as múltiplas e objetivas diferenças entre os diversos estratos do proletariado: elas continuarão a existir na realidade. Não sem razão, o esforço de Marx foi sempre o de atingir as diferenças ocultas sob uma identidade aparente.

Todo o embaraço em torno do tema do trabalho produtivo e improdutivo tem sua razão histórica de ser. Até a segunda metade do século XX, a maior parte das organizações marxistas procurou sempre, com maior ou menor êxito, o caminho da classe operária industrial. Poucos questionaram seu papel central no modo de produção capitalista enquanto classe produtora de toda riqueza e ponto de apoio fundamental da revolução socialista. Isso era verdade mesmo para as organizações reformistas. Após a Segunda Grande Guerra e a nova conformação da divisão internacional e social do trabalho que se seguiu, com maior participação do Estado na economia e a ampliação quantitativa do setor de “serviços”, não foram poucos os que procuraram dissolver as diferenças entre os diversos estratos do proletariado, tratando-os, agora, indistintamente como meros vendedores de sua força de trabalho. E ponto final. Faz-se necessário, portanto, colocar cada coisa em seu devido lugar. Para tal, cabe, de início, algumas considerações prévias sobre a noção de produtividade do trabalho.

Metafísica e Marxismo

Em primeiro lugar, a maior parte dos autores que tratou do presente tema se esqueceu de uma pergunta fundamental: produtivo em relação a que? Somente uma razão metafísica, ao possuir algum tipo de absoluto pressuposto, pode falar em algo produtivo em si mesmo, assim como absolutizar qualquer outra noção ou categoria. Antes de responder à questão de se tal ou qual trabalho é produtivo, é necessário esclarecer a que se refere tal produtividade.

Um exemplo ilustrativo, nesse sentido, é a noção de progresso. O modo de produção capitalista é progressivo frente àqueles precedentes? Depende. Se considerarmos a noção de progresso em função da relação homem e natureza, do domínio humano sobre os recursos e forças naturais, isto é, a partir da perspectiva das forças produtivas, o sistema capitalista é o mais progressivo já produzido pelo homem e o que primeiro colocou historicamente as condições de possibilidade para uma sociedade emancipada. No entanto, se considerarmos a noção de progresso em função das relações que os homens estabelecem entre si para se apropriar da natureza não são poucos os domínios em que o modo de produção capitalista se afigura como mais obscuro, mais alienado, mais fútil que muitos daqueles que o precederam.

Parte expressiva da obra de Marx é construída justamente para dissolver essas abstrações gerais, explicitando as diferenças e contradições que se encontram em seu seio. Assim o fará com noções abstratas como propriedade no geral, trabalho no geral, democracia no geral e assim por diante. O termo produtivo, como o progresso, exige que se determine em relação a que, isto ou aquilo, é produtivo. Realizada essa pergunta fundamental, boa parte das confusões que envolvem a questão do trabalho produtivo e improdutivo em Marx desaparecem.

Por exemplo, em certa altura de O Capital Marx (1996b, p. 197) diz: “o consumo individual do trabalhador é para ele mesmo improdutivo, pois reproduz apenas o indivíduo necessitado”. No entanto, “ele é produtivo para o capitalista e para o Estado, posto que produz a força produtora de riqueza alheia”. Como se nota, o consumo do trabalhador é improdutivo em relação a si próprio e produtivo em relação ao capitalista e ao Estado.

Nas Teorias de Mais Valia, temos outro exemplo elucidativo: os serviços vendidos diretamente por dinheiro, sem mediação de um capitalista, são, evidentemente, improdutivos tanto em relação ao capital quanto em relação à produção de riqueza social, no entanto, todo “serviço é produtivo para quem o vende. Jurar falso é produtivo para quem o faz por dinheiro vivo. Falsificar documentos é produtivo para quem é pago por isso. Assassinar é produtivo para quem é pago pelo homicídio. O negócio de sicofanta, delator, malandro, parasita, bajulador é produtivo, desde que tais ‘serviços’ sejam remunerados” (MARX, 1974, p. 275).

No mesmo sentido, e começando a penetrar no âmago de nosso problema, diz Marx que os “serviços prestados, para seu produtor, são mercadorias. Têm determinado valor de uso[...] e determinado valor de troca” (MARX, 1974, p. 138). Trata-se, evidentemente, da mercadoria força de trabalho, cujo valor de uso pode ser “imaginário ou real”. Por outro lado, para “seu comprador, porém, esses serviços são meros valores de uso, objetos em que consome a renda” (MARX, 1974, p. 138). Logo adiante, Marx exemplifica com o caso de um hotel, cujos cozinheiros e garçons “são trabalhadores produtivos, porquanto seu trabalho se converte em capital para o dono do hotel” (MARX, 1974, p. 138). “Mas, de fato, também essas pessoas no hotel são para mim, na qualidade de consumidor, trabalhadores improdutivos” (MARX, 1974, p. 138). Claro está que os mesmos trabalhadores de um hotel, ao fornecer mais-valia ao seu proprietário, são produtivos e, ao mesmo tempo, são improdutivos em relação aos clientes do hotel, já que estes apenas consomem sua renda ao usufruir de seus respectivos serviços.

Feitas essas considerações iniciais, que retomaremos adiante, e tomando como pressuposto as noções desenvolvidas nos dois artigos anteriores, podemos, finalmente, mergulhar na questão do trabalho produtivo e improdutivo propriamente dito. Particularmente, em que sentido podemos afirmar que um trabalho não produtor de mercadorias, que não produz riqueza, mas apenas a consome na forma de renda, pode ser considerado produtivo.

O alargamento no conceito de trabalho produtivo

De fato, como já vínhamos assinalando, a determinação de produtividade do trabalho associada à produção ou não de mercadorias está distante de dar conta da especificidade do modo de produção capitalista. Menos ainda uma noção mais abstrata que toma a produtividade do trabalho em função de sua objetivação ou não em produtos materiais. Segundo Marx (1996, p. 310), já no Livro Primeiro de O Capital, esta “determinação de trabalho produtivo, tal como resulta do ponto de vista do processo simples de trabalho, não basta, de modo algum, para o processo de produção capitalista”.

Considerando a especificidade desse modo de produção, temos, de início, um alargamento da noção de trabalho produtivo. Afinal, “o caráter cooperativo do próprio processo de trabalho amplia-se [...] necessariamente o conceito de trabalho produtivo e de seu portador, do trabalhador produtivo” (MARX, 1996, p.136). Agora, para “trabalhar produtivamente, já não é necessário [...] pôr pessoalmente a mão na obra; basta ser órgão do trabalhador coletivo, executando qualquer uma de suas subfunções” (MARX, 1996, p.136). No entanto, destaca Marx (1996, p. 136-137) que a “determinação original, acima, de trabalho produtivo, derivada da própria natureza da produção material, permanece sempre verdadeira para o trabalhador coletivo, considerado como coletividade”. Mas individualmente, na “categoria de trabalhadores produtivos, figuram naturalmente os que, seja como for, contribuem para produzir a mercadoria, desde o verdadeiro trabalhador manual até o gerente, o engenheiro (distintos do capitalista)” (MARX, 1974, p. 136).

Do modo como Marx toma a questão até o presente momento, figuram entre os trabalhadores produtivos todos aqueles que, de algum modo, “contribuem para produzir a mercadoria”, permanecendo “sempre verdadeira” a “determinação original [...] de trabalho produtivo” “derivada da própria natureza da produção material”. Evidentemente, Marx não quer, com isso, eliminar as diferenças sociais existentes entre os múltiplos indivíduos que compõem esse trabalhador coletivo. Eles se diferenciam entre si, por exemplo, em relação à qualificação do trabalho – trabalho simples e complexo – e, do ponto de vista técnico, em relação à função desempenhada. Ocorre que produtividade do trabalho não se define em função da natureza específica da atividade realizada, por exemplo, se intelectual ou manual, mas pelo fato de fornecerem trabalho excedente para o capitalista.

A restrição no conceito de trabalho produtivo

Na sequência, ainda no Livro Primeiro de O Capital, Marx (1996, p. 136) dirá que por “outro lado [...] o conceito de trabalho produtivo se estreita. A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente produção de mais-valia”. Ora, o que garante a acumulação de capital por parte de um capitalista não é o tipo especifico de valor de uso que este oferece aos consumidores no mercado, tampouco a natureza específica do trabalho que comanda, mas a extração de mais-valia daquele que vende sua força de trabalho como mercadoria. Disso se segue que apenas “é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital” (MARX, 1996, p. 136).

Nas Teorias de Mais Valia, essa questão é desenvolvida de forma mais precisa e com um número considerável de exemplos. Segundo Marx, quando empregado por um capitalista tendo em vista extrair mais-valia, o trabalho de um professor, um cantor, um palhaço de circo e toda e qualquer outra atividade, é produtivo. Em suma, “só o trabalho que produz capital é trabalho produtivo” (MARX, 1974, p. 136). “Assim, também fica absolutamente estabelecido o que é trabalho improdutivo. É trabalho que não se troca por capital, mas diretamente por renda, ou seja, por salário ou lucro” (MARX, 1974, p. 136).

Em outras palavras, as definições de trabalho improdutivo e produtivo “não decorrem da qualificação material do trabalho (nem da natureza do produto nem da destinação do trabalho como trabalho concreto), mas da forma social determinada, das relações sociais de produção em que ele se realiza” (MARX, 1974, p. 136). Afinal, é “uma definição do trabalho, a qual não deriva de seu conteúdo ou resultado, mas de sua forma social específica” (MARX, 1974, p. 138). Assim considerado, “um ator por exemplo, mesmo um palhaço, é um trabalhador produtivo se trabalha a serviço de um capitalista (o empresário), a quem restitui mais trabalho do que dele recebe na forma de salário”. Por outro lado, ”um alfaiate que vai à casa do capitalista e lhe remenda as calças, fornecendo-lhe valor de uso apenas, é trabalhador improdutivo” (MARX, 1974, p.137).

Nesse ponto, a maior parte dos comentadores encerram a questão. Trabalho produtivo é aquele produtor de mais-valia para um capitalista, do qual se segue que não existe diferença social alguma entre o trabalho produtor de mercadorias e o trabalho não produtor de mercadorias, contando que produzam, ambos, mais-valia. Ou ainda, segundo alguns autores mais exóticos, tais atividades chamadas serviços produzem mercadorias “imateriais”. O professor não vende sua atividade de ensinar diretamente como valor de uso, mas produz uma mercadoria “imaterial” denominada “aula”. O palhaço não vende diretamente sua atividade como valor de uso, mas vende uma mercadoria imaterial chamada “palhaçada”. E por aí vai.

No entanto, o quadro se complica quando, nos Livros II e III de O Capital, Marx caracteriza os trabalhadores empregados no setor de comércio e crédito como improdutivos. Isso é assim ainda que exerçam suas respectivas atividades sob o comando de um capitalista, que deles se apropria do trabalho excedente. Por exemplo, no Livro Segundo, dirá que um funcionário empregado no comércio “trabalha como qualquer outra pessoa, mas o conteúdo de seu trabalho não cria valor nem produto. Figura entre os custos improdutivos, mas necessários da produção” (MARX, 1980, p. 135). Em seguida, Marx diz que essa relação não se altera pelo fato de o trabalhador mercantil ser um assalariado.

Ora, a maior parte dos interpretes procuraram explicar esta aparente contradição da seguinte maneira: o trabalho é produtivo quando produz capital para um capitalista, desde que este ocorra na esfera da produção, no interior da qual se insere os serviços. Assim, quando a força de trabalho é vendida para esferas externas à produção propriamente dita, ainda que em atividades necessárias, o trabalho será improdutivo. Esse foi o caminho seguido, por exemplo, pelo grande mestre da crítica da economia política marxista: Isaak Rubin.

Rubin, cuja célebre obra Teoria Marxista do Valor nos influenciou em cada linha, não deixa de reconhecer o caráter paradoxal e artificial da interpretação acima, que, no seu entender, correspondia à teoria de Marx. Ao final do capítulo de seu livro, que trata desse tema, diz que “podemos lamentar que [Marx] tenha escolhido o termo ‘produtivo’ para seu tratamento das diferenças entre trabalho contratado pelo capital na fase de produção e trabalho contratado pelo capital na fase de circulação. [...] Um termo mais adequado, talvez, teria sido ‘trabalho de produção’” (RUBIN, 1980, p. 293). Além disso, admite, com certo espanto, que Marx tenha considerado produtivo tão somente o capital empregado na produção, dado que aquele empregado na circulação também produz mais-valia e acumula capital para o capitalista que o comanda. Tratava-se, evidentemente, de duas definições absolutamente contraditórias de trabalho produtivo.

O nó da questão: produtivo em relação a que?

De fato, a interpretação de Rubin e de muitos outros sobre esse ponto em particular do pensamento de Marx está equivocada. A questão é que, nos trechos em que trata das atividades não produtoras de mercadorias como produtivas, Marx se refere à produtividade do trabalho em relação ao capitalista individual que o emprega. Enquanto naquelas que trata do trabalho improdutivo dos assalariados empregados na atividade comércio ou do crédito, Marx se refere à produtividade em relação à sociedade em seu conjunto, ao capital total por ela produzido. Vejamos a questão detalhadamente.

Após precisar a noção de trabalho produtivo e improdutivo nas Teorias de Mais Valia tal como citamos acima, diz Marx (1974, p. 137): “Trabalho produtivo e improdutivo são sempre olhados aí do ângulo do dono do dinheiro, do capitalista”. E, realmente, do ponto de vista de um capitalista individual, pouca diferença faz se seu capital é empregado na indústria automobilística, em uma universidade privada ou em um circo. O que interessa é a mais-valia e o lucro que consegue obter por meio da exploração do trabalho assalariado. Da mesma forma, para um trabalhador assalariado importa, antes de tudo, o salário que recebe como equivalente pela sua força de trabalho, seja qual for a natureza da atividade que realiza. Essa diferenciação é fundamental, pois reflete a diferença abismal que existe entre as relações sociais que visam acumular capital, sejam ou não produtoras de mercadorias, e aquelas que visam a troca de equivalentes.

Ocorre que ser produtivo em relação ao capitalista individual não corresponde necessariamente a ser produtivo em relação à sociedade. No comércio, por exemplo, apesar de o capitalista acumular capital com a exploração dos trabalhadores que emprega, ele não produz um só átomo de valor e capital, apenas se apropriando de parte da mais-valia produzida na esfera da produção. Não sem razão, no trecho acima citado sobre a improdutividade do capital comercial, Marx por diversas vezes explicita que está se referindo à produtividade em relação à sociedade. Por exemplo, após ilustrar com o caso de um agente comercial que trabalha 8 horas para pagar seu salário, cedendo 2 horas excedentes ao seu empregador, diz que “a sociedade não paga essas duas horas de trabalho excedente, embora tenham sido gastas pelo individuo que o executa” (MARX, 1980, p. 135). No entanto, “com isso não se apropria a sociedade de produto excedente nem de valor” (MARX, 1980, p. 135). Claro está, portanto, que Marx se refere, aqui, à produtividade do trabalho em relação à sociedade, e não ao capitalista individual. Muito embora as atividades não produtoras de mercadorias possuam uma função social bem diversa daquelas típicas da circulação de mercadorias, como o comércio, são análogas no que diz respeito à produtividade social do trabalho. Ambas se subordinam apenas formalmente ao capital, propiciando acumulação ao capitalista individual, sendo produtivas para este, mas se apropriando de um valor que se origina da redistribuição dos valores já existentes na sociedade, sendo, para esta, improdutiva.

Isso fica claro no Capitulo Inédito d’O Capital, quando Marx (1975, p. 99) diz que: “um mestre-escola que é contratado com outros para valorizar, mediante seu trabalho, o dinheiro do empresário da instituição que trafica com o conhecimento é um trabalhador produtivo”. No entanto, complementa logo em seguida: mesmo “assim, a maior parte desses trabalhadores, do ponto de vista da forma, apenas se submetem formalmente ao capital: pertencem às formas de transição”. Ou seja, do ponto de vista da sociedade, do ponto de vista da relação entre universidade privada e os demais capitais individuais, temos apenas troca simples de mercadoria. Em suma, a “fábrica de ensino” não produz valor, mas recebe valor da sociedade pelo serviço que ela oferece. Em seguida, Marx diz de maneira ainda mais clara:

Em suma, os trabalhos que só se desfrutam como serviços não se transformam em produtos separáveis dos trabalhadores - e, portanto, existentes independentemente deles como mercadorias autônomas - e, embora possam ser explorados de forma diretamente capitalista, constituem grandezas insignificantes se os compararmos com a massa da produção capitalista. Por isso, deve-se pôr de lado esses trabalhos e tratá-los somente a propósito do trabalho assalariado que não é simultaneamente trabalho produtivo. (MARX, 1975, p. 99)

Nessa passagem elucidativa, Marx não considera insignificante as grandezas advindas dos “trabalhos que só se desfrutam como serviços” em função do seu reduzido número na sociedade, como comumente se interpreta. Já demonstramos no artigo anterior que Marx jamais sustentou a redução quantitativa dos serviços empregados na forma do trabalho assalariado na sociedade capitalista, exceto aqueles trocados diretamente por renda. Sua grandeza é insignificante, conforme a argumentação da passagem, pelo fato de esses trabalhos não se transformarem “em produtos separáveis dos trabalhadores”. Isso é assim não tanto pela materialidade da mercadoria em si mesma, mas pelo fato de esta constituir o suporte que permite a mercadoria expressar sua propriedade social de ser valor. No caso dos serviços, produção e consumo coincidem, de maneiras que “a forma do valor é posta como forma simplesmente evanescente” (MARX, 2011, p. 383). Dito de outro modo, por não produzir mercadoria alguma, e sim vender diretamente sua atividade na qualidade de valor de uso, um ramo que apenas presta serviços não produz valor para a sociedade, apenas se apropria dele mediante a troca. Tanto é assim que em outra passagem também do capitulo inédito lemos:

O produto não é separável do ato da produção. Também aqui o modo capitalista de produção só tem lugar de maneira limitada, e só pode tê-lo, devido à natureza da coisa, em algumas esferas (Necessito do médico e não do seu garoto de recados). Nas instituições de ensino, por exemplo, para o empresário da fábrica de conhecimentos os docentes podem ser meros assalariados. Casos similares não devem ser tidos em conta quando se analisa o conjunto da produção capitalista. (MARX, 1975, p. 103)

A passagem é clara. Casos como a “fábrica de conhecimentos” e todos os demais ramos em que o “produto não é separável do ato da produção (...) não devem ser tidos em conta quando se analisa o conjunto da produção capitalista”.

Considerações finais

Em suma, as atividades não produtoras de mercadorias, os ditos serviços, apesar de produtivas para o capitalista individual, apenas consome na forma de renda o capital produzido pela sociedade. Por esse motivo, estão fora daquilo que Marx denomina capital produtivo. Sua forma evanescente, em que o “valor” produzido é imediatamente consumido, em que se vende o trabalho na qualidade de valor de uso, e não seu produto, impede que os serviços expressem em um dado momento sua propriedade social de ser valor, consistindo, do ponto de vista da sociedade, tão somente no consumo de renda ou, ainda, no consumo dos valores existentes em troca do serviço oferecido. Isso é assim mesmo que essa renda seja apropriada de maneira desigual no interior de um dado ramo, fornecendo mais-valia para um capitalista individual. Trata-se de subordinação formal ao capital, não real[l1] .

No entanto, deve-se esclarecer que nossa análise não procura, em nenhum sentido, subvalorizar individualmente os trabalhadores conforme a posição que ocupem no interior do modo de produção capitalista. Quando Marx atinge a especificidade do modo de produção capitalista – a venda da força de trabalho por indivíduos historicamente despojados de todos os meios de produção, assim como a produção de mais-valia que daí decorre – não deixa de destacar essa determinação em comum que possibilita a unidade entre os mais distintos estratos do proletariado em luta contra a classe capitalista. Nesse sentido, os trabalhadores assalariados do setor de “serviços”, não produtores de mercadorias, de fato compartilham com os setores produtores de mercadorias o fato de serem explorados sobre a mesma forma social, fornecendo mais-valia para o capitalista. Ambos são, nesse sentido, produtivos.

No entanto, ao destacar essa determinação em comum entre o conjunto do proletariado, não deixa de assinalar as diferenças sociais entre seus diversos estratos, apontando para os setores que desempenham um papel chave nesse mesmo processo. O setor de serviços considerado do ponto de vista da sociedade, por importante que seja sua atividade sob vários pontos de vista, não impactam imediatamente na rolagem da riqueza capitalista e na acumulação global de capital, possuindo, do ponto de vista da revolução socialista, uma importância menor, ainda que sejam relevantes.

Mas não somente. O próprio capital produtivo, produtor de mercadorias e capital global, possui diversos setores particulares que cumprem funções sociais distintas e com importância desigual no interior das engrenagens da acumulação de capital. Longe de eliminar as diferenças entre os diversos estratos do proletariado, o prosseguimento da crítica da economia política de Marx, particularmente o Livro Terceiro de O Capital, acentua-as, alçando todas diferenças contidas no interior da abstração do trabalho produtor de mais-valia. Mas esse é um tema a ser desenvolvido em nosso próximo e derradeiro artigo que compõe esta série.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro primeiro, Tomo 1.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1996b. Livro primeiro, Tomo 2.

MARX, Karl. O Capital. Livro 2: O processo de circulação do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MARX, Karl. Grundrisse. Rio de Janeiro: Botempo Editorial, 2011.

MARX, Karl. Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. V.1.

MARX, Karl. Capítulo Inédito D'o Capital. Porto: Escorpião, 1975.

RUBIN, Isaak lllich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense, 1980.

[l1]Não entendi bem este "não real".


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