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Néstor Kohan

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Em coluna

40 anos depois do golpe do Gen. Videla Não perdoar nem dar a outra face

Néstor Kohan - Publicado: Sexta, 25 Março 2016 12:59

As nódoas desta data emblemática temo-las no corpo e no coração. Não há sabão nem detergente que possa apagá-las.


À memória de Aníbal (Oscar Antinori)
Chefe de meu pai, combatente de várias guerras.
Operário, tinha o terceiro ano de escolaridade básica.
Obrigado Aníbal por me teres dado os teus livros de Lenine

As nódoas desta data emblemática temo-las no corpo e no coração. Não há sabão nem detergente que possa apagá-las. Não há esponja que as disfarce. Sim, estão no corpo, no coração e na memória. Pelo que temos lido, pelo que temos visto nos filmes, pelo que nos contaram, pelo que estudámos.

Mas também pelas marcas pessoais da nossa infância. Na memória de meu pai fugindo de casa ameaçado de morte, escondido, sem ver os seus dois filhos (um ainda bebé). Na minha escola, perante o fanatismo delirante e militarista que nos inculcavam as professoras (que pessoalmente não eram más, mas simplesmente parte de uma engrenagem que as excedia e não controlavam). Nesses anos nauseabundos e bizarros da minha meninice marchava juntamente com os meus pequenos companheiros como um soldado pelas ruas do meu bairro da periferia da província de Buenos Aires, numa idade em que devíamos estar a brincar com carros de corda e não marchando como se fossemos militares. Na minha adolescência truncada, opressiva, frustrante, que ainda hoje, várias décadas depois, me provoca um aperto na garganta e um peso no peito só de a recordar. Na recordação de ouvir o meu pai, sem que ele desse conta, contar aos seus amigos as torturas militares, as violações, o lançar pessoas pela porta fora dos aviões em voo.

Quem disse que «ninguém sabia nada»? Sim, eu escutei-o muito claramente na minha casa e na casa dos amigos do meu pai quando ainda me caía o ranho do nariz e tinha os joelhos esfolados de jogar à bola. Sim, todo o meu bairro sabia que a filha da directora da minha escola primária, pública e estatal, com paredes de madeira e rua de terra estava desaparecida. Todo o bairro sabia! Até o mais tonto, até o mais distraído.

Quarenta anos depois… e depois de tanta água passar debaixo das pontes, quantos mitos temos ainda de remover!

«Os Estados Unidos sabiam que um golpe estava em gestação», titulou há uns anos uma conhecida jornalista de meios de comunicação de massas, ex-militante (renegada) do PRT-ERP. Os EUA «sabiam». Não! Por favor. Não sejamos hipócritas. Os EUA dirigiam! O imperialismo não «sabiam» nem «estavam inteirados». Organizavam, financiavam e decidiam! Dirigiam o golpe, dirigiam a campanha de terror prévia que o possibilitou e o preparou. Dirigiam e ensinavam a tortura. E dirigiam a internacionalização das ditaduras, principalmente da argentina e da chilena, pelo menos até à guerra das Malvinas (1982), quando as Forças Armadas (com escarapela [1] argentina mas nitidamente internacionalistas) deixaram de participar nas torturas e nos treinos da contra-revolução centro-americana destinada a derrotar a revolução sandinista [Ver Ariel C. Armony: La Argentina, los Estados Unidos y la cruzada anticomunista en América Central, 1977-1984. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes, 1999].

«Foi só um golpe militar, de três generais borrachos e quatro sargentos violadores». Não senhor, não senhora. Segundo um relatório que o diário La Nación, porta-voz orgânico da ditadura e de todo o extremismo de direita até aos dias de hoje, publica naquela época nefasta, baseado num estudo da própria inteligência militar da SIDE [2] de 1978, no qual se diz que 23 governadores militares da ditadura militar contavam com 35% de intendentes da União Cívica Radical [UCR] (310 intendentes); 20% do Partido Justicialista [PJ] (169 intendentes); 12% do Partido Democrata Progressista [PDP] (109 intendentes); 10% do MID – liderado por Frondizi e Frigerio (94 intendentes); 9% da Força Federalista Popular – liderado por Manrique (78 independentes); Partidos Conservadores provinciais 8% (72 intendentes); Neoperonistas 3% (23 intendentes); Democratas Cristãos [DC, força dirigida pelo Vaticano] 2% (16 intendentes); Partido Intransigente de Oscar Allende 0,5% (4 intendentes). [Ver Diario La Nación, 25 de Março de 1979, secção «Semana política», titulada «La participación Civil»]. Se a isso somarmos a participação activa da burocracia sindical (ainda com processos pendentes por cumplicidade em sequestros de comissões internas, como nas empresas Mercedes Benz ou Ford) e o apoio das altas hierarquias eclesiásticas à ditadura… o golpe está armado a partir de uma estratégia político-militar, mas acompanhada de um apoio e sustentação também financeira, civil, mediática e eclesiástica. A sua finalidade foi reordenar de raiz o capitalismo argentino.

«A revista Humor [de sinal político radical] encabeçou a resistência cultural no meio da obscuridade». Não é verdade. O jornal judeu de esquerda, Nova Presença, dirigido por Herman Schiller, louco de guerra que em plena ditadura publicava às mães da Praça de Maio, ao PRT, aos Montoneros e a quanto militante revolucionário andasse por ali sobrevivente, foi muito mais opositor do que a Humor. Até quando vamos continuar a repetir o mito dos radicais e a auto-apologia da classe média – hoje macrista - «paladino dos direitos humanos»? Ernesto Sábato e Magdalena Ruiz Guiñazú encabeçaram a resistência? Paremos com o humor. Não tiremos o emprego a Capussoto [3].

«A culpa do golpe e dos desaparecidos cabe à ultra-esquerda, aos foquistas, aos guerrilheiros». Uma análise patética, repetida já não só pelos mais à direita e apologistas da ditadura, mas inclusive por alguns segmentos da esquerda institucional. Ainda hoje! Esse diagnóstico unilateral «esquece-se» de dois livros fundamentais que confirmam aquele velho refrão do advogado «a confissão de parte, releva de provas».

Um deles, escrito pelo principal ou um dos principais estrategos das Forças Armadas, o general Osiris G. Villegas. Quando nem o PRT nem os Montoneros tinham nascido, este general já propunha matar e assassinar em massa, reviver a inquisição e as cruzadas (sic), através da guerra contra-revolucionária, seguindo o exemplo da França e dos seus campos de tortura em Argélia e dos Estados Unidos no Vietname. Havia que esmagar o comunismo e começar pela cultura. [Ver General Osiris G. Villegas: Guerra revolucionaria comunista (1962 Biblioteca del oficial), Buenos Aires, Pleamar, 1963].

A outra prova contundente foi redigida pelo pai ideológico do projecto socio-económico e cultural de Macri, Menem e Cavallo: o capitão-engenheiro e aprendiz de economista neoclássico, Álvaro Alsogaray. Este espécime integrante do género porcino, já em 1962 (não existiam ainda Montoneros nem PRT-ERP) recomendava ao seu irmão o general Júlio Algogaray, subsecretário de guerra, a compra de armas para a guerra interna, o que vinha a caminho da Argentina era a guerra insurecta e comunista e havia que matar e assassinar em massa para travar a «subversão» [Ver Álvaro Alsogaray: Experiencias de 50 años de política y economía argentina. Buenos Aires, Planeta, 1993. p.117].

Depois das confissões antecipadas de Osiris Villegas (coração da estratégia político-militar e Algogaray (cérebro do capital financeiro, inclusive antes de Martinez de Hoz), como continuar a repetir tanto disparate contra a insurreição?

E os mitos seguem-se e continuam a seguir-se. Impossível abordá-los todos em tão poucas linhas.

Neste pequeno espaço queriam deixar assente pelo menos duas preocupações de ontem e de hoje.

Uma é a dificuldade que temos os que pertencem à esquerda vermelha em aceitar que as confrontações sociais se dão, como ensinava Lenine, não entre um povo virgem, bondoso e puro (99% da população) versus o 1% mau, vendido e perverso. Tudo simples e claro, sem cinzentos, contradições nem matizes, como nos contos infantis. Não. A luta de classes nos seus níveis mais altos de confronto dá-se entre duas partes do povo. Do outro lado da barricada e da pólvora (ou das ferramentas técnicas) também haverá povo, lamentavelmente dando o peito às balas por um projecto alheio. Foi assim em Espanha, foi assim em Salvador, foi assim na Colômbia. Foi assim e será assim na Argentina.

Enquanto não aprendermos e não aceitemos, mesmo que com má vontade, que um segmento do nosso povo está largamente trabalhado, pela cultura e as tradições sedimentadas do inimigo, patinaremos no pasto, na neve, no barro, inclusivamente no asfalto. Travar uma batalha por disputar e dividir esse campo é fundamental. A «independência de classe», sozinha e bonita, não chega. É imprescindível, ao mesmo tempo e no mesmo espaço (ou seja, na mesma situação histórica) ter um projecto de hegemonia. Mas para o ter há que previamente compreender que a hegemonia se exerce, também, sobre pessoas que não partilham a 100% as nossas ideias. Quem não lute nem dispute esse campo perdeu de antemão. Tem um rei caído e um cheque mate assegurado antes de mexer um simples peão.

Outro ponto pendente é a estratégia. O golpe de 1976 porque se tinha criado (pelo menos desde 1969) uma força social que unia diversas fracções de classe hegemonizada pela classe trabalhadora dispostas ao confronto com a burguesia e as suas instituições, e em termos gerais, para além dos seus matizes, partilhava uma estratégia de conquista do poder através do exercício da força material e pelo socialismo. Para aniquilá-la preparou-se e realizou-se o golpe, não nos confundamos tentando reordenar as relações sociais capitalistas. Tirar a água ao peixe e atacar a sua base social. Nem generais borrachos nem «autoritarismo» nem «falta de republicanismo». Tudo isso são versos e da pior laia. Versos, não poesia, verso, no sentido especificamente argentino que esta expressão pejorativa tem no jargão popular.

Em termos de estratégia: Por que razão foi a resistência tão débil? A pergunta do milhão. Talvez porque o marxismo revolucionário na imensa maioria dos clássicos esteve sempre pensado – seja da tribo que for – para os períodos de ofensiva. É muito difícil colocarmo-nos em tempos de refluxo. Desorienta-nos. Não sabemos por onde seguir. Dispersamo-nos, dividimo-nos, enfrentamo-nos com nós próprios. Porque o nosso mesmo corpo teórico impulsiona-nos para a ofensiva, mas ainda há muito para mastigar sobre o que fazer? em tempos de refluxo (Gramsci contribuiu alguma coisa sobre isso mas ainda falta muito por pensar). Talvez Rudolfo Walsh – para além do folclore mediático e da manipulação que se pretendeu fazer sobre a sua figura mediática – tivesse dado no cravo quando tentou que a direcção guerrilheira se refugiasse e retirasse para o seio do povo para organizar a resistência.

Aparelho contra aparelho, perdemos, pelo menos agora, e assim foi durante o último meio século ou talvez durante todo o século. Guerra revolucionária que não seja levada a cabo pelo povo como protagonista central cai inexoravelmente derrotada (escreveu Giap, sublinhou-o Guevara, demonstrou-o a história). Quando se limitam à confrontação exclusiva dos aparelhos, essas derrotas populares envolvem centralmente as instituições de inteligência e contra-inteligência, onde o Estado burguês costuma ser mais poderoso porque, além do mais, conta com a assessoria do imperialismo ianque, israelense, ou donde quer que seja [Ver Capitán (r) Héctor Vergez: Yo fui Vargas. El antiterrorismo por dentro. Buenos Aires, edição do autor, 1995. p.210. Livro não aconselhável a quem tem problemas digestivos ou debilidades com o vómito].

Esse tipo de confrontos com aspirações revolucionárias devem fazer-se a longo prazo, sem pretender triunfar. A palavra «popular» e o termo «prolongada» deveriam ser aplicados juntos e seriamente. Não como palavras de ordem nem para decorar o salão, a folha volante ou o jornal. Talvez aí resida uma das nossas principais fraquezas. Que não opaca nem meio milímetro do heroísmo dos nossos entranháveis companheiros e companheiras que deram tudo pela causa do povo, pela revolução, pela pátria grande e o socialismo. Por isso os amamos, os levamos na pele e jamais os vamos esquecer.

O desafio é a longo prazo, com paciência, com tenacidade e com o povo. Sem nunca dar a outra face… Sem esquecer, sem renegar, sem perdoar. Estou absolutamente convencido que nenhuma luta foi em vão. Alguma vez, até o mais mínimo gesto de resistência, hoje «esquecido», insultado, vilipendiado recuperará o seu sentido, e aí encontrar-nos-emos com os nossos mortos, os nossos caídos, os nossos torturados e torturadas, os nossos desaparecidos. Despeço-me apenas com um desejo, tonto, infantil, insignificante e pequeno, mas irrenunciável porque continuo a amar a vida: se possível estar vivo para vê-lo. Ou alguma vez ter filhos para que eles ou elas o vejam.

Nota do Tradutor:

[1] A escarapela é um símbolo nacional em alguns países. Consiste numa roseta de tela sobreposta a um laço em forma V.

[2] Polícia política da ditadurados militares.

[3] O autor refere-se a Diego Capussoto, popular cómico argentino.

Bairro do Onze, 24 de Fevereiro de 2016.


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