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ngelo Pineda

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Fundamentos do nojo

Cansaço de Espanha

ngelo Pineda - Publicado: Segunda, 08 Fevereiro 2010 02:14

Ângelo Pineda

Após a expectação que tem gerado na mídia internacional é absolutamente normal que pouca gente entenda o fenômeno das consultas independentistas da Catalunha de 2009 e as que estão programadas para ogano. No próprio Principado, catalães e catalãs olham confusos para a questão; algumas pessoas sem saber quando pôr o freio, outras sem saber quando acelerar. 


Para esclarecermos o assunto é necessário partir da base da própria singularidade catalã no quadro do Estado Espanhol. Porém sendo este fator necessário, não é suficiente para a explicação. A singularidade catalã alonga-se por toda a faixa mediterrânea ibérica e, não obstante, a Catalunha Norte (sob administração francesa) ou o País Valenciano ficaram à margem desta massiva protesta soberanista. Acrescentemos o fator histórico. 

O Principado da Catalunha foi a região mais favorecida dos territórios catalães. Durante a etapa da Coroa de Aragão imperava nela um proto-capitalismo sustido na pequena propriedade agrícola e no comércio mediterrâneo. Nos dois séculos que seguiram a invasão das tropas do Bourbon (1714) e a sua integração forçosa na monarquia hispânica, emergiu uma potente indústria têxtil. A burguesia ligada a este setor teve a possibilidade de influir na configuração do Estado Espanhol “liberal” com a carta do catalanismo; quer dizer, face o protecionismo espanhol a burguesia local invocava a ameaça de reclamar a libertação da Catalunha e convocar França ou Inglaterra nesta causa. No País Valenciano, o processo foi muito diferente, adquirindo uns tintes coloniais tão severos como os que padecia a Catalunha do Norte sob o jacobinismo francês.

Duas objeções: como tem dito o pensador valenciano Joan Fuster, e contra o que reza o preconceito popular (espanhol?), «a burguesia catalã nunca foi demasiado catalanista». Tinha fundamentos para esta afirmação. Quando medrou a capacidade de organização da classe trabalhadora, a burguesia catalã manifestou o seu verdadeiro partido: Espanha. Foi assim com Salmerón, com Primo de Rivera ou com Franco. No máximo, a adesão circunstancial e oportunista da elite catalã na defesa de Catalunha propiciou o relevo de classes no protagonismo das reivindicações nacionais quando esta elite preferiu mudar de bandeira. O “catalanismo popular” resultante incidiu numa idéia fundamental para esquerda independentista catalã de hoje: a libertação nacional e o poder da classe trabalhadora vão da mão.

A segunda objeção é que, sinaladamente durante a chamada “transição” à democracia, a maior parte do catalanismo aceitou as normas do jogo: a monarquia, a “indissolúvel e indivisível” unidade de Espanha, o império do capital e a desmobilização da classe trabalhadora. As artes empregadas foram desde a cooptação de equipas políticas até a repressão da “asa radical”. O resultado: 23 anos de regionalismo conservador e 7 de social-democracia espanhola “ligth”. Por que a emergência das consultas quando não há preferência eleitoral ou parlamentar pela independência?

A verdadeira explicação está nos últimos 7 anos de governo tripartido conformado por PSC, ERC e ICV. Se uma observação atenta não daria para esperar grandes coisas deste governo de coligação, a realidade é que bastantes setores das classes populares depositaram muitas esperanças nele. Os 23 anos de governo de CiU estiveram marcados por um alto financiamento público de serviços privados, resultado à sua vez duma política de privatização de serviços públicos adquiridos mediante uma presumível generosidade de Espanha na cessão de competências. Desta maneira, sendo o Principado da Catalunha a comunidade autônoma economicamente mais desenvolvida do estado, tinha importantíssimas desigualdades sociais e estava submetida a uma relação fiscal com Espanha certamente abusiva. O eufemístico e forçoso “fundo de solidariedade territorial” serviu na prática para cobrir o déficit das administrações da Andaluzia e Extremadura, mantendo assim o domínio do PSOE no midi ibérico.

Esperava-se que o governo de Maragall (2003-2006) fosse uma resposta a estes problemas, mais ainda quando o peso eleitoral da Catalunha era decisivo para a vitória do PSOE no estado. É assim que Zapatero prometera na campanha de 2004 entre aplausos aprovar «o estatuto de autonomia de Catalunha que aprovar o parlamento de Catalunha».  A frase lembra-se com gargalhadas de puro cinismo no Principado. A tensa negociação para a elaboração do documento com referendum incluído, acabou com um primeiro recorte substancial em 2006 fruto dum acordo entre Zapatero e CiU. O mantimento da relação fiscal desigual, os escassos avanços em matéria social e algum escândalo político varreram Maragall da cena.

O seguinte tripartido é presidido por uma personagem gris: José Montilla, ex-ministro de Zapatero, espanholista, pertencente à linha oficial do PSOE e com sérias dificuldades para falar em catalão. A presidência de Montilla simboliza a eliminação da autonomia do PSC que se sempre exercera oficiosamente de sucursal do PSOE, também é verdade que presumia da independência de critério baseada na sua história como partido autônomo. É assim que um setor do eleitorado de ERC sente-se traída pela reedição do pacto com um PSC que não está disposto a contrariar o governo de Madrid. Por outro lado, o ecossocialismo de ICV toma posse de Interior responsabilizando-se da repressão aos movimentos sociais que pretendia representar no parlamento...
Começa a falar-se da “desafeição” para descrever o estado de ânimo das massas catalãs face a política. Nas eleições municipais de maio de 2007, a esquerda independentista sob as siglas das CUP obtém um importante resultado a costa de ERC. Mas também cresce a extrema direita com o neo-fascismo da PxC. 

Durante esse mesmo ano, as acidentadas obras do Trem de Grande Velocidade e a falta de financiamento da rede viária pública em poder do Estado provocam as paralisações dos comboios de proximidade. Barcelona e a sua área metropolitana caem no caos afetando duramente à classe trabalhadora. O clima de indignação é tal que o Parlamento de Catalunha reclama a demissão da ministra de fomento Magdalena Álvarez. Esta, sem qualquer senso da diplomacia e com o desprezo que inspiram em Madrid os polacos, responde: «antes partida do que dobrada». Em Barcelona produz-se uma das mobilizações mais concorridas das últimas décadas convocada pela Plataforma pelo Direito a Decidir (PDD), quem já antes tinha realizado uma importante manifestação no contexto do debate sobre o estatuto da autonomia em favor dum ambíguo “direito a decidir”. Nesta ocasião, a bateria de reivindicações inclui a publicação das balanças fiscais (acochadas pelo governo para não explicitar o abuso ao que se submete aos Países Catalães), a arrecadação integra dos impostos e o traspasso das competências sobre infra-estruturas.

Contudo, a PDD não pode dirigir este descontentamento cara uma estratégia autodeterminista: em 2008, quando intenta formalizar a organização, surgem divisões. A PDD racha em duas facções que lutam judicialmente pela propriedade das siglas. As pequenas entidades que agrupava dispersam-se e ERC, que tinha um peso importante na plataforma, entra num duro debate interno que se salda com a saída de Reagrupament pela direita.
Em 2009 o panorama complica-se. No contexto da crise financeira, prolonga-se o debate sobre o financiamento autonômico. Quando Catalunha pretende compensar a balança fiscal desfavorável, produz-se uma reação das autonomias beneficiárias (incluída Galiza) e da mídia espanhola. Os catalães e as catalãs recebem a acusação de insolidariedade quando não, ironicamente de quererem quedar com o dinheiro “de todos os espanhóis”. No entanto, congela-se o financiamento dos serviços gerando uma situação crítica nas classes médias e nas capas mais desfavorecidas da classe trabalhadora que se vem a somar à destruição de emprego no vasto tecido industrial catalã. O cúmulo é o anúncio dum severo recorte por parte do Tribunal Constitucional do já irreconhecível estatuto aprovado em 2006.

É nesta conjuntura que emerge o fato desencadeante: por iniciativa da esquerda independentista, na pequena vila de Arenys de Munt, a câmara municipal presidida pelo independente Carles Mora aprova a convocatória duma consulta popular para responder a seguinte questão: «Concorda você com a possibilidade de Catalunha se constituir num estado independente no seio da União Européia?». O prefeito, bastante sensível aos temas de participação cidadã, implica-se na organização tendo que padecer uma desproporcionada campanha de acosso. O Estado Espanhol inicia uma guerra judicial para a proibição da iniciativa encabeçada pelo fascista Jorge Buxadé alternada com episódios esquisitos de espionagem e roubo à prefeitura. O toque final é a convocatória duma manifestação de extrema direita para importunar a realização da consulta. Milheiros de catalães e catalãs deslocam-se até Arenys o 13 de setembro para defenderem a iniciativa. Ao final, a convocatória direitista resulta diminuta e tem que ser protegida pela polícia catalã das iras populares. Um 41% do censo alargado a menores de 16 anos e às pessoas imigradas participa no comício. O “sim” ganha por um 96,2% dos votos e Arenys vira numa intensa celebração da catalanidade.

O êxito de Arenys faz que as comissões organizadoras de consultas se multipliquem por todo o país; a coordenação das quais, com certeza, resulta politicamente suculenta. A coordenadora das consultas recruta todo tipo de pequenas entidades, demagogos e personagens situadas na periferia da política institucional prontos para a sua promoção pública. De fundo, está a questão de desenhar uma outra iniciativa política, de fortalecer a candidatura de Reagrupament ou de posicionar favoravelmente equipas políticas minoritárias dentro principalmente de ERC. Esta amálgama de posições está encabeçada pelo prefeito de Arenys. Carles Mora que, pronto para deixar o seu cargo na câmara em favor do candidato da CUP, foi catapultado à coordenação nacional pelo êxito da consulta de Arenys.

Por outro lado, o partido “da ordem” esta constituído por uma plataforma de vereadores e vereadoras pela autodeterminação. São principalmente de ERC, CiU e uns poucos das CUP. Contudo, são os primeiros quem dominam esta plataforma. À sua frente têm o valenciano e vogal do Conselho Geral do Poder Judicial, Alfons López Tena; personagem esquisita, liberal, próximo a CiU e independentista...

O fato de que as câmaras municipais não possam participar na organização das consultas de maneira legal, dá vantagem à plataforma de Carles Mora. Porém, as convocatórias de consultas em diferentes datas é fruto desta divisão e não, como muitas pessoas pensam, duma estratégia escalonada.
As consultas do dia 13 de dezembro registram uma participação discreta (27,41%) na que o “sim” volve ganhar por ampla maioria (94,89%). Esta menor participação é o resultado da realização da consulta em localidades residenciais de tamanho médio. A alta abstenção provoca uma ruptura aberta que ameaça a continuidade do processo: a equipa de López Tena, centrada na comarca de Osona, conseguiu uma participação do 41,1%, chegando a superar amplamente a metade do censo em vilas como Alpens (69,67%), Sora (69,05%) ou Santa Eulàlia de Riuprimer (64,47%). Tena aproveitou para acusar a gente de Mora de trabalhar de jeito irresponsável e pouco planificado. Embora encenarão uma reconciliação posterior, a rivalidade das duas tendências mantém-se.

A equipa de Mora começa a atuar de modo improvisado e confuso, promovendo uma impossível Iniciativa Legislativa Popular ao Parlamento da Catalunha ou anunciando a celebração duma consulta em Barcelona para o 25 de Abril que terá de ser adiada pela impossibilidade de gerir com garantias uma convocatória de tais dimensões. No entanto, Carles Mora adire a Reagrupament. Pela sua banda, Tena recebe a sua primeira derrota em Girona, onde pretende fazer-se cargo da consulta nesta cidade para o 25 de Abril. A oposição da CUP faz que mude de opinião mantendo-se à margem.

Neste contexto, aproximam-se as consultas do 28 de fevereiro com as expectativas intactas. Contudo, serão as do 25 de Abril (com cidades como Girona) ou as do 20 de Junho (com a carga simbólica da cidade de Barcelona) as que marcarão definitivamente o resultado global da iniciativa. Neste senso, como fenômeno social, as consultas não foram um processo planificado senão uma bagunça social que diversas formações políticas intentaram capitalizar. Assim, devemos distinguir entre as motivações das equipas de coordenação e as motivações populares. Como vimos, as equipas de coordenação buscam aproveitar este movimento cara as eleições do outono de 2010 ora para consolidar-se (CiU e ERC), ora para alterar a composição do parlamento (Reagrupament e o laportismo), ora para ganhar posições nalgum dos partidos anteriores. Quer dizer, trata-se duma reestruturação do pessoal político. De fundo está também a ameaça de secessão frente ao trato fiscal e a não aceitação do estatuto de 2006.

Do lado popular o que há é um cúmulo de agravos. Desde o espólio fiscal que se aplica realmente sobre a classe trabalhadora, até o descontento com a política e a ansiedade que produz a crise econômica. Não podemos esquecer também que o conjunto dos catalães e catalãs é literalmente insultado a diário pela mídia e a política espanhola. Um estudo da UOC, publicado na imprensa o 3 de dezembro, dava por primeira vez como majoritário o independentismo na Catalunha (50,3%). O dado curioso é que uma proporção nada desdenhável das pessoas favoráveis à independência (o 29,6%) não esgrimem motivos “essencialistas” para justificar a sua posição: não é a língua, a cultura própria ou a história o que lhes inclina à independência, é singelamente “cansaço de Espanha”. A sensação é que Espanha não entende Catalunha e não tem uma disposição positiva cara o entendimento. É ilustrativo o episódio que protagonizaram os principais rotativos do país, porta-vozes das classes dominantes, em dezembro de 2009 publicando uma editorial conjunta que era uma chamada de auxilio para a salvação do estatuto como remédio para a primeira onda de consultas: demonstrando a sua miopia, a mídia de Madrid tratou os seus aliados de separatistas...  As consultas são uma expressão desse cansaço de Espanha, uma protesta popular contra a elite política catalã ou espanhola e uma via de reafirmação coletiva.

Neste contexto, a esquerda independentista tem-se posicionado ativamente a favor e, no entanto, manteve-se à margem das disputas entre as facções da Coordenadora. A sua posição passa pela extinção das coordenadoras locais uma vez celebradas as consultas (evitando o aproveitamento partidário das mesmas), a eliminação da referência à União Européia e o reconhecimento dos Países Catalães como marco sobre o que constituir um futuro estado socialista catalão.

Não é uma questão banal: as consultas têm provocado um amargo debate na esquerda independentista valenciana sobre a solidariedade do Principado com os vizinhos e as vizinhas meridionais, já que a referência exclusiva a Catalunha ignora os direitos da catalanidade ao sul do rio Sènia. Aliás, o domínio hegemônico do PP empeça a possibilidade de perguntar à população valenciana. Contudo, a esquerda independentista catalã não considera, com bom critério, que a independência vaia vir deste processo de consultas. Em todo caso, as consultas seriam uma ferramenta a introduzir na planificação estratégica da luta pela libertação nacional e social. Portanto, as especulações dalgum setor do catalanismo valenciano baseiam-se numa visão distorcida, numa percepção sobredimensionada da força real do independentismo principantí.

Na Catalunha Norte, dominada pela UMP de Sarkozy, a iniciativa também não parece aplicável. Porém foi o que se conhece como a abertura duma “janela de oportunidade política” para proporem um referendum sobre a criação dum departamento catalão na França. Cumpre recordar que a região não tem qualquer tipo de representação política ficando sob o departamento dos Pirineus Orientais junto com a região occitana do Languedoque. Também não tem qualquer legislação para a proteção da língua catalã.

Com certeza, é nas Ilhas Baleares onde se deu um perceptível efeito de contágio. Lá constituiu-se uma plataforma de vereadores e vereadoras dominada pelo PSM, que planeja convocar consultas em 2010 quando menos em 11 vilas. Já na manifestação do 31 de dezembro em Malhorca, uma das mais concorridas dos últimos anos, solicitava-se a autodeterminação da Catalunha insular.

O resultado das consultas é bastante imprevisível. Porém nada indica que vaia afetar sensivelmente a composição do parlamento. As CUP mantêm uma política conjunturalmente abstencionista nas eleições catalãs e Reagrupament está numa severa crise interna que limita as suas possibilidades de entrar na câmara. Por outro lado, a sua falta de definição política junto com a sua negativa a apoiar o PSC, levarão-no diretamente aos braços de CiU; formação que se perfila como favorita e que abandonará a sua ambigüidade para mostrar o seu verdadeiro desinteresse nas consultas logo de se realizarem os comícios. Talvez ERC é a formação que tem mais a ganhar com o movimento das consultas: se souber aproveitar a ocasião, poderia compensar a perda de votos que se lhe prognostica.

E quando com segurança se dispersarem os numerosos partidários e partidárias da independência de hoje, a causa ficará em mãos de quem sempre esteve: da genuína esquerda catalã.


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