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IMG 8676Brasil - Le Monde Diplomatique - [Sandro Barbosa de Oliveira] Mas de onde veio essa força política? Ao que parece, ocupar uma escola foi ocupar o coração do espaço público na sociedade, o que permitiu aos estudantes se apropriarem de um espaço que não estava efetivamente em suas mãos e que lhes atribuiu legitimidade e reconhecimento por parte de diversos setores sociais.


Era madrugada do dia 10 de novembro quando a notícia de um acontecimento inusitado repercutiu entre os estudantes secundaristas: a Escola Estadual Diadema havia sido ocupada por seus próprios estudantes em uma ação direta de luta e denúncia do fechamento de alguns ciclos do ensino pela Secretaria de Educação do Governo do Estado de São Paulo. Na sequência, articulada com a primeira ocupação, estudantes ocuparam a Escola Estadual Fernão Dias Paes, no bairro de Pinheiros em São Paulo, demonstrando uma articulação inédita entre estudantes de escolas diferentes e em cidades diferentes – Diadema e São Paulo. Estava aberta a temporada de ocupações das escolas públicas estaduais do estado mais rico e economicamente desenvolvido do país.

Não demorou muito para ocorrer no dia 11 a terceira ocupação na Escola Salvador Allende, localizada no Conjunto José Bonifácio, na zona leste, periferia de São Paulo. Mas o que essas ocupações reivindicavam? Como já é de conhecimento público, iniciaram uma luta contra a proposta do governo tucano de reorganização escolar e fechamento de 94 escolas no estado. Não por acaso, as ocupações das escolas Diadema e Fernão Dias estavam sendo planejadas há mais de 6 meses em decorrência da ausência de diálogo por parte do governo com os estudantes e seus responsáveis. Na ausência de diálogo e diante de uma condição que os afetaria diretamente por essa medida, os estudantes adotaram uma ação radical: ocuparam e resistiram em suas escolas para forçar o governo a retroceder no pleito e reconsiderar a proposta, uma luta que foi ganhando força política e algo assim não havia sido visto ainda no Brasil.

Mas de onde veio essa força política? Ao que parece, ocupar uma escola foi ocupar o coração do espaço público na sociedade, o que permitiu aos estudantes se apropriarem de um espaço que não estava efetivamente em suas mãos e que lhes atribuiu legitimidade e reconhecimento por parte de diversos setores sociais. O movimento de ocupação das escolas cresceu e se generalizou em grandes centros urbanos do estado, o que demonstrou que além de um movimento secundarista foi também um movimento urbano em defesa de um espaço público importante na sociedade: a escola pública.

Para quem é do movimento de moradia ou mesmo dos sem-terra e ocupa terras ou imóveis vazios sabe que toda ocupação é um processo de luta e formação de militantes, pois a luta educa e ensina aprendizados políticos que não estão nos livros. Todavia, a experiência dos mais velhos fortalece a inexperiência dos mais jovens, o que permite ao movimento obter conquistas ou aprender com as derrotas. No caso dos estudantes secundaristas, qual foi a experiência anterior de ocupação de escola? Pois é, como não houve experiências passadas de ocupações, os estudantes tiveram que aprender fazendo. O fazer então se tornou a melhor maneira de dizer, e fazendo foram aprendendo como tomar decisões coletivas, dividir tarefas e assumir maiores responsabilidades. Eles foram influenciados pela experiência dos estudantes chilenos através de cartilhas e do vídeo A revolução dos pinguins, o que permitiu pensar que fazer ocupações era possível, além de contar com o apoio de outros movimentos. Antes das ocupações eles realizaram manifestações e atos contra a reorganização escolar, ações que não tiveram repercussão até os adventos das ocupações.

Só foi com o movimento de ocupações das escolas que houve uma repercussão social, e ele parece que nasceu de uma relação casual (causa/efeito) diante do antagonismo com a proposta de reorganização escolar do governo. As ocupações só se tornaram realidade quando o governo anunciou as 94 escolas que seriam fechadas e quais ciclos de ensino seriam encerrados. Dessa ação governamental veio a reação dos estudantes que continha uma intencionalidade política de ocupar e resistir, o que permitiu perceber que o movimento nascente despontava sob uma finalidade: barrar a reorganização e pautar a participação estudantil na direção e nos rumos das escolas.

Nesse contexto, o que o movimento de ocupações quis dizer para a sociedade? Um dos primeiros dizeres foi que os estudantes querem participar das decisões que afetam suas vidas. Então, querer participar é querer se autodeterminar, aspecto primário em qualquer democracia direta como proposta política que advém da participação direta e se contrapõe a democracia representativa, aquela em que se elegem representantes do “povo”, e ao seu participacionismo. Como a maioria dos brasileiros sabe, vivemos em tempos de crise da democracia representativa, o que implica repensar os modos de fazer política no país. A crise da democracia representativa é a crise de um sistema político inoperante para as classes trabalhadoras e populares, modo de regulação política que envolve partidos políticos, instituições eleitorais e instâncias administrativas de um Estado de viés patrimonialista sob um regime de acumulação de capital autoritário e segregador, que funciona para as classes dominantes – industriais, banqueiros, latifundiários e imobiliários. Portanto, o que os estudantes estão nos ensinando é que a participação se constrói de baixo para cima e não de cima para baixo como tem sido feita na moribunda democracia representativa. Eles fizeram isso através de assembleias diárias em que tomavam as decisões conjuntas sobre os rumos das ocupações e de seu nascente movimento. Isso não quer dizer que fizeram isso sem conflito, até porque toda luta envolve um enfrentamento externo e outro interno ao próprio movimento.

Outro dizer dos estudantes foi inovador nessa jornada: as aulas públicas sobre sexualidade, sistema político, autogestão, direito à cidade, entre outros temas, desenvolvidos por professores parceiros da luta; atividades culturais – teatrais, musicais e artísticas que ocorreram nas escolas; e as oficinas de grafite, de camisetas, de desenho, entre outras; que refizeram o sentido da educação através da educação sob um novo sentido. Essa nova escola, portanto, nasce no seio da velha escola a partir da iniciativa dos estudantes, não de professores, nem de diretores tampouco do estado político. O que eles nos ensinaram é que é preciso ousar para tudo ter e de que o amanhã nasce do hoje. Por isso, essa nova educação implica partir dos reais anseios dos estudantes.

Ao ocupar escolas por um movimento que se generalizou para mais de 220 escolas, os estudantes ocuparam um espaço público que precisava ser apropriado por quem estuda lá, e toda apropriação envolve uma luta por autodeterminação, que se desdobrou em uma construção da autonomia através da pedagogia da luta e da educação transformadora. Como já disse o educador Paulo Freire, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Então, ocupar e resistir na escola pública representou não apenas autodefender o direito a uma educação de qualidade, mas também de autodeterminá-la a partir das reais necessidades dos estudantes que insurgiram contra um processo antidemocrático que veio de cima para baixo.

Nessa luta, a cada ação um dizer, a cada dizer uma necessidade, a cada necessidade um ensinamento. Assim foi o movimento de ocupações estudantis que sacudiu o estado de São Paulo no final de 2015. Essas ocupações evidenciaram que há uma luta pela apropriação do espaço público que se contrapõe a lógica da propriedade privada, que mercantiliza e priva de acesso os estudantes periféricos e filhos de trabalhadores. Em síntese, a autodefesa da escola foi a defesa da educação pública em contraposição a sua terceirização e futura privatização. Portanto, os estudantes também disseram que a saída não está na mercantilização do ensino, mas sim no fato de que a escola que eles querem precisa garantir a participação direta, a autodeterminação e o envolvimento de crianças e adolescentes em seu projeto político-pedagógico.

Como os estudantes disseram isso? Realizaram e organizaram inúmeras assembleias para tomar as decisões sobre os rumos das ocupações; dividiram-se em comissões de “segurança” (ou autodefesa), cozinha, comunicação, limpeza, entre outras, para manter o espaço da escola organizado e limpo; organizaram aulas públicas com professores parceiros, atividades culturais com coletivos amigos e ensaiaram a construção de uma nova escola a partir do processo de autogestão (em algumas escolas) e de centralismo democrático (em outras escolas) vivenciando-os na luta contra a reorganização. Essas experiências de autogestão e centralismo democrático não são novas na história, até porque foram criadas pela classe trabalhadora em seus movimentos. Mas o que foi inovador foi haver ocorrido nas escolas públicas. Por isso, quem foram os protagonistas desse movimento? Estudantes filhos de trabalhadores moradores do centro e da periferia, considerados “uma geração perdida” e que disseram já basta aos desmandos na educação pública no estado de São Paulo, estado que está sendo governado há mais de vinte anos pelos tucanos, partido de frações da grande e da  pequena burguesia que têm uma visão empresarial e privatista do serviço público.

Os tucanos, ao dizerem que a escola estava fechada e que as aulas estavam paralisadas por causa das ocupações, quiseram apagar o movimento real que ocorreu ali: aulas, aprendizados, relações sociais e participação responsável dos estudantes com o espaço ocupado: nunca antes quiseram estar tanto na escola. Então, é possível afirmar que a escola esteve em pleno funcionamento, mas este foi autodeterminado por seus estudantes. Por isso, o que eles aprenderam com as ocupações em dois meses de luta foi um aprendizado para uma vida que nenhum professor ou livro didático faria em anos. É no processo de luta por outra sociedade que os trabalhadores e seus filhos constroem as organizações e instrumentos de luta, oscilando entre a capacidade de criar novas relações sociais igualitárias e reproduzir relações desiguais, hierárquicas e deformadas quando organizações ou aparelhos políticos substituem os trabalhadores na direção de suas lutas¹.  Em diversas escolas organizações “representativa” dos secundaristas²  apareceram para colocar suas bandeiras sem ter contribuído com a organização da luta (em algumas escolas os estudantes nunca viram essas organizações). Por essa ausência, elas foram rechaçadas por alguns estudantes, o que mostrou os sintomas da crise de representatividade em um movimento que buscou construir pela base e junto com os estudantes (e não para os estudantes) suas pautas de reivindicações. 

No entanto, não se pode negar a contribuição de algumas organizações e instrumentos criados historicamente pelos trabalhadores e estudantes em uma luta que adquire caráter universal (a educação pública). Nesse contexto, a luta dos secundaristas contou com apoio também da Defensoria Pública do Estado e de sindicatos, movimentos sociais e das comunidades onde estavam, mas foram eles que construíram a “direção coletiva” em reuniões de comando das ocupações. Foi então um movimento que conseguiu ir além da reorganização escolar, porque passou a se construir como uma luta em defesa da educação pública sob outros pressupostos, já que eles tiveram a chance de pautar “que escola nós queremos” a partir das vivências que tiveram nas ocupações. Deixaram, portanto, um recado para toda a sociedade: as transformações e mudanças efetivas só podem ocorrer a partir da luta popular – só a luta muda a vida.

Foi com essa mensagem de luta direta organizada de baixo para cima que os estudantes fecharam o ano 2015 evidenciando que não basta tomar as ruas, mas que é preciso tomar os meios de produção (nesse caso, as escolas) sob os aspectos do fazer e da gestão no contexto da luta de classes e do poder popular, para se pautar outro sentido de reorganização do ensino e da educação pública na sociedade, ao permitir a socialização do saber e o saber da socialização. Por fim, a mensagem das ocupa-ações secundarista em SP não será esquecida, porque mostrou a necessidade e a possibilidade de se organizar a escola de maneira autogerida com participação direta de seus estudantes junto aos professores e funcionários, deixando evidente que uma outra educação é possível porque outra sociedade é possível: é preciso construí-la como projeto político, econômico e social. Axé e vida longa à luta estudantil secundarista!


Sandro Barbosa de Oliveira é professor, educador popular, bacharel em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutorando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Participa do Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho da Unifesp. É também associado e cientista social da Usina Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado.

 

1  Maurício Tragtenberg, Reflexões sobre o socialismo, São Paulo, Unesp, 2008.

2  União Municipal-UMES, União Paulista-UPES, e União Brasileira dos Estudantes Secundarista-UBES

foto: Cristiano Navarro


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