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arquivo 1416335411Brasil - Laboratório Filosófico - [Rafael Silva] A Capadócia é uma região montanhosa da moderna Turquia, muito visitada atualmente para a prática do balonismo recreativo. Porém, as mesmas montanhas que, hoje, por um punhado de dinheiro, os turistas podem observar das alturas, antigamente, serviram de esconderijo aos cristãos que fugiam da perseguição religiosa do Império Romano pagão. Dentro delas jazem quilômetros de túneis, milhares de alcovas, e dezenas de capelas-igrejas, nas quais aqueles que ousaram acreditava em um Deus único e bom podiam cultuá-lo em paz.


De certo modo, o labirinto claustrofóbico que aqueles refugiados religiosos abriram dentro pedra natural foi um esboço não só do que seria a organicidade outrossim labiríntica e claustrofóbica da cidade medieval, na qual os cristãos seguiriam cultuando o mesmo Deus, como também das nossas verticalizadas metrópoles contemporâneas, onde vivemos adensados uns sobre os outros cultuando, entretanto, outro deus: o capital, o Senhor absoluto da existência metropolitana.

Na cidade medieval, o Deus cristão ocupava a “laje” mais elevada. Suas fundações, entretanto, já pertenciam, ainda que não claramente, ao florescente capitalismo que precisava adensar e empilhar as pessoas para mais lucrar com elas. Agora, se as vorazes e rizomáticas bases capitalistas ainda permitiam que Deus as encimasse espetacularmente era porque isso interessava senão ao próprio capital. Se assim não fosse, ele teria, desde o início, despejado Deus da cobertura urbana e colocado outro inquilino mais lucrativo no seu lugar, ou ocupado o topo privilegiado ele mesmo.

Para a cidade capitalista nascente, ter Deus dentro de suas fronteiras era tão estratégico quanto o Coliseu era para Roma. Com efeito, a maior edificação da antiguidade foi dada aos cidadãos romanos para que lá eles despejassem catarticamente as suas barbaridades, e, ao deixarem o “Stadium Maximus”, desfilassem pelas “vias ápias” da Cidade Eterna apenas a civilidade que a ela interessava. A diferença, entretanto, é que o ópio do cidadão romano pagão era assistir aos cristão sendo devorados por leões, ao passo que o do cristão medieval era rezar para não ser devorado pelos leões pagãos que impertinentemente rugiam dentro de si.

E enquanto os cristãos medievais se preocupavam em não serem abocanhados pelo pecado, o lobo-capital-em-pele-de-cidade podia devorá-los até se empanturrar, pois os crentes mais se preocupavam com os seus demônios internos do que com a ainda não totalmente conhecida besta capitalista que, cada vez mais, os encurralava nas estreitas vielas do medievo. A fé em Deus, portanto, era uma espécie de Coliseu do capital, dentro do qual os cristãos eram iludidos de que estavam a salvo dos seu próprios leões. No resto da cidade, entretanto, o capital lhes sangrava sem dó nem piedade. Nesse sentido é que a velha esfera divina foi de muita serventia ao jovem capitalismo citadino.

Já o capital adulto, em forma de metrópole contemporânea, fez diferente. Despejou Deus de sua cobertura privilegiada e colocou-se, sem disfarce algum, no lugar dEle. Doravante, o leão que devora seria o mesmo para quem se pede proteção para não se ser devorado. Fidelidade ao onipresente deus metropolitano significa rezar diariamente por cifrões que, entretanto, são simultaneamente profanados e espoliados por esse mesmo deus para quem se reza. A benção do deus-capital, isto é, o dinheiro, é sistematicamente dado por uma mão sua e tirado pela outra. No paraíso metropolitano-capitalista, portanto, quanto mais beato se é, mais condenado se está.

Se, por um lado, a metrópole é o lugar no qual só se está protegido da fome capitalista deixando-se devorar por ela, e, por outro, diferente de Roma, que dava no Coliseu aquilo que não queria fora dele, o absoluto deus-capital tira, em todos os lugares, a mesma e única coisa que exige outrossim em todos os lugares, isto é, dinheiro, então temos aí uma perseguição sistemática que por si só justificaria uma fuga da metrópole a algum esconderijo secreto e seguro, assim como os primeiros cristãos que escaparam da Roma pagã que lhes perseguia.

Agora, uma vez que, hoje, o mundo inteiro é uma conurbação capitalista, não há Capadócia interiorana alguma em cujas montanhas possamos escavar rotas de fuga secretas nem templos alternativos. Em relação à onipresença do deus-diabo-capital, podemos apenas fingir a sua ausência, não obstante, no interior de suas montanhas urbanas feitas de aço, vidro e concreto, dentro das quais estão insculpidos os nossos refúgios-lares-apartamentos, onde, por breves e caros instantes, podemos descrer brevemente do deus-capital absoluto.

Os edifícios de concreto das nossas metrópoles contemporâneas estão para o capitalismo que a todos persegue assim como as escavadas montanhas de pedra da Capadócia antiga estiveram para o paganismo romano que perseguia os cristãos. A diferença, entretanto, é que, para estes, a distância física dos seus perseguidores significava proximidade metafísica com Deus, enquanto nós sequer podemos crer que quaisquer milhas nos afastam do nosso perseguidor onisciente, o capital. E isso porque o nosso algoz supremo é, ao mesmo tempo, o nosso deus absoluto.

Assim com os primeiros cristãos, refugiarmo-nos no interior de montanhas, todavia artificiais e criadas pelo deus-capital, para encontrarmos, a altos preços, diga-se de passagem, alguma paz e liberdade. E quando o capital abunda, podemos inclusive ir à Capadócia, embarcar em um balão, e, das alturas, como se fôssemos deuses nós mesmos, espiar o esboço da nossa civilização naquelas montanhas-refúgios-naturais.


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